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Coronavírus: 'Somos treinados a nos acostumar com a morte, mas não nos acostumamos', diz enfermeira brasileira na Itália

Enfermeira na Itália, brasileira Cláudia de Morais trabalha em hospital que agora só atende pacientes de covid-19 - Arquivo Pessoal
Enfermeira na Itália, brasileira Cláudia de Morais trabalha em hospital que agora só atende pacientes de covid-19 Imagem: Arquivo Pessoal

Juliana Gragnani - @julianagragnani - Da BBC News Brasil em Londres

26/03/2020 16h47

Cláudia de Morais gravou vídeo para a família que acabou se espalhando pelas redes; ela trabalha em hospital em Milão que agora só atende pacientes de covid-19 e conta como é seu dia a dia.

Profissionais de saúde que trabalham nos setores de pronto-socorro de hospitais estão acostumados a ver todos os dias casos diferentes.

Há mais de um mês, contudo, as mesmas cenas martelam na cabeça da enfermeira brasileira Cláudia de Morais: pacientes com tosse, dificuldade para respirar e em estado de confusão mental pela falta de oxigênio.

"Muitos morrem no pronto-socorro mesmo, em cima de uma maca porque não temos cama adequada mais confortável, porque não dá tempo", diz. Todos com suspeita ou confirmação de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

A brasileira de Goianópolis, Goiás, mora há 20 anos na região metropolitana de Milão, no norte da Itália. A região é a mais afetada pelo coronavírus, e o país ultrapassou a China em número de mortos e infectados pela pandemia.

'Sentimento de dever'

Desde o fim de fevereiro, o hospital onde trabalha, Policlínico San Donato, na periferia da cidade, passou a atender exclusivamente pacientes de covid-19.

"Normalmente, o pronto-socorro é cada dia um lugar diferente. Agora, vemos sempre as mesmas coisas", diz ela, por Skype, de uma sala do hospital, à BBC News Brasil. "Nós enfermeiros somos treinados a nos acostumar com a morte, mas não nos acostumamos. Quando você perde um paciente a cada três, quatro dias, é uma coisa. Quando você perde todos os dias... É muito difícil."

"Estamos vivendo uma guerra", repete algumas vezes, contando sobre seu trabalho árduo no hospital e a tristeza de ver pacientes morrendo sozinhos, sem contato com a família. Mas deixa claro: não se vê como especial pelo trabalho que vem fazendo.

"Não somos heróis. Estamos fazendo o nosso trabalho do dia a dia, com medo, como todas as outras pessoas, mas com o sentimento de dever para a sociedade", diz.

No fim de semana, o apresentador Luciano Huck publicou em sua conta de Instagram um vídeo de Morais. Paramentada com seu uniforme de enfermeira, ela fazia um alerta: "Quem vai para a terapia intensiva tem muitas chances de não morrer, só que não tem lugar para todo mundo (...) Podem acreditar que é pior do que vocês estão imaginando".

O vídeo viralizou, e só na conta de Huck teve mais de 4 milhões de visualizações. Mas não era para ter sido divulgado - ela havia mandado só para uma pessoa mandar no grupo de WhatsApp da família.

"Quando acordei, tinha milhões de visualizações, eu não entendi nada", diz. "Nunca aconteceu uma coisa dessas comigo, me assustou muito. Agora estou tentando pensar que minha família é todo o Brasil", brinca, dizendo-se orgulhosa de ser uma brasileira ali, na linha de frente de combate.

"Venho de uma realidade muito humilde. Sou resiliente desde criança, acostumada com o sofrimento. Ter crescido no Brasil me fez mais forte", afirma.

Seu objetivo com o vídeo era convencer os idosos da sua família a se protegerem e não saírem de casa, mas ela teme que tenha causado pânico na população. Então, agora, a primeira coisa que diz é: "Não entrem em pânico. Mas tomem cuidados".

Cuidados para evitar a disseminação do vírus incluem o distanciamento social (mantendo dois metros de distância entre as pessoas) e a higiene (lavando as mãos com frequência).

Morais deletou seu perfil das redes, mas diante da grande quantidade de mensagens que recebeu de profissionais de saúde do Brasil pedindo conselhos, decidiu criar uma nova conta para falar sobre o assunto (@claudia.demorais.off, no Instagram).

De Goianópolis à Itália

Há 20 anos, Morais trancou a faculdade de matemática e deixou Goianópolis, pequena cidade de 11 mil habitantes, para viajar pela Europa com uma amiga. O plano era ficar viajando por dois anos, mas gostou da Itália, conheceu o homem (também brasileiro) que se tornaria seu marido e acabou ficando por lá.

Alguns anos depois, realizou o sonho de estudar enfermagem na Universidade de Pavia, na Lombardia. "Sempre gostei de tomar conta das pessoas, de ter contato com elas. É algo meu, de dentro, de sempre."

E nunca imaginou que passaria pela situação pela qual passa agora, é claro, embora tenha recebido treinamento para lidar com o ebola há alguns anos.

Suas filhas, de 14 e 16 anos, também foram envolvidas na batalha. A mais velha mudou-se para a casa de uma vizinha para liberar um quarto. Ali, Morais fica isolada da família, dormindo no cômodo separado e fazendo refeições sozinha. Além disso, todos os dias ela passa para ver a filha mais velha de uma "distância necessária". "Ela fica no jardim e eu fico na rua."

Na cidade onde mora, a 30km de Milão, Morais diz conhecer várias pessoas que perderam a vida por causa do novo coronavírus. "Todos os dias eu vejo um nome novo de uma pessoa que eu conheço. Eu perdi as contas. Vou contar depois que tudo isso passar."

