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Conversa com Trump coloca presidente da Ucrânia em situação embaraçosa

Zelensky continuou trabalhando como ator durante a campanha presidencial - Getty Images
Zelensky continuou trabalhando como ator durante a campanha presidencial Imagem: Getty Images

26/09/2019 18h18

O ex-comediante Volodymyr Zelenskiy, que foi eleito presidente da Ucrânia com um discurso que desafiava políticos tradicionais, demonstrou complacência diante de Donald Trump, além de fazer elogios em demasia ao presidente americano.

A maior parte do conteúdo da ligação telefônica entre Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, já era conhecida desde julho, mas os detalhes divulgados nessa semana oferecem aos ucranianos um vislumbre de como seu novo presidente opera no mundo real.

Um ano atrás, Volodymyr Zelensky era apenas um comediante que representava um presidente fictício em uma série de televisão de sucesso. Durante a campanha eleitoral, muitas pessoas pensavam que ele levaria seu estilo despojado e direto para o escritório presidencial.

Essa franqueza no discurso, com muitas sátiras e críticas à política tradicional, foi vista como ponto principal para chegar à vitória nas eleições, em abril deste ano.

A transcrição do telefonema com Trump, no entanto, demonstrou um lado muito diferente do que os ucranianos esperavam, explica Jonah Fisher, correspondente da BBC News em Kiev.

Na conversa, Zelensky parece bastante subserviente a Trump, além de fazer frequentes e embaraçosos elogios ao presidente americano. Se Zelensky ainda fosse um comediante, provavelmente usaria o teor da ligação para satirizar a cena.

A conversa ganhou importância porque foi o estopim de um pedido de impeachment contra o presidente dos Estados Unidos, feito pelo Partido Democrata na Câmara dos Representantes.

Trump teria tentado pressionar Zelensky a investigar o filho do ex-vice-presidente Joe Biden, pré-candidato à Presidência e possível adversário de Trump no pleito do próximo ano. Caso alguma ilegalidade viesse à tona, Trump se beneficiaria em uma possível disputa contra Biden.

Contato com Giuliani

Em um momento da ligação, o líder da Ucrânia diz que que aprendeu muito com Trump e o usou como exemplo para sua vitória nas eleições. Também disse que queria "drenar o pântano" (frase usada por políticos americanos para descrever uma 'limpeza no governo').

Em seguida, Zelensky afirmou, com certa tristeza, o quanto ele gostava de falar ao telefone com mandatário americano e que esperava que conversas como aquela acontecessem mais vezes.

Quando Trump disse ter ouvido falar que ex-procurador-geral da Ucrânia, Viktor Shokin, era "muito bom" e que sua saída do cargo foi "injusta", Zelensky aceitou as críticas. Por outro lado, Shokin foi amplamente visto, tanto no cenário internacional quanto por ativistas na Ucrânia, como um péssimo procurador-geral e um obstáculo ao combate à corrupção.

Em seguida, Trump criticou a ex-embaixadora dos EUA na Ucrânia, Marie Yovanovitch, chamando-a pejorativamente de "a mulher" e de "má notícia". Zelensky disse que concordava com ele "100%". Muitos políticos e ativistas da Ucrânia consideravam Yovanovitch uma aliada e amiga.

Essa complacência de Zelensky foi uma surpresa para parte da população e também para analistas da Ucrânia, diz Jonah Fisher, repórter da BBC News no país.

Anteriormente, acreditava-se que Zelensky havia recusado educadamente o pedido de Trump de iniciar uma nova investigação sobre a empresa ucraniana na qual o filho de Joe Biden, Hunter, trabalhou — a companhia de gás natural Burisma.

Para muitos, parecia uma decisão inteligente. Apesar dos melhores esforços do advogado pessoal de Trump, Rudolph Giuliani, nenhuma evidência foi apresentada para apoiar as alegações de que Joe Biden interveio para ajudar a empresa de seu filho, em 2005.

Muitos pensaram que a falta de uma investigação relacionada a Biden foi a razão pela qual as relações EUA-Ucrânia entraram em compasso de espera neste verão. Um pacote de ajuda militar e uma viagem de Zelensky à Casa Branca foram suspensos.

De fato, o telefonema sugere que Zelensky concordou em iniciar uma investigação. "Seremos muito sérios sobre o caso", disse ele a Trump antes de concordar em conversar com Rudolph Giuliani e o procurador-geral dos Estados Unidos, William Barr.

