Como a estratégia de Trump para conter protestos pode ter comprometido seus planos de reeleição
"Agora vou expressar meu respeito a um lugar muito, muito especial", afirmou o presidente americano Donald Trump, em um tom enigmático, ao encerrar seu primeiro discurso à nação, no fim da tarde de 1º de junho, após dias de protestos nacionais em repúdio ao assassinato de George Floyd, um homem negro de 46 anos, por um policial branco.
No discurso, Trump afirmou ser "o presidente da lei e da ordem" e anunciou o uso das forças armadas americanas contra manifestantes, embora tenha se intitulado amigo dos que protestavam pacificamente. Imediatamente antes de iniciar a fala, no jardim das rosas da Casa Branca, em Washington D.C., os militares haviam retirado à força manifestantes pacíficos da frente da residência presidencial.
Tão logo desceu do púlpito, Trump iniciou a pé um trajeto que acabou com o mistério de sua frase de encerramento ao discurso e também explicou a desproporção da violência usada para dispersar a multidão da área: Trump passou exatamente onde estavam os manifestantes para fazer uma fotografia, com uma bíblia na mão, em frente à igreja episcopal St. John, que no dia anterior tinha sofrido um início de incêndio durante protestos.
Com o ato, Trump pretendia mobiizar, a cinco meses das eleições, uma série de símbolos especialmente caros à sua base eleitoral, composta por uma maioria de homens, brancos e conservadores: a força para controlar sublevações que punham em risco elementos sagrados da identidade americana, como o templo conhecido como "igreja dos presidentes", por ser o local onde todos os mandatários americanos rezaram ao menos uma vez.
A ida à igreja nessas circunstâncias era também um bom resumo da abordagem que o presidente adotou para tratar das manifestações que tomaram mais de 140 cidades americanas. Embora tenha expressado solidariedade com a família de Geroge Floyd, Trump chamou de "bandidos" aqueles que participaram de protestos que degringolaram para destruição e violência. E escreveu em sua conta de Twitter: "quando os saques começam, os disparos começam", emprestando uma frase atribuída ao comandante da Polícia de Miami em 1967 sobre o modo como ele agia em relação ao movimento negro pelos direitos civis.
Aprovação de Trump em queda
Demorou pouco, no entanto, para a estratégiade Trump se mostrar uma ameaça aos planos de reeleição do presidente. De acordo com pesquisa do Instituto Gallup, divulgada nesta quarta-feira 10, em meio aos protestos, a aprovação de Trump despencou de 49%, em meados de maio, para 39% - um recuo de 10 pontos percentuais.
Mesmo em meio à pior pandemia desde a gripe espanhola do começo do século passado - que já ceifou a vida de mais de 115 mil pessoas nos Estados Unidos - e a uma recessão que levou a taxa de desemprego ao pico de 14,7%, com mais de 30 milhões de empregos perdidos, as taxas de aprovação de Trump não tinham sofrido um abalo tão forte quanto nas semanas dos protestos.
A avaliação negativa aumentou não só entre os eleitores democratas, grupo que se opõe a Trump, em que apenas 5% o aprovam, mas cresceu no reduto republicano, partido pelo qual Trump vai disputar a reeleição: nesse grupo, o recuo foi de 7 pontos percentuais, de 92% para 85%.
O descontentamento também atingiu os eleitores que se declaram independentes e que são cruciais na disputa presidencial em novembro, dada a polarização política americana e a expectativa de uma eleição apertada. Entre os que não se declaram nem republicanos, nem democratas, a aprovação a Trump caiu de 46% para 39%.
Na série histórica, o candidato democrata Joe Biden está na melhor posição para desafiar a posição do ocupante da Casa Branca desde a disputa de 1992, quando o então presidente republicano George H. W. Bush perdeu a tentativa de reeleição para o democrata Bill Clinton. Em junho de 1992, Bush tinha 37% de aprovação, segundo o mesmo Gallup.
Por que caiu agora?
