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Coronavírus: a dor das famílias proibidas de enterrar seus mortos na Itália

"Cobrimos os corpos com as roupas que as famílias nos dão, como se estivessem vestidos" - JILLA DASTMALCHI
'Cobrimos os corpos com as roupas que as famílias nos dão, como se estivessem vestidos' Imagem: JILLA DASTMALCHI

Sofia Bettiza

BBC World Service

25/03/2020 15h58

Parentes e amigos não podem dar último adeus aos entes queridos que morreram para evitar a propagação do vírus

Quando alguém que você ama morre, dizer adeus pela última vez significa muito.

Mas o coronavírus está roubando dos italianos a chance de se despedirem de seus entes queridos.

A pandemia provocada pelo vírus que surgiu na China vem tirando a dignidade dos mortos e agravando a tristeza dos vivos.

"Essa pandemia mata duas vezes", diz Andrea Cerato, que trabalha em uma funerária em Milão.

"Primeiro, ele isola você de seus entes queridos logo antes de morrer. Então, não permite que ninguém se aproxime."

"As famílias estão arrasadas e acham difícil aceitar", acrescenta Cerato.

Morrendo em isolamento

Muitas vítimas de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, estão morrendo em isolamento hospitalar sem família ou amigos. As visitas são proibidas porque o risco de contágio é muito alto.

Embora as autoridades de saúde digam que o vírus não pode ser transmitido postumamente, ele ainda pode sobreviver nas roupas por algumas horas. Isso significa que os cadáveres estão sendo selados imediatamente.

"Muitas famílias nos perguntam se podem ver o corpo uma última vez. Mas é proibido", diz Massimo Mancastroppa, agente funerário de Cremona.

Os mortos não podem ser enterrados com suas roupas favoritas e mais elegantes. Em vez disso, resta-lhes o sombrio anonimato de um traje hospitalar.

Mas Mancastroppa faz o que pode.

"Cobrimos o cadáver com as roupas que a família nos dá, como se os vestíssemos", diz ele. "Uma camisa por cima, uma saia por baixo."

"Eles não têm escolha a não ser confiar em nós"

Nessa situação sem precedentes, esses agentes funerários se veem como famílias substitutas.

Amigos substitutos. Até padres substitutos.

Isso ocorre porque as pessoas próximas àquelas que morrem do vírus geralmente ficam em quarentena.

"Assumimos toda a responsabilidade por eles", diz Cerato.

"Enviamos aos entes queridos uma foto do caixão que será usado, depois pegamos o cadáver no hospital e o enterramos ou cremamos. Eles não têm escolha a não ser confiar em nós".

O mais difícil para Cerato é não conseguir aliviar o sofrimento dos enlutados. Em vez de contar às famílias tudo o que poderia fazer, ele agora é forçado a listar tudo o que não pode mais fazer.

"Não podemos vesti-los, não podemos pentear seus cabelos, não podemos maquiá-los. Não podemos prepará-los para parecerem bonitos e em paz. É muito triste."

Um dever para com os que partiram

Como seu pai, Cerato é agente funerário e exerce a profissão há 30 anos.

Ele diz acreditar que essas pequenas coisas são muito importantes para os enlutados.

"Acariciar sua bochecha pela última vez, segurar sua mão e vê-lo parecer digno. Não ser capaz de fazer isso é muito traumático."

Por causa desta pandemia, os agentes funerários tampouco podem ter qualquer contato com as famílias dos mortos.

Os familiares ainda tentam passar notas manuscritas, objetos com valor sentimental, desenhos e poemas, na esperança de sejam enterrados ao lado de seus entes queridos.

Mas nada disso será posto nos caixões.

Enterrar itens pessoais agora é ilegal. Uma medida drástica, mas tomada para impedir a propagação da doença.

Se alguém morre em casa, os agentes funerários ainda são autorizados a entrar - mas eles precisam usar equipamento de proteção completo: óculos, máscaras, luvas, casacos.

É uma visão profundamente angustiante para alguém que acabou de ver um ente querido morrer.

Mas muitos agentes funerários estão agora em quarentena. Alguns tiveram que fechar seus negócios.

Uma grande preocupação é que aqueles que lidam com os mortos não têm máscaras ou luvas suficientes.

"Temos equipamentos de proteção suficientes para nos manter por mais uma semana", diz Cerato.

"Mas quando eles acabarem, não poderemos mais operar. E somos uma das maiores agências funerárias do país. Não consigo nem imaginar como as outras estão lidando."

Funerais proibidos

Uma lei nacional de emergência proibiu funerais na Itália para impedir a propagação do vírus.

Isso é inédito para um país com valores católicos tão fortes.

Pelo menos uma vez por dia, Andrea enterra um corpo e ninguém aparece para se despedir - porque todos estão em quarentena.

"Uma ou duas pessoas podem estar lá durante o enterro, mas isso é tudo", diz Massimo. "Ninguém se sente capaz de dizer algumas palavras; resta apenas o silêncio."

Sempre que pode, ele tenta evitar isso. Então dirige para uma igreja com o caixão no carro, abre o porta-malas e pede a um padre que faça uma bênção.

Isso geralmente é feito em segundos. A próxima vítima espera.

Um país inundado de caixões

A indústria mortuária está sobrecarregada e o número de mortos continua aumentando.

Até agora, a Itália é o país com mais mortos por coronavírus - são mais de 6 mil no total.

"Há uma fila do lado de fora da nossa agência funerária em Cremona", diz Andrea.

"É quase como um supermercado."

Necrotérios de hospitais no norte da Itália estão lotados de cadáveres.

"A capela do hospital em Cremona parece mais um armazém", diz Mancastroppa.

Muitos outros caixões estão se acumulando nas igrejas.

Em Bergamo, que tem o maior número de casos na Itália, os militares tiveram que intervir - os cemitérios da cidade estão agora cheios.

Uma noite, na semana passada, os moradores assistiram em silêncio enquanto um comboio de caminhões do Exército dirigia lentamente mais de 70 caixões pelas ruas.

Cada um continha o corpo de um amigo ou vizinho sendo levado para uma cidade próxima para ser cremado.

Poucas imagens foram mais chocantes ou pungentes desde o início do surto.

'Transportadores de almas'

Médicos e enfermeiros de todo o país foram aclamados como heróis, salvadores neste momento, que é um dos mais sombrios da história da Itália.

Mas os diretores de funeral não receberam reconhecimento pelo que também estão fazendo.

"Muitas pessoas nos veem apenas como transportadores de almas", suspira Massimo.

Ele diz que muitos italianos veem seu trabalho da mesma maneira que veem Caronte, o sinistro barqueiro mitológico do submundo que carrega as almas dos recém-falecidos através de um rio que divide o mundo dos vivos do mundo dos mortos.

Uma tarefa ingrata e impensada aos olhos de muitos.

"Mas posso garantir que tudo o que queremos é dar dignidade aos mortos."

#Andratuttobene ("tudo vai ficar bem", em tradução livre) é uma hashtag que viralizou na Itália desde que a crise eclodiu. Vem acompanhada por um emoji de arco-íris.

Mas no momento não há arco-íris à vista. E embora todos rezem por isso, ninguém sabe exatamente quando tudo ficará bem novamente.

*Ilustrações de Jilla Dastmalchi