Prisão após segunda instância: os argumentos de cada lado no julgamento do STF
Supremo retoma na manhã de hoje julgamento sobre o tema, com manifestações do Ministério Público e da AGU; conheça os principais argumentos de cada um dos lados.
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomará hoje o julgamento que deve ser o mais importante do tribunal este ano: afinal, um réu condenado pela segunda instância da Justiça pode começar a cumprir pena imediatamente, ou só depois que esgotar todos os recursos disponíveis em tribunais superiores - o chamado "trânsito em julgado".
Desde 2016, o Supremo Tribunal Federal entende que o réu pode começar a cumprir pena logo depois de condenado por um tribunal colegiado - isto é, após a condenação pela segunda instância. Agora, este entendimento pode ser revisto.
Se a mudança se concretizar, será a terceira em pouco mais de dez anos: a prisão depois da segunda instância era permitida até 2009, quando o Supremo decidiu que esta possibilidade não estava de acordo com a Constituição. Em 2016, o entendimento mudou.
O julgamento deve entrar esta semana em sua fase mais crítica: os votos de cada um dos 11 ministros que integram a corte.
Não é possível saber o entendimento de cada um dos ministros de antemão, mas o histórico de votações de cada um deles indica qual pode ser a sua posição.
Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, sempre se manifestaram a favor da prisão já após a segunda instância.
Do outro lado, os ministros Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello (relator do caso atual) sempre votaram a favor da prisão somente após o trânsito em julgado. Estes ministros formam o grupo apelidado de "garantista" no tribunal.
O ministro Gilmar Mendes já votou das duas formas - mas recentemente tem feito críticas à prisão após segunda instância. Em entrevista à BBC News Brasil no último dia 11 de outubro, disse que pode adotar a posição de Marco Aurélio, Lewandowski e Celso de Mello. "Eu estou avaliando essa posição. Mas na verdade talvez reavalie de maneira plena para reconhecer (a possibilidade de prisão apenas depois de) o trânsito em julgado", disse.
Há menos indicações sobre os votos da ministra Rosa Weber e do presidente da Corte, Dias Toffoli.
Em 2018, Weber disse que sua opinião pessoal era contra a prisão em segunda instância ? mas votou de forma diversa em um caso envolvendo o ex-presidente Lula em respeito ao entendimento vigente no tribunal. Agora, com o tribunal julgando o tema de forma abstrata, Weber pode se alinhar ao grupo "garantista".
Na primeira sessão de julgamento, na última quinta-feira (17), o Supremo ouviu a Defensoria Pública da União (DPU), que defende a prisão somente após o trânsito em julgado. Falaram também advogados que argumentaram pelos dois lados da disputa.
Agora, serão ouvidos os representantes da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Advocacia-Geral da União (AGU). Os dois órgãos têm posição a favor da regra atual - isto é, de que o réu possa ir para a cadeia já depois de condenado na segunda instância.
O julgamento atual do STF se baseia em três Ações Declaratórias de Constitucionalidades (ADCs), apresentadas pelo antigo Partido Ecológico Nacional (PEN, atualmente rebatizado de Patriota); pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); e pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B).
A decisão do STF tem potencial de tirar da cadeia milhares de pessoas hoje presas, entre elas o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em seu caso mais adiantado, o do chamado "tríplex do Guarujá", Lula já teve recurso negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ? o equivalente à "terceira instância" no sistema brasileiro.
Em geral, representantes do Ministério Público costumam dizer que uma eventual mudança de posição do STF - garantindo a possibilidade de mais recursos antes da prisão - pode provocar impunidade, especialmente de pessoas com dinheiro para contratar advogados.
Mas quais outros argumentos - contra e a favor - já surgiram ou devem aparecer ao longo do julgamento?
A reportagem da BBC News Brasil conversou com o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e com o procurador da República Bruno Calabrich para colher argumentos contra e afavor da mudança de entendimento do STF.