A foto em frente à Igreja St. John parece ter sido o estopim de uma insatisfação que atingiu não só os que já rechaçam o desempenho de Trump, mas mesmo daqueles simpáticos ou neutros a ele.
A primeira resposta negativa veio dos religiosos. Ainda na noite do dia 1º, se dizendo "indignada", a bispa da diocese de Washington Mariann Budde afirmou que "não recebeu sequer uma ligação de cortesia (de Trump) informando que limparia a área com gás lacrimogênio para usar uma das nossas igrejas para propaganda, segurando uma Bíblia que diz que Deus é amor, enquanto tudo o que ele (Trump) fez e falou até agora foi para inflamar a violência".
Republicanos ouvidos reservadamente pela BBC News Brasil se disseram constrangidos pela falta de intimidade do presidente com os símbolos cristãos que ele tentou mobilizar. Questionado por um repórter sobre se a Bíblia de capa preta que ele carregava por ocasião da foto era a sua Bíblia pessoal, Trump respondeu: "é uma Bíblia".
Dois dias mais tarde, o ex-secretário de defesa de Trump, James Mattis, abriu a ala dos críticos no circuito militar ao modo como o presidente americano geriu a situação. Mattis disse que Trump havia se tornado um "risco pra constituição americana" e que era o "primeiro presidente em sua vida que não tentava unir o povo americano - nem sequer fingia tentar. Ao contrário, ele tenta nos dividir".
Na sequência, coube ao atual secretário de defesa de Trump, Mark Esper, demonstrar contrariedade com o uso de militares da ativa em manifestações populares. Esper afirmou que as tropas "devem ser usadas apenas como uma questão de último recurso e apenas nas situações mais urgentes e terríveis", o que, segundo ele, não era o caso.
Nesta quinta-feira, dia 11, foi a vez do comandante das Forças Armadas, Mark Milley, dizer publicamente que não deveria ter estado junto a Trump quando ele se dirigiu à Igreja St. John. "Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de que os militares estavam se envolvendo na política doméstica", Milley afirmou.
E mesmo tendo enorme controle sobre a máquina partidária, em um movimento incomum, senadores republicanos também expressaram contrariedade com os atos de Trump naquele dia 1º. A Senadora Lisa Murkowski, do Alaska, endossou as palavras de Mattis, que chanou de "honestas e necessárias".
"Não existe o direito a tumultos, nem a destruir a propriedade alheia, mas há um direito fundamental - um constitucional - de protestar, e sou contra a dispersão de um protesto pacífico para fazer uma foto que trate da Palavra de Deus. Deus como um suporte político '', disse o senador por Nebraska Ben Sasse, para quem o políticos deveriam agira "para reduzir a temperatura do debate".
Já a senadora Susan Collins, do Maine, disse que era "doloroso ver manifestantes pacíficos sendo submetidos a gás lacrimogêneo para que o presidente atravessasse a rua até uma igreja na qual acredito que ele esteve apenas uma vez".
Preocupados com as implicações eleitorais da ação de Trump sobre suas próprias eleições - já que parte significativa dos senadores republicanos terão que renovar seus mandatos em 2020 -, os correligionários de Trump já discutem propostas de reforma da polícia, pedidas pelos protestos nas ruas, e, em um gesto contrário ao que defendeu o próprio presidente, uma comissão no Senado liderada pelo partido recomendou a retirada de símbolos e nomes do movimento escravagista confederado de bases militares americanas ao longo dos próximos três anos.
O que isso significará nas urnas?
Aliados de Trump no partido, no entanto, têm se esforçado para melhorar a imagem deixada pela foto de St. John. O co-fundador do Movimento Tea Party e analista político da conservadora Heritage Foundation, Michael Johns, afirmou à BBC News Brasil que "o presidente tinha o direito de atravessar a rua. O presidente dos Estados Unidos deve poder andar uma curta distância em segurança e as pessoas se recusaram a sair do caminho quando solicitadas pelo serviço secreto".
