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'Passei oito meses trabalhando para um cartel mexicano de drogas'

Mexicano conta como foi crescer cercado por violência e ir parar no marketing de um cartel de drogas - BBC Three/iStock/BBC
Mexicano conta como foi crescer cercado por violência e ir parar no marketing de um cartel de drogas Imagem: BBC Three/iStock/BBC

Thea de Gallier

17/06/2019 14h37

Eduardo*, 28

Para ser honesto comigo, eu sabia para quem estava realmente trabalhando desde a primeira vez que vi meus chefes entrarem no escritório carregando uns pacotes enormes de dinheiro.

Todo dia era a mesma coisa: às 3 horas da tarde, 10 homens apareciam com quantias que deviam chegar à casa dos milhões, e uma funcionária levava o montante direto para o banco.

Ninguém fazia perguntas.

Naquele momento tive certeza de que meus temores eram verdade - eu estava trabalhando para um cartel de drogas.

Eu sempre soube da existência desses cartéis - grupos de crime organizado envolvidos com o tráfico de drogas. Mesmo quando eu era criança.

Crescendo no México, a ameaça que essas gangues representavam estava sempre como pano de fundo na vida cotidiana.

Quase sempre dava para "bloquear" as infindáveis notícias ou rumores que chegavam sobre assassinatos sangrentos, mas quando aquilo finalmente passou a fazer parte da minha vida, fiquei com medo de não conseguir escapar.

Eu cresci no tipo de lugar onde todo mundo se conhece e as notícias correm rápido.

Guerra às drogas

Meu entendimento de como os cartéis eram perigosos aumentou de verdade quando eu tinha 15 anos.

O ano era 2006 e um novo presidente, Felipe Calderón, havia acabado de assumir o cargo.

Ele chegou ao poder com a promessa de restaurar "o Estado de direito" no México, travando uma guerra sangrenta contra o tráfico de drogas.

Lembro de ele estar determinado a lutar contra os cartéis e de usar os militares nesse combate.

Calderón foi presidente até 2012, mas a batalha continuou depois que deixou o cargo.

Desde 2006, mais de 200 mil pessoas morreram ou desapareceram no México como resultado da guerra contra as drogas.

Os cartéis começaram a se dividir em grupos menores, se espalhando a partir de seus territórios originais.

Historicamente, grande parte do norte do México era controlada pelo cartel de Sinaloa - liderado pelo infame El Chapo - e o Los Zetas, um cartel formado por desertores do exército, controlava grande parte do leste.

As áreas controladas mudaram e se fragmentaram à medida que surgiram novos cartéis e grupos dissidentes.

"Eles (integrantes dos cartéis) usavam fuzis de assalto (AK-47) no meio da cidade - eu nunca tinha visto algo como aquilo", diz Eduardo - BBC Three/iStock/BBC - BBC Three/iStock/BBC
"Eles (integrantes dos cartéis) usavam fuzis de assalto (AK-47) no meio da cidade - eu nunca tinha visto algo como aquilo", diz Eduardo
Imagem: BBC Three/iStock/BBC

Eles usavam fuzis de assalto - como o AK-47 - no meio da cidade. Eu nunca tinha visto algo como aquilo.

Pessoas eram assassinadas e tinham seus corpos jogados na rua. Quando eu era adolescente, lembro de andar pela cidade ouvindo tiros à distância - e de um calafrio percorrendo todo o meu corpo.

Não vi o momento em que o assassinato aconteceu, mas vi o corpo caído depois na rua.

A primeira vez que vi algo desse jeito foi terrível. Fiquei profundamente chocado - mas, infelizmente, aquilo logo se tornou "normal" por ali.

É chocante para mim agora, olhando para trás, como essa violência brutal virou parte das nossas vidas.

Algumas pessoas que eu conhecia também passaram a ter medo de abrir um negócio, porque os integrantes do cartel apareciam e tentavam extorquir seus lucros.

Se eles vissem que você tinha um negócio, como uma loja, eles viriam e exigiriam uma parte dos lucros em troca de "proteção" - em outras palavras, "me dê seu dinheiro ou eu mato você".

Ameaças

Eu também os via quando saía para a balada com meus amigos no final da adolescência.

Geralmente era um cara grande cheio de correntes de ouro cercado de mulheres bonitas, e eu me perguntava o que ele tinha para chamar tanta atenção.

