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Contraditório e 'bígamo', peronismo chega aos 75 anos ainda decisivo na Argentina

HO / FRENTE DE TODOS / AFP
Imagem: HO / FRENTE DE TODOS / AFP

Marcia Carmo -

De Buenos Aires para a BBC News Brasil

21/09/2019 15h00

Perón e Evita, que formaram o casal mais poderoso da história do país, até hoje são alvo de debate acadêmico, ideológico e político.

Quase setenta e cinco anos depois da fundação do movimento político peronismo, lançado pelo ex-presidente Juan Domingo Perón, os peronistas continuam sendo definidos como decisivos para o destino da Argentina.

A pouco mais de um mês da eleição presidencial, no dia 27 de outubro, o principal adversário político do presidente Mauricio Macri, o peronista Alberto Fernández, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como sua vice, está rodeado de seguidores de Perón, como parlamentares, governadores e sindicalistas.

A vitória de Fernández nas primárias partidárias de agosto, que antecedem a eleição presidencial, foi atribuída tanto à crise econômica da gestão Macri quanto ao apoio do peronismo. Assim, Fernández aumentou suas chances de chegar à Casa Rosada em dezembro deste ano, destacam analistas.

Quando era presidente, porém, Cristina preferia citar a ex-primeira-dama Eva Perón e dificilmente tocava no nome do marido dela, o general Perón. Para alguns setores, Evita simbolizou a esquerda, e Péron, a direita.

Recentemente, sem citar especificamente sua colega de chapa, Fernández disse que o peronismo é "bígamo", por ser de direita e de esquerda.

Na cédula eleitoral da coalizão de Fernández e de Cristina, Frente de Todos, está uma foto do casal Perón e Evita, como lembra o historiador Santiago Régolo, do Instituto Nacional de Pesquisas Históricas Eva Perón, de Buenos Aires.

'María Eva'

Perón e Evita formaram o casal mais poderoso da Argentina entre 1946, quando ele foi eleito presidente pela primeira vez, e 1952, quando ela morreu aos 33 anos.

E ainda hoje é possível ouvir em Buenos Aires e no interior do país - embora em menor frequência que tempos atrás - expressões como "um dia peronista" (ensolarado), "Santa Evita" e "São Perón". E mulheres argentinas são comumente batizadas com nomes como María Eva, em homenagem a Evita, que se chamava María Eva Duarte de Perón.

Seu rosto e o de Perón são constantes - junto ao do ex-guerrilheiro Ernesto 'Che' Guevara - nos cartazes dos protestos dos movimentos sociais no país. Em uma das principais avenidas de Buenos Aires, a Nove de Julho, é possível ver um imenso desenho de Evita, inaugurado na gestão de Cristina, no prédio histórico do Ministério de Obras Públicas.

Duas raízes?

Mas aqueles sete anos de vida pública juntos, de Perón e de Evita, geram ainda hoje um debate sobre as raízes do peronismo.

Há quem entenda que Perón (1895-1974) e Evita (1919-1952) representam duas raízes diferentes do movimento político. Há quem diga que os dois foram complementares. E há quem entenda que o peronismo é principalmente ele, tendo ela como uma de suas facetas.

A BBC News Brasil entrevistou os principais biógrafos de Péron e de Evita, pesquisadores argentinos e peronistas. Para alguns deles, esta visão, da Evita de esquerda, foi alimentada, por exemplo, pelo estilo de Evita para quem, de um lado estavam os pobres (que chamava de "descamisados") e do outro os ricos ("as oligarquias").

"Historicamente, enquanto Evita viveu, houve um setor do poder, como os sindicatos, que respondia a ela. Mas esse setor não se caracterizava por ser de esquerda, como se reivindicou, mais tarde, nos anos 1970. Isso é um mito. Ela era conservadora e dominante, com a ideia totalitária do poder", disse o cientista político argentino Vicente Palermo, do centro de estudos Conicet, da Argentina.

Para ele, Evita não era politicamente pragmática como Perón. "Ela era mais divisória. Quem não estava com Péron, que para ela era um deus, era um inimigo", observa.

Palermo e um dos principais biógrafos de Perón, o professor americano Joseph A. Page, da Universidade Georgetown, em Washington, lembraram que Evita chegou a comprar armas na Europa para distribuir nos sindicatos argentinos para que eles protegessem o então presidente de um possível golpe. Quando o golpe ocorreu em 1955 e quando as armas chegaram em Buenos Aires, ela já tinha morrido.