A vitória de um humorista

A eleição de Zelensky foi uma espécie de humilhação para políticos tradicionais da Ucrânia. Afinal, ele era um humorista da TV que gostava de ridicularizá-los em seus programas.

Zelensky confirmou o favoritismo apontado em pesquisas e venceu com cerca de 73% dos votos, no segundo turno, derrotando o experiente político Petro Poroshenko, que teve 25%.

Sua vitória também foi vista como um protesto da população, explica o correspondente Jonah Fisher, da BBC News. Zelensky liderará o país em um mandato de cinco anos.

"Nunca vou decepcionar vocês", afirmou Zelensky a simpatizantes, no dia da vitória.

Com propostas vagas de campanha e promessas de combate à corrupção, Zelensky passou a comandar um país de 44 milhões de habitantes que é um dos mais pobres da Europa, quase três décadas após sua independência da União Soviética.

Um dos pontos mais sensíveis no país é justamente a relação com a Rússia, que tirou do controle ucraniano a península da Crimeia em 2014 e apoia rebeldes separatistas no leste da Ucrânia, em um conflito que já custou cerca de 13 mil vidas nos últimos cinco anos, explica a agência Reuters.

Durante a campanha, Poroshenko zombou de Zelensky e disse que este não teria a força política para enfrentar o presidente russo, Vladimir Putin.

Zelensky, por sua vez, prometeu manter o rumo pró-Ocidente de seu antecessor e exigir de Putin o fim da ocupação de territórios ucranianos, além de uma compensação pelos conflitos dos últimos anos.

Na Ucrânia, o sistema de governo é classificado como semipresidencialista e o presidente tem poderes significativos nas áreas de segurança, defesa e política externa.

Zelensky herdou, além do conflito travado entre tropas ucranianas e separatistas orientais, a necessidade de manter os esforços da Ucrânia para cumprir requisitos exigidos União Europeia (UE) e, assim, estreitar os laços econômicos com o bloco.

Segundo a UE, cerca de 12% das 44 milhões de pessoas que vivem na Ucrânia estão privadas de direitos, em grande parte aquelas que vivem na Crimeia.

Quem é o humorista

Zelensky, 41, é mais conhecido por seu papel no programa de sátira política chamado Servo do Povo, em que seu personagem, um professor, acidentalmente se torna presidente da Ucrânia, depois que um vídeo seu viraliza. O programa acaba de entrar em sua terceira temporada.

O humorista concorreu sob um partido político de nome idêntico ao do programa e capitalizou em cima do descontentamento dos ucranianos quanto à classe política tradicional, dispensando comícios e preferindo as redes sociais à imprensa tradicional para se dirigir aos eleitores.

Diversos veículos assinaram uma carta aberta conjunta pedindo que Zelensky respondesse às perguntas dos jornalistas e esclarecesse pontos de seu vago plano de governo, baseado em slogans como "Se não tem promessa, não tem decepção".

Esse estilo faz com que Zelensky esteja sendo comparado a Ronald Reagan, ator que virou presidente dos EUA entre 1981 e 89, ao populista italiano Beppe Grillo (comediante que encabeça o partido Movimento 5 Estrelas) e até mesmo a Donald Trump.

Recentemente, a agência France Presse destacou que, de um lado, ele é visto como um sinal de revitalização; de outro, porém, críticos acham que ele é um fantoche dos rivais políticos do derrotado Poroshenko — em especial o controverso oligarca ucraniano Igor Kolomoysky, dono da emissora de TV que transmite o Servo do Povo e alvo de inúmeras investigações na Ucrânia que apuram suspeitas de ilicitude em seus negócios.

Zelensky, porém, sempre negou qualquer conexão política e disse, nos últimos dias de campanha, que Kolomoysky seria preso caso fosse confirmada sua culpa em negócios escusos.

O humorista é formado em Direito, mas fez carreira em entretenimento. Sem nenhuma experiência política prévia e sem apresentar muitas propostas concretas de gestão, ele focou sua campanha nas diferenças dele em relação aos demais candidatos.

Apesar disso, derrotou com facilidade o bilionário Poroshenko, que fora alçado ao poder após a queda do governo pró-Rússia em Kiev, em 2014.