Gisèle Pelicot, a mulher que mudou a vergonha de lado
Nesta quinta-feira (19), a Justiça da França condenou Dominique Pelicot à pena máxima por drogar durante uma década sua então esposa para estuprá-la ao lado de dezenas de desconhecidos. De sobrevivente de estupros em série, Gisèle Pelicot então se transformou em um ícone feminista e ficou conhecida como a mulher ''que mudou a vergonha de lado''.
Como tudo começou
Mãe de três filhos e avó de sete netos, aos 72 anos Gisèle descobriu algo que mudou sua vida. O homem com quem era casada há meio século admitiu que a drogou entre 2011 e 2020 para deixá-la inconsciente e estuprá-la ao lado de homens que contatou pela internet.
Os abusos foram descobertos quando Dominique passou a ser investigado por violar a privacidade de outras mulheres. O idoso foi pego tirando fotos debaixo da saia de mulheres em um supermercado e teve seu computador vasculhado pelas autoridades policiais, que revelaram o caso que chocou a França.
Um policial mostrou à Gisèle fotos dos abusos coletivos cometidos contra ela ao longo de 10 anos. ''Pedi para ele parar. Era insuportável. Eu estava inerte, na minha cama, e um homem estava me estuprando. Meu mundo desmoronou'', relatou a vítima em um tribunal.
A francesa, então, pediu divórcio e abriu mão do direito ao anonimato no julgamento dos investigados. Ela ainda exigiu uma autorização de acesso do público ao julgamento para aumentar a conscientização sobre a submissão química, o uso de drogas para cometer agressões sexuais.
Em todas as sessões do julgamento, a mulher de cabelo curto, ruiva e escondida atrás de óculos escuros aparecia com coragem e compostura. Ela permitiu que jornalistas publicassem seu nome completo e que o tribunal exibisse vídeos explícitos gravados por seu marido mostrando homens se envolvendo em relações sexuais. Pouco a pouco, até os óculos foram deixados de lado.
De desconhecida a símbolo de luta
Filha de militar, ela nasceu em Villingen, no sudoeste da Alemanha, em 7 de dezembro de 1952. Gisèle se mudou para a França com cinco anos, mas quando tinha nove anos, sua mãe morreu de câncer com apenas 35 anos.
Aos 20 anos, ela conheceu Dominique, seu futuro marido e agressor. No mesmo ano, meses antes, ela havia perdido seu irmão Michel, vítima de um ataque cardíaco em 1971.
Seu sonho era ser cabeleireira, mas fez um curso de datilografia. Após alguns anos de trabalhos temporários, Gisèle desenvolveu toda a sua carreira no grupo elétrico francês EDF, onde terminou como responsável por um departamento de logística para centrais nucleares.
Em casa, cuidou de seus três filhos e depois dos sete netos. Quando se aposentou, ela gostava de caminhar e cantar em um coral local.
Há quatro meses, ela era apenas uma desconhecida. Agora, se tornou um símbolo da luta contra a violência de gênero e sexual, chamando atenção para a prática da submissão química e, mais amplamente, levantando debate sobre as relações entre homens e mulheres.
Os estupros cometidos por desconhecidos e planejados por seu marido poderiam tê-la destruído. A francesa, no entanto, decidiu enfrentar cara a cara seus agressores nos tribunais para exigir que "a vergonha mude de lado".
Gisèle deve mudar tratamento de casos de violência sexual
A mulher de 72 anos mobilizou a França em poucos dias desde setembro. Ela provocou uma onda de obras de arte em sua homenagem e o caso foi acompanhado por manifestações de apoio na França, onde várias pessoas começaram a aplaudi-la e a oferecer flores quando ela chegava ao tribunal.
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Quero receberEu queria que todas as mulheres vítimas de estupro afirmassem: 'Se a senhora Pelicot fez isso, nós podemos fazer. Não quero que as vítimas sintam mais vergonha, e sim os agressores Gisèle Pelicot
Para o jornal Libération, o caso Pelicot "serve como um termômetro sobre como a justiça trata casos de violência sexual na França". A reportagem destacou que 86% dos casos são arquivados", segundo dados do Instituto de Políticas Públicas.
Associações feministas pedem mudanças na legislação. Além disso, o movimento também exige uma soma de 2,6 bilhões de euros para a luta contra violências sexuais, que fazem mais de 200.000 vítimas por ano na França.
O Libération analisou a onda de apoio que Gisèle recebeu de mulheres no mundo inteiro. "Essa sororidade internacional abre uma via: a de um mundo onde as violência sexuais sejam combatidas ardentemente e as vítimas não se sintam sozinhas", escreveu a mídia.
Em dezembro, a emissora britânica BBC a incluiu na lista de 100 personalidades femininas do ano. A francesa está agora ao lado da sobrevivente de estupros em série e vencedora do Nobel da Paz Nadia Murad e da ginasta brasileira Rebeca Andrade.
* Com informações da RFI e AFP
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