E rechaçou a possibilidade de que religiosos tenham se sentido agredidos pela imagem. "Trump é o presidente mas popular com a comunidade religiosa porque ele deu voz a elas. Ninguém olha para ele e diz que ele é um cristão sem pecados, mas ele as representa. Compare com George W. Bush, que era um protestante devoto e não fez nada para avançar a agenda religiosa", disse Johns, que afirmou que Trump posou em frente à igreja com a Bíblia para simbolizar que seria guiado pelas ideias de paz e amor contidas no livro santo.
Por fim, Johns questiona a validade da própria pesquisa de opinião e diz que as pessoas respondem o que o pesquisador quer ouvir e não o que realmente pensam, o que explicaria por exemplo porque em 2016 acreditava-se que Trump perderia e, na verdade, ele ganhou.
E soma a isso o fato de que a base eleitoral de Trump se mostra sempre muito aguerrida e entusiasmada para apoiá-lo em novembro, enquanto Biden pode ter vantagem numérica, "mas quantas dessas pessoas que dizem preferi-lo realmente vão às urnas para elegê-lo?", questiona Johns, relembrando que o voto não é obrigatório no país.
O tamanho, o entusiasmo e a resiliência da base eleitoral de Trump é um fator de peso inegável, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Segundo o cientista-político Ian Bremmer, fundador da consultoria Eurasia Group, com o estado de coisas em que se encontram os Estados Unidos, o surpreendente não é que a aprovação de Trump tenha caído um pouco, mas que continue tão alta, quase no patamar de 40%. Para ele, isso se deve ao fato de que Trump hoje representa o que é o partido republicano e não há outra opção para quem não é democrata.
"Veja a senadora do Alaska Murkowski. Ela diz que concorda com todas as críticas do Mattis e praticamente pede um impeachment. Diz que o presidente age de modo inconstitucional e que isso deveria ter sido dito há muito tempo. E, depois de falar tudo isso, ela diz: 'E agora estou tendo dificuldade para decidir se devo apoiar Trump ou não em 2020'. O que é isso, ela está louca? Quero dizer, isso diz tudo o que você precisa saber sobre a política dos republicanos. Eles estão com Trump, ele é muito popular entre os eleitores republicanos e não vai ser retirado dessa liderança a menos que perca a eleição", afirmou Bremmer à BBC News Brasil.
Embora haja uma clara percepção de que Biden deve ganhar no voto popular, assim como aconteceu com Hillary Clinton em 2016, a disputa presidencial nos Estados Unidos é resolvida pelos colégios eleitorais, em que Estados mais rurais e conservadores têm um peso desproporcional em relação ao tamanho de seu eleitorado.
Por isso Estados como Wisconsin, Pensilvânia e Michigan são fundamentais para definir o novo ocupante da Casa Branca. Foi lá que Trump ganhou de Hillary em 2016, com um discurso de retomada de empregos e progresso para uma classe média baixa americana. Agora, as pesquisas mostram Biden ligeiramente à frente do republicano, em um cenário de recessão econômica do país.
Trump tem se esforçado em mostrar que a economia vai se reerguer rapidamente. Os números oficiais mostram retomada na geração de empregos, com 2,5 milhões de postos abertos em maio. A pesquisa do Gallup foi finalizada antes da divulgação do dado e não mede o impacto que essa melhora pode ter tido no eleitorado.
Ao mesmo tempo, os protestos de rua arrefeceram em parte, conforme as autoridades parecem dispostas a reformar o sistema policial que vitimou Floyd e outros tantos negros. Casos de violência em manifestações se tornaram mais pontuais ao redor do país - embora o presidente Trump faça questão de mencioná-los para justificar seu estilo confrontativo de resposta - e as barreiras em torno da Casa Branca, que chegaram a bloquear várias quadras na área, já retornaram ao seu ponto original. Nos próximos cinco meses, a recuperação da economia e a condução do presidente para que as ruas americanas se acalmem vão determinar quem ocupará a Casa Branca em 2021.
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