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Decisão do STF pelo fim da prisão após condenação em 2ª instância divide o meio jurídico

Julgamento sobre execução antecipada das penas é considerado um dos mais importantes do ano na Corte - Rosinei Coutinho/SCO/STF
Julgamento sobre execução antecipada das penas é considerado um dos mais importantes do ano na Corte Imagem: Rosinei Coutinho/SCO/STF

08/11/2019 07h34

A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), nesta quinta (27), que tornou inconstitucional a prisão após a condenação em segunda instância, divide o meio jurídico.

Por 6 votos a 5, o STF decidiu que o artigo do Código Penal que declara que ninguém pode ser preso antes do fim do processo (o chamado trânsito em julgado) está de acordo com a Constituição Federal de 1998. Isso significa que condenação em segunda instância sozinha não é mais suficiente para que se prenda alguém antes que acabem todas as possibilidades de recusos.

Parte do meio jurídico, incluindo advogados, acadêmicos e entidades como a OAB (Organização dos Advogados do Brasil) e o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), comemoraram a decisão, dizendo que a Constituição é clara sobre a presunção de inocência.

"É um resgate importante da estabilidade jurídica", diz Caio Augusto Silva dos Santos, presidente da OAB-SP. "Era muito dificil comprender uma interpretação [anterior] que estava sendo dada de uma maneira muito diferente do que diz a Constituição. O Supremo deu o recado que é preciso sim combater a impunidade e a corrupção, mas sem comprometer os direitos fundamentais, buscando sempre a segurança jurídica", diz.

Por outro lado, há grupos que lamentam o novo entendimento da Corte, incluindo membros do Ministério Público Federal. Eles dizem que a decisão tem como consequência a impunidade de pessoas que já tiveram duas condenações. "Lamento que por maioria o Supremo tenha decidido reverter (a possibilidade de execução provisória da pena). Com certeza gera impunidade" afirma a subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen.

Mesmo com a decisão do STF, as pessoas ainda podem ser presas antes do fim do processo se tiverem a prisão preventiva decretada. A prisão preventiva é permitida em casos em que o réu apresenta algum risco se ficar solto - risco à segurança pública, risco de fuga ou risco de interferência no processo.

A decisão desta quinta do STF vai beneficiar quem está preso após segunda instância e não tem prisão preventiva decretada. É o caso do ex-presidente Lula, preso desde 2018 após ter sido condenado por corrupção pelo Tribunal Regional Federal de Curitiba no caso envolvendo o tríplex no Guarujá.

O que exatamente o STF decidiu e quais foram as reações a favor?

O que de fato foi decidido pelo STF foi que o artigo 283 do Código Penal - que declara que ninguém pode ser preso antes do fim do processo a não ser que haja flagrante de crime ou pedido de prisão preventiva - está de acordo com a Constituição Federal de 1998.

A Constituição Federal, no artigo 5º, diz que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", ou seja, que ninguém será considerado culpado até o fim do processo, quando não há mais possibilidade de recursos. O que o STF fez foi declarar que o artigo 283 está de acordo com este artigo 5º.

As entidades e juristas que comemoram a decisão afirmam que o entendimento do STF está correto porque a Constituição é clara sobre a necessidade do fim do processo para que alguém seja considerado culpado, e o artigo 283 do Código Penal confirma esse princípio.

Para que a prisão após condenação em segunda instância fosse autorizada nesta quinta, seria preciso que o STF declarasse que, de alguma forma, que o artigo 283 fere a Constituição, explica à BBC News o professor de criminologia da USP Maurício Dieter, representante do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

"Declarar o artigo 283 inconstitucional seria um absurdo, porque ele é uma espécie de espelho do artigo 5º da Constituição", afirma o professor de direito Constitucional Lênio Streck, um dos autores de uma das ações foram avaliadas pelo STF. Segundo ele, o artigo 283 do Código Penal foi reescrito justamente para que ficasse mais de acordo com a Carta.

Para Dieter, a decisão do STF traz "um reforço da segurança jurídica, afinal reconhece que o que está escrito é o que está escrito".

Segundo o entendimento do professor, que é o mesmo da maioria da Corte, não há espaço para interpretar que o artigo 238 fere a Constituição. "Você não pode alterar o significado óbvio do que está na lei", afirma.

Essa é também a posição do professor de direito penal Gustavo Badaró, da Universide de São Paulo. "A decisão é correta, é muito coerente", diz ele. "O ganho fundamental é o respeito à Constituição. O Supremo pode muito, pode interpretar a Constituição, mas não pode alterá-la."

Lênio Streck afirma que é "um mito" que a decisão vai libertar pessoas perigosas e que deveriam estar na cadeia.

"Quem é perigoso, quem não deveria estar solto, continua podendo ser preso através da prisão preventiva", afirma Streck. "O que essa decisão faz é dar às pessoas com bons antecedentes o direito de aguardar por uma decisão final da Justiça em liberdade."

"Eu estou há três anos e meio lutando por isso, é uma vitória", diz ele que é também membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional.

Diversos dos presos pela operação Lava Jato não serão libertados após a decisão de hoje. É o caso, por exemplo, do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, que cumpre prisão preventiva em três processos diferentes. E também do deputado Eduardo Cunha, que está preso preventivamente por "risco à ordem pública".

Quem discorda da maioria do Supremo?

Quem diverge dessas posições, no entanto, afirma que havia espaço para interpretação e diz que as consequências práticas da decisão de hoje são negativas.

Para a subprocuradora geral da República, Luiza Frischeisen, a questão "é mais ampla do que apenas o artigo 283 do Código Penal".

"Sou da mesma corrente dos (cinco) ministros que foram vencidos" afirma. "É uma questão de que em algum momento as pessoas terão que iniciar o cumprimento da pena", diz ela.

A posição é a mesma do procurador do Ministério Público Federal Bruno Calabrich. "O Brasil será o único país no mundo onde é preciso a decisão da Suprema Corte para que se possa começar a cumprir a pena".

Segundo Frischeisen o dispositivo da prisão preventiva "não atende a necessidade de evitar a impunidade".

"A prisão preventiva tem requisitos próprios. Há casos em que não há ameaça a testemunha, não há um risco iminente, não há nenhum requisito para a prisão cautelar, mas a pessoa já foi condenada em duas instâncias por um crime grave", diz ela.

Para Calabrich, o Supremo também não deveria ter contradito a decisão que já havia tomado em 2016. Na época, a Corte não decidiu o assunto de maneira geral, mas a possibilidade de prisão em um caso individual - e a decisão sobre aquele caso teve repercussão para todos os outros.

"Esse tema já foi decidido em 2016 com julgamento com repercussão geral, que deveria ter cumprimento obrigatório", diz ele. "Com base nessa decisão as ações (que foram analisadas agora) nem precisariam ser analisadas porque já havia uma decisão sobre o assunto."

"É uma questão de racionalidade do sistema", afirma Calabrich.

Desde 2016, os ministros Dias Tofoli, Gilmar Mendes e Rosa Weber mudaram de entendimento, o que modificou o resultado da eleição desta quinta em relação ao de 3 anos atrás.

Segundo Calabrich, essas constantes mudanças de entendimento é que geram insegurança jurídica. "O que impede que uma nova composição da Corte no futuro de forma diferente?". O promotor, no entanto, diz que respeita a decisão tomada. "A decisão está feita e cabe a todos os tribunais e a todos os operadores da Justiça respeitar", afirma.