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Covid-19 pode abalar populismo nos EUA e no Brasil, diz pesquisador alemão

Paula Adamo Idoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo

12/04/2020 10h46

A emergência provocada pelo coronavírus e a reação de governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro — em geral, mais cética às evidências científicas e, no caso do brasileiro, reativa às orientações de isolamento social da população e minimizando o poder destrutivo do vírus— podem enfraquecer modelos populistas nos EUA e no Brasil, opina o acadêmico Yascha Mounk, pesquisador das crises vividas pelas democracias liberais e do populismo, estrutura política da qual é crítico contumaz.

O alemão Mounk é também professor associado de Prática de Assuntos Internacionais na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e autor de livros como O povo contra a democracia - por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la.

Yascha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Alemão Mounk pesquisa democracias liberais e populistas
Imagem: Arquivo pessoal
Em entrevista à BBC News Brasil, ele opina que a pandemia pode fazer sociedades "aprenderem lições difíeis de serem aprendidas em tempos normais" a respeito dos impactos do desdém de governos populistas à ciência e a instituições democráticas. Em contrapartida, diz ele, o atual momento pode também fortalecer alguns governos populistas de tendências autoritárias, como tem acontecido na Hungria.

"Eu acho que vai haver uma mistura desses dois cenários — em países onde o populismo está mais entrincheirado, essa é a oportunidade de criar ditaduras que vão ser difíceis de desmontar."

A seguir, os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Até agora, qual acha que foi o impacto da pandemia em democracias ao redor do mundo?

Yascha Mounk - É importante dizer que o primeiro impacto tem sido na vida dos cidadãos, mais do que no sistema político. Este (momento) é o maior perigo à saúde e à segurança das pessoas, certamente nas democracias desenvolvidas, que vemos em muito tempo.

Ainda é cedo para dizer se vamos limitar as fatalidades por essa doença a um nível tolerável ou se teremos milhões de mortos ao redor do mundo. E essa é a pergunta mais importante.

Mas óbvio que, em tempos em que a democracia está sob ataque em muitos países, tem uma segunda pergunta muito importante: o que isto fará com nossos sistemas políticos?

O que vemos, até agora, em alguns dos países onde ditadores estavam já bem entrincheirados, (a pandemia) lhes deu uma desculpa e uma oportunidade de destruir instituições democráticas mais rapidamente e amplamente do que poderiam ter feito em outras circunstâncias.

A Hungria é o exemplo mais extremo disso. (O premiê) Viktor Orbán rapidamente usou a crise como desculpa para essencialmente abolir o Parlamento e a liberdade de expressão no país. Também há desdobramentos preocupantes em países como as Filipinas (onde o Congresso recentemente aprovou leis que dão mais poderes ao presidente Rodrigo Duterte), mostrando que o mesmo pode acontecer em outros países.

BBC News Brasil - As democracias têm se mostrado capazes de lidar com uma crise desta dimensão e com os dilemas de isolar as pessoas? Tem sido dito que a China, com um regime autoritário, conseguiu fazer o isolamento das pessoas mais rapidamente.

Mounk - Também ainda é muito cedo para falar qual regime político vai se mostrar mais eficiente. Até agora, vimos que virtualmente todos os países e todos os regimes fracassaram em lidar com a doença adequadamente. É enfurecedor mas, se tratando de uma epidemia diferente de tudo o que vimos nos últimos cem anos, talvez tampouco seja motivo de surpresa.

Quando olhamos para ditaduras, o histórico é misto. Veja o Irã, onde (a situação) é terrível, com sua falta de liberdade de expressão e com a falta de resposta (à pandemia) para sua população. A própria China, que lidou com o vírus de forma bastante impressionante sob alguns aspectos, também carrega uma grande culpa pela pandemia global por suas falhas em como respondeu no início da crise.

As democracias não estão se cobrindo de glória, mas ainda é cedo para saber se se sairão piores no longo prazo.

Mas acho que a questão é: é tentador pensar que as democracias, por suas regras rígidas, são incapazes de colocar limitações na população, que são incapazes de lidar com a pandemia. E países como a Coreia do Sul provam que isso está errado.

É uma democracia que conseguiu responder de modo ágil às demandas da pandemia. E vemos alguns países seguir o mesmo receituário.

Nada sobre a natureza da democracia pode nos impedir de ter uma resposta enérgica ao vírus e, dado o perigo à vida de tantas pessoas, devemos estar dispostos a fazer sacrifícios temporários no modo como vivemos.