'Gripezinha?'

Quando publicou o vídeo de Morais em sua conta, Luciano Huck, considerado um dos possíveis candidatos à Presidência em 2022, mandou um recado: "Para quem acha que é só mais uma gripezinha... Para quem acha que é exagero... Obrigado por compartilhar, Cláudia".

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, já disse que, por seu "histórico de atleta", caso fosse contaminado pelo coronavírus, nada sentiria ou "seria acometido de uma 'gripezinha' ou 'resfriadinho'".

A enfermeira diz não querer entrar em questões políticas. "Não sou eu a pessoa indicada para dizer o que é certo ou errado. Cada país tem suas prioridades e profissionais competentes para avaliar as decisões", afirma. Mas defende o distanciamento social como forma de combater a disseminação do vírus.

Não é uma gripe como outras, diz ela, "pelo número de contágios, alta virulência, por contagiar pessoas que estão com a saúde boa e pela pneumonia mais grave que provoca". "Há pacientes que chegam no pronto-socorro com uma saturação de oxigênio de 70% s 80% tendo tido oxigênio na ambulância. É uma insuficiência respiratória grave."

O enfermeiro Filippo Bigioni, coordenador do pronto-socorro do Hospital Policlínico San Donato, onde Cláudia trabalha, concorda. A covid-19 não é apenas uma gripe. "Nunca vimos algo assim, nem com a Sars em 2003", diz ele à BBC New Brasil. "Vemos pneumonias devastadoras. São coisas novas que nem os pneumólogos tinham visto", afirma.

O hospital foi completamente transformado por causa da doença. Oferece ao menos 200 leitos para pacientes de covid-19. Na UTI, são 28 leitos, com previsão de abertura de mais 12.

Bigioni conta que salas de cirurgia foram transformadas em UTI e que equipes médicas foram unificadas - cirurgiões e médicos com outras especialidades, por exemplo, agora atendem pacientes de covid-19.

Ele trabalhou na transformação do hospital, elaborando novas formas de fluxo de trabalho e instruindo as equipes. "Abrimos um departamento por dia, e cada dia instruímos os médicos e enfermeiros de um andar", diz Bigioni, que também está vivendo isolado da família, em uma outra casa. Desde o começo de março, conta ele, o hospital atinge lotação máxima todos os dias.

Morrem sozinhos

Os relatos de médicos na Itália que mais têm impressionado quem não vive na pele o que acontece no país são os que falam sobre a "escolha de Sofia" de médicos ali, que teriam que escolher entre um ou outro paciente para salvar por não ter leitos ou equipamentos suficientes. Além disso, assustam também os relatos sobre como pacientes têm morrido sozinhos, sem poder se despedir de familiares.

Morais comenta as duas situações.

Primeiro, esclarece que o critério para admitir alguém na UTI não é apenas a idade, e que isso é um procedimento normal em hospitais. Médicos criam um algoritmo para fazer essa escolha em que cruzam as patologias crônicas dos pacientes, sua capacidade respiratória, idade, grau de criticidade daquele momento, entre outros.

Quando há mais disponibilidade de leitos na UTI, esse algoritmo "se alarga", ou seja, há mais margem para pacientes irem para a terapia intensiva. Agora, no entanto, "estamos estreitos" - mais critérios são utilizados, e a idade é um deles. No entanto, assegura que todos os pacientes estão recebendo assistência, do início ao fim.

Depois, conta que, de fato, muitos pacientes morrem sozinhos. É política do hospital não admitir qualquer outra pessoa que não o paciente para não disseminar o vírus. Acompanhantes estão proibidos.

Pacientes que estão em condições de usar o celular ficam em contato com seus familiares, mas os que não estão dependem dos profissionais de saúde para fazê-lo, e nem sempre é possível fazer isso para todos ou o tempo todo.

"Sentimos compaixão pelos pacientes que estão isolados. Muitas vezes não podemos estar com eles, e eles ficam sozinhos dentro de um quarto sem os familiares", lamenta Morais.

"Muitos deles não conseguem se despedir ao telefone, e mandam recados por nós. Mensagens como: 'Avisa minha mulher que eu amo ela' e expressão de gratidão pela vida em geral." Ela conta ainda não ter conseguido dar o recado para esses familiares.

"Eu tenho um carinho especial pelos idosos. Na fase terminal, gosto de dar uma atenção especial, lavar, perfumar, acolher a família, no limite do possível consigo fazer isso. E agora, nesse período, não podemos."

Impotência e fé

Esse "inimigo invisível" faz com que ela se sinta impotente.

"A empatia às vezes é um negócio difícil. Se você se colocar no lugar do paciente, você pode entrar em crise", diz ela, que atribui parte de sua resiliência até agora à fé.

"Se não fosse a minha fé, eu já teria caído. Já teria ido para além da ajuda psicológica."

De acordo com ela, há colegas que estão em crise, choram durante os plantões e pedem para ficar afastados do pronto-socorro durante meia hora para respirar um pouco. O hospital abriu um ambulatório psicológico aos profissionais de saúde.

Mas não é exatamente o momento de agora que preocupa a enfermeira, mas o "pós-guerra". "Agora a adrenalina está alta, depois vamos ver as consequências em todos nós."

Para seguir com seu trabalho todos os dias, Morais conta que sai de casa e deixa "a Cláudia da família". Entra no trabalho e veste a "Cláudia do combate". E, quando tira o material de proteção todos os dias, deixa o que passou no hospital ali.

"Demorou um tempo para desenvolver essa técnica. Mas tem dias que a gente não consegue, voltamos para casa tristes. Somos humanos", diz, desejando que no Brasil a situação não seja tão grave como na Itália.