Certa vez, fui ameaçado por um dos "ajudantes" dele. Ele me acusou de ter pegado uma bebida da mesa do chefe e disse que não queria me ver por ali de novo. Fiquei apavorado - corri daquele clube com o coração disparado.

Quando criança, eu queria ser arqueólogo, porque adoro a história antiga - acho que me inspirei nos filmes de Indiana Jones. Mas quando chegou a hora de escolher uma carreira, eu resolvi fazer o que achei que daria mais dinheiro - marketing.

Um amigo me arrumou um emprego em uma revista local e, em pouco tempo, fiquei conhecido na área

Então, um conhecido que trabalhava para uma agência bem sucedida - entre os clientes, estavam restaurantes e bares de propriedade dos cartéis de drogas - perguntou se eu queria trabalhar como freelancer ajudando com materiais de divulgação.

Os cartéis tinham de atuar como empresas regulares para poderem esconder o dinheiro que obtinham com atividades ilegais.

Quando descobri o pagamento que eles ofereciam (o equivalente a US$ 1.300, ou a R$ 5 mil, para o trabalho de um fim de semana), não consegui recusar a proposta.

Isso dá quase 25.000 pesos mexicanos - enquanto o salário mínimo no México é de 102 pesos por dia.

O dinheiro me atraiu.

Eu tinha 21 anos e comecei a me exibir, vivendo como uma estrela do rock, dando festas, pagando bebida pra todo mundo. Mas não saí da casa dos meus pais.

Não queria dar muita bandeira no caso de as pessoas começarem a fazer perguntas.

Tinha minhas suspeitas naquele momento de que essas pessoas estivessem envolvidas com os cartéis, mas não sentia que eu fazia parte disso - tudo o que eu estava fazendo era ajudá-los a promover seus bares e restaurantes.

#narcofashion

Meus pais ficaram preocupados com meu estilo de vida e com o tipo de gente para quem eu estava trabalhando.

Eles me disseram para ter cuidado, mas, no começo, estava tudo bem. Eu não conhecia ninguém do cartel, apenas fazia o meu trabalho e recebia o meu dinheiro.

Depois de algumas semanas, um dos chefes chegou ao escritório. De cara, eu tive a sensação de que tinha alguma coisa errada e de que eu não podia confiar nele.

Ele estava vestido da cabeça aos pés com roupas de grife e tinha um carrão. Esses caras gostam de se mostrar - e algumas pessoas até pensam que eles são ícones da moda.

Quando vários membros do cartel foram presos usando uma certa camisa polo de marca em 2010, todo mundo queria aquela camisa. Tem até uma hashtag no Instagram chamada #narcofashion.

Ele me perguntou se eu queria mais trabalho e mais dinheiro. Me disse que ia começar a fazer shows com cantores de corrido, que é um tipo popular de música folk mexicana, e queria que eu ajudasse na área de promoção.

Às vezes, os narcotraficantes fazem esses cantores escreverem canções sobre eles, para ficarem famosos. Em algumas partes do México, é ilegal cantar os chamados narcocorridos ou músicas sobre os traficantes.

Eles glamourizam a violência do mundo dos cartéis - há uma música, por exemplo, que diz: "Com um AK e uma bazuca mirando, arrancando a cabeça de quem estiver no caminho".

É perigoso também - cantores já chegaram a ser mortos por cartéis rivais por cantarem sobre o traficante errado.

Presença dos cartéis também existia no setor de entretenimento, em shows que passaram a ser o trabalho de Eduardo - BBC Three/iStockt/BBC - BBC Three/iStockt/BBC
Presença dos cartéis também existia no setor de entretenimento, em shows que passaram a ser o trabalho de Eduardo
Imagem: BBC Three/iStockt/BBC

Naquele momento, eu não sabia o quão envolvidos com os cartéis esses shows poderiam estar.

Eles aconteciam em fazendas locais e reuniam cerca de 30.000 pessoas. Eu comecei a frequentá-los, via caras lá com armas enormes como seguranças.

Não me sentia seguro - essa foi a primeira vez em que realmente tive medo de morrer, porque simplesmente não dava para saber se um cartel rival iria aparecer, estourando um confronto, ou se a polícia mesmo faria isso.