O importante é que todas as medidas tomadas sigam três precondições rígidas: 1) sejam temporárias e reautorizadas em curtos períodos de tempo; 2) sejam sujeitas ao controle democrático e judiciário, para que, caso o presidente ou premiê diga 'quero manter esses poderes por mais tempo', haja um mecanismo de controle que o impeça; 3) sejam precisamente customizadas para a salvação das vidas.

O que Orbán está fazendo na Hungria não cumpre com nenhum desses requisitos - prender as pessoas pelo que elas falam nas redes sociais ou abolir o Parlamento não são medidas necessárias para salvar vidas.

BBC News Brasil - E quanto a outros governos ditos populistas? Trump mudou bastante seu discurso, enquanto no Brasil Jair Bolsonaro aparentemente se isola criticando o isolamento social. Qual acha que será o efeito da pandemia sobre o populismo?

Mounk - Há uma possibilidade otimista. Os críticos do populismo sempre advertiram do perigo para a vida dos cidadãos de que se você fere as instituições democráticas e desdenha os especialistas, no fim das contas as pessoas pagarão por isso. Em tempos normais, essa é uma lição difícil de ser aprendida. Nos EUA, muitos americanos poderiam dizer, 'minha vida está indo muito bem, não sinto o impacto disso (erosão das instituições) na minha vida'. Isso porque o Estado é uma máquina bem azeitada, que consegue seguir normalmente mesmo quando sob ataque ou sob lideranças incompetentes.

Em um momento de crise, todos esses defeitos ficam mais dolorosamente evidentes. A ausência de liderança, a desconfiança dos especialistas e inabilidade de coordenação custam vidas americanas, e talvez custem mais vidas brasileiras nos próximos meses.

Nisso, a possibilidade otimista é que as pessoas reconhecem o dano disso e se rebelem contra o populismo.

A possibilidade pessimista é de que as pessoas se alinhem a suas bandeiras e seus governos, mesmo que ele seja incompetente. E de que a ideia de que o mundo é um lugar perigoso e de que precisamos de restrições às viagens e a pessoas de fora e de que precisamos de um líder forte pode ter mais apelo em tempos perigosos, do que em tempos menos perigosos. Isso favoreceria o populismo.

Eu acho que vai haver uma mistura desses dois cenários — em países onde o populismo está mais entrincheirado, essa é a oportunidade de criar ditaduras que vão ser difíceis de desmontar.

Mas acho que na maioria dos países, a perda de vida que estamos experimentando e as dificuldades econômicas à frente vão favorecer a oposição. Em lugares como os EUA ou o Brasil, acho que o populismo ficará enfraquecido, porque as pessoas vão culpá-los (governos) pelas dificuldades que virão.

Talvez em países como a França, onde populistas são a oposição, (a crise) pode ajudá-los a ascender ao poder.

BBC News Brasil - No Brasil, então, você acha que pode enfraquecer o populismo.

Mounk - Como diria Churchill (líder britânico durante a Segunda Guerra), ainda estamos no fim do começo, mais do que no começo do fim. Então vai depender de muitos fatores políticos, inclusive se Jair Bolsonaro vai finalmente fazer a coisa certa (em promover o isolamento social) e proteger os brasileiros da doença. Dado o fato de como ele tem negado a realidade e sido incompetente em sua resposta, e quantos brasileiros podem sofrer por causa disso, ele ficará mais enfraquecido.

BBC News Brasil - Tanto Twitter quanto Facebook apagaram postagens de Bolsonaro por contradizerem os critérios estabelecidos para fatos científicos. As redes sociais são uma importante ferramenta da estratégia política do presidente. Acha que isso mudará como ele se relacionará com sua base?

Mounk - Não, acho que ele continuará a manter seu contato vias redes sociais, e não está clara para mim a sabedoria (das redes sociais) em apagar essas postagens. Acho que há algumas pessoas que, pela importância do cargo político que ocupam, devem ter sua presença nas redes sociais tolerada, mesmo que eles digam coisas que são erradas ou mentirosas. E duvido que apagar os posts limite o alcance de sua mensagem — porque, é claro, todos imediatamente escrevem reportagens a respeito e sobre o fato de que as postagens foram apagados, e assim a mensagem alcança um número maior de pessoas.

Acho que o único jeito de combater palavras é com palavras melhores.

Felizmente, estamos em um cenário em que a mentira de que esta doença não é particularmente perigosa, de que é só uma gripe, vai ser desmentida perante nossos olhos, inclusive nas ruas do Brasil.

