Por divergência do Brasil, Brics ignora crise sul-americana e muda posicionamento sobre Palestina
Bloco faz alterações em sua declaração final refletindo guinada na política externa conduzida por Bolsonaro.
A declaração final da XI Cúpula do Brics — grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — incorporou demandas do governo Jair Bolsonaro em relação a manifestações anteriores, mas manteve a defesa do multilateralismo, princípio que norteia o bloco desde o início de seus encontros.
"A política externa de meu governo tem os olhos postos no mundo, mas em primeiro lugar no Brasil, para estar em sintonia com as necessidades de nossa sociedade", disse o presidente Bolsonaro, anfitrião do evento em Brasília, durante reunião com Vladimir Putin (presidente da Rússia), Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia), Xi Jinping (presidente da China) e Cyril Ramaphosa (presidente da África do Sul).
O documento foi marcado pela ausência de qualquer menção à forte instabilidade política que se alastrou pelo continente sul-americano nas últimas semanas. Não há comentários sobre a longa crise venezuelana, a instabilidade na Bolívia que levou à renúncia do presidente Evo Morales ou os intensos protestos no Chile.
Questionado, o Itamaraty justificou que apenas assuntos de "envergadura global" são mencionados no documento.
"Venezuela não está na agenda, não é um tópico para essa cúpula", disse também Wang Xiaolong, enviado especial para a cúpula do ministério das Relações Exteriores chinês, ao ser questionado por jornalistas.
A ausência do continente reflete a divergência do Brasil em relação aos outros quatro integrantes do grupo. No caso da Venezuela, em que a posição isolada do Brasil no Brics de forte condenação ao governo de Nicolás Maduro já se notava no governo de Michel Temer, se intensificou depois que o governo Bolsonaro promoveu uma guinada na política externa brasileira, promovendo forte alinhamento com as posições dos Estados Unidos.
Como reflexo da proximidade do governo brasileiro com os governos americano e israelense, a nova declaração do Brics excluiu ainda o apoio à agência para refugiados palestinos (UNRWA) e menção às negociações sobre o status de Jerusalém, cidade reivindicada como capital por palestinos e israelenses. Ambos os temas constavam no comunicado da cúpula de 2018.
Confira a seguir os principais destaques da Declaração de Brasília.
'Nações vibrantes' e multilateralismo
Os negociadores brasileiros, liderados pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se esforçaram nas negociações para incluir no comunicado final uma redação que refletisse a nova retórica do Itamaraty de exaltação da soberania dos países em sobreposição aos organismos internacionais — a Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, foi simbolizada como uma hiena em recente vídeo compartilhado pelo presidente no Twitter.
"Como líderes de nações vibrantes, reafirmamos nosso compromisso fundamental com o princípio da soberania, respeito mútuo e igualdade e com o objetivo comum de construir um mundo pacífico, estável e próspero", destaca o segundo parágrafo do documento.
"Renovamos nosso compromisso de moldar uma ordem internacional multipolar mais justa, imparcial, equitativa e representativa. Também sublinhamos o imperativo de que as organizações internacionais sejam totalmente conduzidas pelos Estados Membros e que promovam os interesses de todos", diz também o sexto parágrafo, comemorado pelo Itamaraty como uma mensagem de que as organizações multilaterais não estão acima das nações.
No entanto, a declaração manteve sua essência de valorização do multilateralismo e de defesa de reforma das instituições internacionais, incluindo ONU, OMC (Organização Mundial do Comércio) e FMI (Fundo Monetário Internacional), "para torná-las mais inclusivas, democráticas e representativas".
"Continuamos comprometidos com o multilateralismo, cooperação de Estados soberanos para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável e garantir a promoção e a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos e construir um futuro compartilhado mais brilhante para a comunidade internacional", destacou o quinto parágrafo do documento.
América do Sul ignorada
Muito embora a América do Sul viva seu momento de maior instabilidade em décadas, a declaração final não faz qualquer comentário sobre a situação — refletindo a falta de consenso no grupo. No total, oito países externos ao bloco são citados, mas nenhum do continente.