Nada disso aconteceu, mas só em ver nos jornais as disputas dos cartéis por território, eu sabia que a possibilidade existia.

Mas, estranhamente, também me sentia bastante protegido por causa de toda a segurança. E, de certa forma, sair com esses caras era divertido - se eu tentasse esquecer quem eles eram de verdade.

Depois que comecei a fazer os shows, eles passaram a nos levar (eu e meus colegas), para jantar e beber em lugares sofisticados. Mas sempre tive consciência de que um deles poderia atirar em mim se quisesse.

Dinheiro sujo

A questão moral de trabalhar para essa gente também estava pesando muito na minha cabeça.

Mesmo que eu não estivesse fazendo nenhuma das coisas realmente ruins, como transportar drogas ou matar pessoas - e que também não tivesse testemunhado eles fazendo esse tipo de coisa - eu sabia que isso estava acontecendo em algum lugar.

Eu não era membro de nenhuma gangue criminosa, mas ainda estava envolvido, estava sendo pago com o dinheiro deles. Parecia errado.

Foi nessa época que vi os caras chegando com os pacotes de dinheiro no escritório.

O chefe me levou para algumas mansões que estava construindo nas montanhas também - elas eram enormes.

Eu vi o chefe dele, o chefão, algumas vezes. Ele se mantinha distante dessas coisas e cuidava principalmente do lado comercial, trabalhando de casa. Ele tinha uma onça de estimação e uma mulher linda.

Perguntei ao meu chefe: "Você faz parte de um cartel de drogas?"

A resposta dele foi ambígua.

"Você quer saber mais, ou quer fingir que não sabe de nada?", ele me perguntou.

Eu olhei em volta desconfortável, pensando na situação em que tinha me metido.

"Vamos fingir", respondi.

Sem saída?

Continuei indo aos shows nas fazendas, mas estava ficando cada vez mais desconfortável. Não queria mais fazer isso, mas temia que parar fosse perigoso.

Comecei a me distanciar dos meus colegas na agência de marketing. Eu não me sentia mais protegido por estar perto desses caras - tinha noção de que, se alguma vez pedisse a ajuda deles, ficaria com uma dívida eterna.

Além disso, não sou o tipo de cara que se mete em problema, e aquilo tudo já estava ficando demais para mim. Um dia, recebi uma ligação do chefe.

"Você ainda quer trabalhar com a gente?", perguntou ele.

Eu respirei fundo e decidi dizer a verdade. "Para ser honesto, não, eu não quero", foi o que respondi.

"OK, boa sorte", disse ele.

Disse a ele que iria ao escritório pegar meu computador e a câmera que usava para tirar as fotos de divulgação. Houve uma pausa. "OK", disse ele de novo. "Boa sorte."

Comecei a entrar em pânico. "O que você quer dizer? São as minhas coisas", eu falei de volta.

"Bem, elas estão no meu escritório", respondeu ele.

Senti que ele estava me ameaçando e que algo de ruim poderia acontecer comigo se eu fosse pegar meu equipamento.

Resolvi que seria perigoso demais ir até lá. Nunca mais vi minhas coisas.

Era um equipamento caro, mas não valia a pena correr o risco.

Eu bloqueei ele e as outras pessoas com quem trabalhei nas redes sociais, e me mudei por uns meses da cidade.

Ainda voltei à minha cidade natal, e tive medo de dar de cara com eles, mas procurei não chamar a atenção.

Continuei fazendo o mesmo tipo de trabalho, mas em shows e eventos que não estavam ligados aos cartéis. No total, trabalhei para eles por cerca de oito meses.

Sem apoio

Quando há um ataque terrorista, você ouve falar disso no mundo inteiro, e os mexicanos ficam realmente emocionados enviando apoio nas redes sociais para Paris, Londres, ou onde quer que o último desses ataques terríveis tenha acontecido. Mas, isso me faz pensar que não olhamos para dentro do nosso próprio país.

Se tem um assassinato aqui, a reação é algo como "ah, tem uma cabeça na rua".

Eu amo o México, mas acho triste estarmos tão acostumados com isso na nossa cultura.

Talvez contar minha história ajude as pessoas a terem noção de como é a vida lá, e como algo tão terrível pode parecer quase normal. Ainda bem que não sou mais parte desse mundo.

*O nome foi alterado.