'É uma bomba-relógio': Por que cada vez mais universitários têm de pagar dívidas cada vez maiores após se formar nos EUA
John atende o telefone. Ele parece estar estressado. "Por favor, quero permanecer anônimo", diz, ao pedir que seu nome ou detalhes de sua história não sejam revelados para evitar retaliações de sua faculdade.
Ele não tem nem 30 anos, mas já possui uma dívida de US$ 130 mil (R$ 683 mil). Isso após só um ano de estudo em uma universidade particular dos Estados Unidos.
"Meu sonho era me tornar dentista, mas nunca pensei que acabaria nessa terrível situação financeira", lamenta, acrescentando que deve outros US$ 20 mil que pegou emprestado para pagar estudos anteriores de "graduação".
Quando terminar, John terá uma dívida acumulada de "mais de US$ 600 mil".
Seu caso pode parecer extremo, mas não é único. Embora a média da dívida federal dos estudantes seja de US$ 34 mil, o número de pessoas com uma dívida de pelo menos US$ 100 mil atingiu 3,2 milhões no segundo trimestre de 2020, 33,3% a mais do que em 2017, segundo dados do governo americano.
Além disso, no início deste ano, mais de 270 cidadãos deviam pelo menos US$ 1 milhão. Esse número era de "mais de 100" em 2018 e apenas 14 há cinco anos.
A dívida estudantil é a segunda principal causa de endividamento para as famílias do país, atrás apenas das hipotecas e, portanto, uma das grandes preocupações da sociedade americana.
Os números são quase vertiginosos: em 2020, o total da dívida federal dos estudantes atingiu US$ 1,6 trilhão, mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) da Espanha (US$ 1,4 trilhão).
Políticos proeminentes como o senador independente Bernie Sanders defendem o cancelamento de toda essa dívida, e a pandemia de coronavírus mais uma vez fez essas reivindicações ganharem força, em meio ao aumento histórico do desemprego.
'Uma bomba-relógio'
Em meio a essa preocupação, John acabou recorrendo a Travis Hornsby, fundador da Student Loan Planner, uma das empresas líderes em ajudar pessoas com grandes dívidas estudantis.
Hornsby diz que seus clientes geralmente têm cerca de US$ 100 mil em dívidas, mas ele também lidou com três casos de US$ 1 milhão.
O consultor ajuda seus clientes a encontrar o melhor plano de pagamento entre os oferecidos pelo governo para evitar uma potencial falência que afete sua nota de crédito e, portanto, dificulte a compra de um veículo e o aluguel ou aquisição de um imóvel.
"O sistema é tão prejudicial nos Estados Unidos porque não temos limites (nos valores de empréstimos federais para estudantes)", critica Hornsby. Mas ele também critica o aumento no custo das matrículas nas universidades.
De acordo com um estudo da organização The College Board, entre 1989-1990 e 2019-2020, a média das taxas de matrícula triplicou no caso de universidades públicas para cursos de quatro anos e mais do que dobrou no caso de instituições privadas, para cursos de dois e quatro anos, após reajustes inflacionários.
Nos Estados Unidos, aqueles que optam por um diploma universitário passam por duas fases: graduação ou pré-graduação, de conhecimento mais geral, e pós-graduação, necessária para obter um diploma. No total, são até dez anos de estudos que precisarão ser pagos.
No entanto, existem pessoas que continuam seu caminho rumo à especialização, o que aumenta ainda mais a conta.
Os custos mais altos são encontrados nas faculdades de Medicina ou Direito, e Odontologia geralmente lidera a maioria das listas.
Um dos casos que mais chamou atenção nos últimos anos foi o de Mike Meru, um ortodontista que, aos 37 anos, ainda devia mais de US$ 1 milhão e cujo caso foi relatado pelo The Wall Street Journal.
"Nesse caso, a pessoa contratou empréstimos para seus estudos de graduação, depois foi para uma escola de Odontologia em uma das cidades mais caras dos Estados Unidos e solicitou um empréstimo de talvez US$ 500 mil e depois participou de outro programa para se tornar um ortodontista, no qual ele acabou pedindo outros US$ 300 mil. Além dos juros contabilizados enquanto estudava sem efetuar pagamentos. E foi assim que ele acabou com a dívida de US$ 1 milhão", diz Hornsby.
O consultor acredita que o sistema se tornou uma "bomba-relógio". "Existem muitas áreas em que estamos produzindo diplomados em excesso", enfatiza, apontando as dificuldades de alguns formandos para encontrar trabalho e pagar dívidas.
'Não é uma catástrofe'
No entanto, há quem diga que essa visão é um exagero. "A dívida é um problema, mas não uma bolha prestes a estourar", diz o professor de economia David H. Feldman, coautor de "Why does College cost so much? e The Road Ahead for America's Colleges and Universities" (em português: Por que a universidade é tão cara? ou O caminho para faculdades e universidades dos Estados Unidos).
Feldman, da Universidade Pública William e Mary, explica que o total da dívida estudantil tem aumentado porque mais estudantes da metade da população com menor renda optaram pela faculdade.