Compartilho da repulsa de que um presidente que jurou proteger seu povo esteja fracassando em fazê-lo. (Mas) a solução para isso é críticas, protestos, eleições, e não censurar as palavras de um presidente.

BBC News Brasil - Falando sobre eleições, é discutida a possibilidade de se adiar eleições tanto nos EUA quanto no Brasil. Qual acha que seria o impacto disso? Há quem diga que o impacto seria enorme para as democracias.

Mounk - A extensão da polarização e a extensão da desconfiança que a oposição corretamente tem a respeito de governos, da Polônia ao Brasil e aos EUA, limita as opções.

Em tempos menos polarizados, poderia-se imaginar, em governos sem ambições autocráticas, que as pessoas tolerariam o adiamento de eleições por motivos extraordinários de saúde pública.

Quando temos presidentes e premiês que sistematicamente minaram instituições públicas e expressaram desdém pelo sistema democrático, é difícil para a oposição (...) aceitar o adiamento de pleitos. Então acho que é certo que haverá eleições nos EUA em novembro, mas o que precisa ser feito agora é colocar em marcha as condições para que elas ocorram de modo seguro - disponibilizar o voto postal em todos os lugares, buscar formas de voto online. De modo que se a emergência de saúde pública persistir, teremos eleições de modo legítimo.

BBC News Brasil - Nesse sentido, podemos ver novas formas de colocar a democracia em ação? Você mencionou o voto online. Tampouco pode-se protestar agora. Podem novas formas de relacionamento com governos emergir?

Mounk - Não acho que serão inteiramente novos. Muitos Estados (americanos) já têm a habilidade de votar por correio. Já há muito ativismo online, em vez de pessoalmente. Mas acho que haverá uma aceleração na mudança.

BBC News Brasil - Acha que a ciência e o jornalismo profissional, que passavam por momentos difíceis, vão ser vistos de forma diferente após esta pandemia?

Mounk - Eu faria uma distinção entre a ciência e o jornalismo neste caso em particular. Espero que isto faça as pessoas levarem a ciência mais a sério e riscos invisíveis mais a sério. Fazia anos que especialistas em saúde pública alertavam sobre vírus que passam de animais para hospedeiros e para humanos e que quando tivéssemos azar, um deles seria muito mortífero e para isso precisávamos de uma melhor infraestrutura de saúde pública e mais dinheiro para monitoramento. E esses especialistas foram amplamente ignorados, porque 'faz cem anos que não temos uma pandemia, por que teríamos uma agora?'. E acabou que tivemos.

Há muitos desafios potencialmente fatais que têm a mesma estrutura (que o coronavírus). Um exemplo que todos os que estudam isso sabem: a crescente incidência de bactérias resistentes a antibióticos. Sabemos que estamos ficando sem antibióticos e que a expectativa de vida seria significativamente encurtada se não pudéssemos ir ao médico local sem ser infectado por algum desses micro-organismos. E, no entanto, o dinheiro que estamos investindo em novas drogas para isso é minúsculo.

Novamente, é bom deixar claro que drogas antibacterianas não têm nada a ver com o corona, que é um vírus. Mas a estrutura do problema é a mesma, e espero que, a partir da experiência com o coronavírus, as pessoas digam 'precisamos ter cuidado também com outros problemas de saúde pública que podem ser ainda mais desastrosos e causar ainda mais mortes'.

Mas sou cético quanto a se a crise vai aumentar a confiança no jornalismo profissional. Por enquanto, as pesquisas nos EUA mostram aumento na confiança e gratidão a professores escolares, profissionais da saúde e funcionários de supermercados, governadores — mas não a jornalistas.

Acho que isso se deve parcialmente a uma exageração (de críticos) às falhas do jornalismo, mas também parcialmente aos erros do jornalismo. Alguns dos mais respeitados jornais e revistas estavam, em janeiro e fevereiro e início de março, 'eis por que é irracional se preocupar demais com uma pandemia e por que ela não vai afetar sua vida pessoalmente'. E eles estavam errados. Não acho que os jornalistas devam estar celebrando agora.

BBC News Brasil - Você acha que os perigos foram minimizados?

Mounk - Há dois níveis de fracasso aqui, para políticos e para o jornalismo. Há as pessoas que ativamente negaram a ciência e estavam mais preocupados com suas próprias mensagens políticas do que com salvar vidas e, como resultado, farão essa pandemia pior do que poderia ser. Isso inclui gente como Trump e Bolsonaro e incluiu por muito tempo emissoras como a FoxNews. Esse é o nível mais profundo de fracasso.