Por outro lado, o documento manifesta o apoio do Brics "a uma solução pacífica, diplomática e política para a situação na Península Coreana" e sublinha "a importância da manutenção da paz e da estabilidade no Nordeste Asiático".
Também congratula o povo do Sudão pela assinatura "do Acordo Político e Declaração Constitucional, que consideramos um importante passo para a estabilização da situação política" no país.
E insta todas as partes envolvidas no conflito líbio a "cessarem imediatamente todas as ações militares na Líbia e a se empenharem com as Nações Unidas e o Comitê de Alto Nível da União Africana".
O novo documento, chamado de Declaração de Brasília, contrasta com a Declaração de Fortaleza, documento final do sexto encontro do bloco, sediado na capital do Ceará, em 2014.
Naquela ocasião, onze líderes sul-americanos foram convidados a acompanhar a reunião do Brics. Desta vez, nenhum país externo ao bloco foi convidado, rompendo uma tradição que vinha desde 2013.
"Acreditamos que o diálogo fortalecido entre os BRICS e os países da América do Sul pode desempenhar papel ativo no fortalecimento do multilateralismo e da cooperação internacional, para a promoção da paz, segurança, progresso econômico e social e desenvolvimento sustentável em um mundo globalizado crescentemente complexo e interdependente", destacava a declaração de cinco anos atrás.
"Reafirmamos nosso apoio aos processos de integração da América do Sul e reconhecemos, sobretudo, a importância da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) na promoção da paz e da democracia na região, e na consecução do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza", dizia ainda o comunicado de 2014.
Conflito Israel-Palestina
A nova posição do governo brasileiro sobre o conflito entre Israel e Palestina levou à redução do espaço dedicado ao tema nesta declaração.
O grupo reiterou "que a solução de dois estados permitirá que israelenses e palestinos vivam lado a lado, em paz e segurança", mas acrescentou "a necessidade de novos e criativos esforços diplomáticos para atingir-se uma solução justa e abrangente do conflito israel-palestino, a fim de alcançar a paz e a estabilidade no Oriente Médio".
Devido à oposição do governo brasileiro, foi retirado do texto o trecho que, na declaração final de 2018, destacava que o status de Jerusalém — cidade considerada sagrada por judeus, cristãos e islâmicos, e reivindicada como capital por israelenses e palestinos — será definido ao final de negociações de paz entre os dois lados.
Por trás dessa mudança, está a tentativa do governo brasileiro de seguir o governo americano na transferência de sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, gesto que implicaria reconhecer a cidade como capital israelense. Bolsonaro chegou a anunciar a mudança, mas recuou devido ao risco de retaliações de países árabes na compra de produtos agrícolas brasileiros.
Atendendo ao Brasil, também saiu o parágrafo que apoiava a agência da ONU para refugiados palestinos (UNRWA). A posição se alinha à decisão do governo de Donald Trump, que em agosto de 2018 cortou repasses dos Estados Unidos ao órgão.
Na Declaração de Joanesburgo, do ano passado, o Brics ressaltou o "papel vital no fornecimento de saúde, educação e outros serviços básicos para quase 5,3 milhões de refugiados palestinos" prestado pela agência. Os cinco sublinharam "ainda a sua relevância para trazer estabilidade para a região e a necessidade de garantir um financiamento mais adequado, suficiente, previsível e sustentável para a agência".
Barreiras com 'base científica'
Por demanda brasileira, também foi incluída no documento uma defesa da "importância da agricultura de bases científicas", que não aparecia na declaração passada.
Segundo o Itamaraty, esse posicionamento busca posicionar o bloco contra barreiras sanitárias para importação de produtos agrícolas.
A agronegócio brasileiro historicamente enfrenta esse tipo de obstáculo contra seus produtos, inclusive de países do Brics. No início desto ana, a China estabeleceu restrições à importação de frango brasileiro.
No momento, o Itamaraty também trabalha para reverter limitações à entrada de carne brasileira nos EUA.
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