"Isso é bom, não é ruim", diz ele. "A dívida dos estudantes universitários está em torno da média, e a média é um valor surpreendentemente pequeno se comparamos com alguns casos terríveis."
Em relação ao constante aumento do preço das mensalidades, o professor argumenta que o ensino superior está ficando mais caro "por causa das mesmas razões pelas quais tudo fica mais caro, dos serviços de saúde às creches".
Ele menciona, por exemplo, que o seu trabalho se tornou mais caro devido ao "progresso tecnológico" ou ao forte aumento nos últimos 40 anos no custo de equipes educacionais "altamente qualificadas".
De qualquer forma, o problema dessa dívida não tem muito a ver com os próprios empréstimos, ressalta.
"As pessoas com maior probabilidade de falir nem têm a dívida média. Alguém com uma dívida de US$ 8 mil tem mais chances de inadimplência do que alguém com uma de US$ 35 mil."
Feldman menciona os casos em que um aluno inicia um curso, mas não o conclui. Portanto, ele não tem o benefício que esses estudos superiores podem trazer, mas permanece com a dívida e os juros.
Em 2019, 17% dos adultos com dívida estudantil pendente estavam atrasados ??em seus pagamentos, de acordo com dados do Federal Reserve, o Banco Central americano.
A economista Sandy Baum, que é professora emérita da Universidade George Washington e uma especialista em ensino superior, também rejeita a ideia de que "a maioria dos estudantes que solicitam empréstimos acaba arruinando suas vidas".
"Mais e mais pessoas estão indo para a universidade, e muitas não podem pagar do próprio bolso. Então, mais pessoas estão pedindo empréstimos. Mas poucas pessoas pedem muito dinheiro", diz Baum.
Um terço das pessoas com dívida estudantil deve "menos de US$ 10 mil", enfatiza ela.
Baum acredita que o debate "geralmente ignora o fato de que, embora nosso sistema não seja tão bem projetado quanto o de outros países, há programas de pagamento baseados em renda".
"Se você tem dívida federal estudantil, não precisa pagá-la se o seu salário não permitir", diz a economista.
No entanto, Baum diz ser preocupante o número de pessoas que abandonam os estudos e a desigualdade - "os estudantes negros pegam emprestado muito mais dinheiro e têm mais dificuldade para pagar" - ou com o aumento do preço da faculdade. "Os valores estão subindo muito rápido."
Ir para a faculdade "compensa para muita gente, mesmo com os preços das mensalidades subindo", diz ele. "Não para todos, é claro, e você tem que proteger essas pessoas."
Futuro pausado
A preocupação de ver a conta da dívida crescer enquanto estuda ou ao final desse período é palpável em todas as conversas que a BBC News Mundo, o serviço da BBC em espanhol, teve com estudantes ou graduados.
"Estou esperando para poder construir a minha vida", diz Paul, um professor de matemática de 25 anos de um instituto público, em tom resignado.
O jovem teve "muita sorte" por seus pais terem pago pela sua faculdade em Matemática Aplicada, mas o mestrado que ele escolheu, em Pedagogia, exigiu um empréstimo de US$ 55 mil.
Depois de terminar e conseguir um emprego com relativa rapidez, ele conseguiu pagar US$ 20 mil em um ano, mas precisou adiar sua independência e limitando outros gastos: ele mora com os pais e tem 52,6% de sua renda comprometida com a dívida.
O professor espera receber uma ajuda federal que o isentará de pagar US$ 17 mil por ele dar aulas por cinco anos em um centro voltado para famílias de baixa renda.
Ele quer comprar uma casa, mas isso terá que esperar. "E tenho sorte. Uma colega dá aulas há dez anos e ainda tem US$ 100 mil em dívidas". Sua amiga tem 33 anos e "quer ser mãe agora, mas não pode", lamenta Paul.
Uma rota de fuga
John, o aluno com uma dívida de US$ 150 mil critica duramente o papel que as universidades desempenham: "Elas dizem que você pagará a dívida em pouco tempo. E um adolescente sabe alguma coisa sobre empréstimos quando entra na faculdade?"
Sandy Baum avalia que algumas escolas não ajudam os alunos como deveriam e critica especialmente o caso de instituições com fins lucrativos, nas quais "quase ninguém conclui os estudos de graduação".
Hornsby estima que, no caso de John, ele pode acabar pagando o valor total da dívida em cerca de 25 anos, através de um refinanciamento que "consumirá um terço" de seu salário.
Para John, se ele atingir o salário médio de sua profissão após concluir os estudos (cerca de US$ 175 mil por ano) e optar por esse programa, isso pode significar pagamentos de cerca de US$ 1,5 mil por mês durante duas décadas.
"Se você pensar bem, é muito raro que um graduado com US$ 1 milhão em dívidas (ou US$ 500.000, US$ 600.000) não tenha problemas com crédito."
Para o futuro dentista, o esforço valerá a pena se ele receber a bolsa de estudos que deseja. O impacto econômico da pandemia não o preocupa tanto. "Quando eu terminar meus estudos, espero que tenha sido resolvido", diz.
Em questão de três meses, mais de 30 milhões de pessoas ficaram desempregadas no país. A taxa de desemprego já é a pior desde a Grande Depressão.
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