Mas há outro nível: de todos os líderes democráticos e jornalistas que não são hostis à ciência que moveram mais rapidamente quando perceberam a natureza (da crise), mas que demoraram demais a reconhecer que isto não é igual à Sars, que não é igual a ameaças de outras doenças prévias, e que medidas extraordinárias serão necessárias para resolver. E que também não ficaram à altura de seus cargos.

BBC News Brasil - Estamos vendo grandes gastos de governo em buscas por vacinas, em renda adicional para seus cidadãos. Acha que mudarão as expectativas dos cidadãos quanto a seus governos - por exemplo, de cidadãos americanos quanto à saúde pública?

Mounk - É provável que leve a mais aumentos nos gastos de saúde pública em diferentes países. Nos EUA, espero que leve à uma passagem para um sistema mais universal de saúde pública, além de mais regulação (de licença de trabalho) para que pessoas doentes possam ficar em casa e serem remuneradas.

Sem dúvida, individualmente cada país viverá mudanças. Se isso levará a mudanças sistemáticas em como os sistemas de saúde funcionam, eu ainda duvido.

BBC News Brasil - De volta aos três sacrifícios que você recomendou para o momento atual - que recomenda que sejam temporários, validados pela Justiça e adequados à salvação de vidas -, acha que devemos aceitar que perderemos liberdades individuais por conta da pandemia? Até qual limite isso é aceitável?

Mounk - Estamos em uma situação extraordinária em que você pode estar se sentindo perfeitamente bem, mas estar infectada e, ao sair para um café, acabar infectando um grande número de pessoas. E se todos nós fizermos isso, nossos hospitais ficarão sobrecarregados em poucas semanas.

Acho que somos moralmente obrigados a fazer sacrifícios neste momento, que não tem precedentes, pelo menos na minha existência. Nunca foi o caso, durante a minha existência, em que uma saída para tomar um café poderia resultar na morte de pessoas e na sobrecarga do sistema de saúde.

Felizmente, essa situação é temporária - vamos achar drogas e vacinas eficientes contra o coronavírus. E, nesse momento, o cálculo moral mudará.

A questão política é: até que extensão devemos tolerar que o Estado imponha essas questões morais sobre nós? A minha resposta é que isso nunca é fácil, é uma troca muito difícil. Mas enquanto as restrições do Estado cumprirem esses requisitos - sujeitas ao controle democrático, temporárias e plausíveis de que vão salvar muitas vidas -, devemos ao menos considerá-las.

BBC News Brasil - Sei que é difícil prever isso agora, mas o que acha que as populações de países democráticos vão aprender com esta crise, na forma como se relacionam com seus governos e entre si, como sociedade?

Mounk - Ainda é um pouco cedo para dizer. Dependerá de quão competentes os governos se mostrarem - se conseguirem nos tirar desta sem perdas de vidas em escala massiva, se protegerem indivíduos e empresas o bastante de modo a nossas economias não colapsarem completamente, e se fizerem isso sem (serem alvo de) protestos nas ruas ou grande distúrbios sociais, talvez haja esperança de que a profunda desconfiança, polarização e o ódio mútuo que caracterizaram tantos países nos últimos anos se dissipe e fiquemos mais tolerantes e solidários. Mas isso é mais uma esperança do que uma previsão.

BBC News Brasil - Acadêmicos dizem que pandemias mudam sociedades profundamente. Acha então que podemos sair desta menos polarizados?

Mounk - Acho que vai variar de país para país - alguns ficarão menos polarizados se governantes conseguirem ser competentes e unificadores; em outros, podem polarizá-las ainda mais, porque o governo será incompetente e divisivo. Infelizmente, do jeito como as coisas andam, o Brasil parece estar na segunda categoria, em vez de na primeira.

BBC News Brasil - É cedo para perguntar quais governantes ou instituições podem sair da atual situação mais fortes ou mais fracos?

Mounk - Estamos ainda nos momentos preliminares. Acho que, após alguns tropeços iniciais, os políticos democráticos no poder há algum tempo e que sabem usar o poder do Estado e confiam nos especialistas parecem estar tomando as decisões corretas - seja o governo da Coreia do Sul ou Angela Merkel na Alemanha e Emmanuel Macron na França.

Até agora, sua reação se mostra mais favorável do que a de Trump nos EUA, AMLO (André Manuel Lopez Obrador) no México e Bolsonaro no Brasil.