Questionado se concordava com a ideia de que o peronismo tem duas raízes, a de Perón e a de Evita, Page responde: "Sim e não".

Ele argumenta que, primeiro, é preciso entender o contexto do início do peronismo. "Quando Perón foi eleito, seus inimigos políticos diziam que era Eva que tinha o poder e a chamavam de 'a presidenta'. Mas isso não tinha que ver com a política, mas sim com uma forma de dizer que ele era 'menos macho', porque dependia dela".

Page acha que essa visão foi transmitida na ópera e no filme Evita, interpretado por Madonna (em 1996), mas que o roteiro pode ter sido influenciado por antiperonistas. Dizer que Evita era mais poderosa que Perón era uma forma de atacá-lo, interpreta o biógrafo.

"Se fosse viva, Evita seria guerrilheira"

Já nos anos 1960 e início dos anos 1970, quando o ex-presidente retornou do exílio (para onde embarcou depois do golpe de 1955), os jovens de esquerda que idealizavam o ex-guerrilheiro argentino cubano 'Che' Guevara (1928-1967) queriam atrair a classe trabalhadora para uma revolução.

"Mas eles tinham um problema porque, de acordo com Marx a revolução era feita com a classe trabalhadora, mas a classe trabalhadora na Argentina era totalmente peronista. E o peronismo era direita, esquerda, tudo. Os jovens perceberam, então, que não poderiam criar na Argentina a revolução que eles pensavam. Quando Perón voltou à Argentina, nos anos 1970, esses jovens levantaram a bandeira de que Evita era de esquerda. E com o slogan: 'Se Evita vivesse, seria montonera'", disse Page.

Os montoneros eram um grupo guerrilheiro ligado ao peronismo. O episódio da "Evita guerrilheira" foi rechaçado por Perón, recordam historiadores, contribuindo para alimentar a suposta divisão dos peronistas e das raízes do peronismo.

Na visão da biógrafa de Evita, a espanhola Marysa Navarro, do Centro de Estudos Latino-Americanos David Rockefeller, da Universidade de Harvard, a ex-primeira-dama era "principalmente peronista".

"Na minha pesquisa não achei nada que pudesse indicar que ela fosse de esquerda. O apoio que ela tinha dos sindicatos e sua retórica apaixonada em defesa dos mais necessitados não a levaram a ser de esquerda", disse Navarro.

Para Santiago Régolo, professor da Universidade Nacional Lomas de Zamora (UNLZ), Perón e Eva se complementavam. "Apesar de Perón ter sido presidente e ela não, Eva era responsável pela ramificação feminina, pela vinculação com os sindicatos e com a questão social como um todo a partir da Fundação Eva Perón", disse.

Vem daí a imagem de que ela era mais de esquerda e ele de direita?

"Ela era mais contestatória e tinha um trabalho político e social, e ele, por ser militar, deixava uma imagem mais conservadora e mais à direita. Mas acho que não se pode explicar Eva sem Péron e Perón sem Eva".

Foi Eva, lembra Régolo, que impulsou o voto feminino na Argentina e a primeira eleição de mulheres para o Congresso Nacional, defendendo o mesmo espaço para homens e mulheres na política já nos anos 1950.

"Furacão"

Para o intelectual peronista Pascual Albanese, que há anos se dedica ao peronismo, a comparação entre Perón e Evita não pode ser similar e a raiz do movimento político é centrada no ex-presidente.

"Sem dúvida Eva é um emblema importante para o peronismo. Teve papel fundamental para a ala feminina da política. Mas ela é um dos rostos do peronismo. Perón, porém, é muito mais integral porque, como homem de Estado, ele tinha uma visão mais ampla, incluindo o doméstico, a justiça social e o internacional", opina Albanese.

Ele recorda que Perón foi presidente da Argentina por quase dez anos seguidos e, mais tarde, entre outubro 1973 e junho 1974, até morrer, e Evita nunca teve mandato. Em contrapartida, Evita foi, ainda na opinião de Albanese, como "um furacão" que passou pela história argentina - com pouco tempo de vida pública, teve grande impacto, organizando, inclusive, o primeiro partido feminino (Partido Peronista Feminino), extinto no golpe de 1955.

"Foi como um furacão na Argentina. Mas ela e Perón não estão no mesmo patamar. O peronismo se chama peronismo e não evismo. É verdade que muita gente acha que, se ela estivesse viva, por sua personalidade, Perón não teria caído (em 1955). Mas essas são especulações, porque a história teve outro curso", diz.