Contra a mudança: STF não pode contrariar própria decisão de 2016
Para o procurador da República Bruno Calabrich, o Supremo arriscará sua própria autoridade e o chamado "sistema de precedentes" do direito brasileiro caso mude de entendimento e passe a proibir a prisão após condenação em segunda instância. Isto porque, em dezembro de 2016, o tribunal reafirmou a tese contrária ao julgar um recurso com repercussão geral reconhecida - ou seja, que criou precedente para todos os tribunais do país.
"No final de 2016, o tribunal julgou um Recurso Extraordinário (RE), com repercussão geral, e reafirmaram o entendimento", diz ele. "Ao julgar o RE, o STF tomou uma decisão que tem força obrigatória para todo o Judiciário, e que o próprio Supremo deveria respeitar", disse o procurador à BBC News Brasil.
O procurador admite que o tribunal pode mudar seu entendimento - no direito, o fenômeno é conhecido como "mutação constitucional", e ocorre quando há uma mudança significativa na sociedade ou no contexto em que a norma é aplicada. Não seria este o caso no momento, para ele. A simples mudança da composição do STF não deveria ser justificativa para a corte mudar de ideia, diz.
A favor: Constituição é clara e STF não deve "interpretar" livremente
Kakay é um dos principais advogados criminalistas do país. Segundo ele, o texto da Constituição é claro ao dizer, em seu artigo 5º, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado" do processo.
"Não é possível que uma cláusula pétrea da Constituição, que é absolutamente clara, possa ser interpretada livremente por um ministro do Supremo (...). O Supremo pode muito, mas não pode tudo. Nenhum poder pode tudo. A interpretação, neste caso, é literal. Se nós permitirmos que, ao sabor dos tempos, ao sabor do momento político, cada juiz tenha a sua interpretação, aí sim causará uma profunda insegurança jurídica", disse ele à BBC News Brasil.
Kakay argumenta ainda, em um texto anterior sobre o tema, que o Código de Processo Penal (CPP) também é explícito ao dizer que "ninguém poderá ser preso senão (...) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado" (art. 283). O artigo, para o advogado, está plenamente de acordo com o que diz a Constituição.
"O que nós queremos é que seja cumprida a Constituição. Quem for contrário a esta norma, que trabalhe então para que haja uma mudança dentro do Legislativo. O Judiciário não pode enfrentar uma cláusula pétrea", diz.
Contra: maioria dos países permite prisão após 2ª instância ou antes
Calabrich diz que, se o STF mudar novamente seu entendimento, o Brasil se distanciará da maioria dos países democráticos do mundo. Fora do Brasil, diz, a prisão geralmente é permitida já após a primeira ou após a segunda instância.
"O Brasil estará dando uma amplitude à presunção de inocência que nenhum outro país do mundo dá. Em geral, nos outros países, o entendimento é o de que ninguém é considerado culpado até que um tribunal, seguindo as regras do jogo, o considere culpado", diz.
O procurador cita o caso de Portugal: a Constituição do país ibérico possui um texto similar ao da brasileira, segundo o qual "O arguido (réu) se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa". E no entanto, em Portugal existe prisão após a segunda instância, segundo o procurador.
A favor: mais pobres serão os maiores atingidos
Na semana passada, advogado público Gabriel Faria Oliveira, hoje chefe da Defensoria Pública da União (DPU), argumentou no Supremo que os réus mais pobres serão os mais afetados por uma eventual manutenção da prisão após segunda instância.
"Existe o discurso falacioso de que este caso só beneficiaria aos crimes de colarinho branco. Não é questão de beneficiar. Atinge a todos igualmente, porque a Constituição tem como destinatários todos os brasileiros", disse Kakay à BBC News Brasil.
"Na realidade, quando a Defensoria Pública entrou como amicus curiae (tipo de intervenção de terceiros no processo), ela veio materializar aquilo que nós falávamos: que o cliente preferencial desta ação é exatamente o cliente da defensoria pública. O negro, o pobre, o despossuído, sem rosto, sem voz. Aquele que muitas vezes não tem condição sequer de se fazer representar por advogado", completou o criminalista.
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