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Violência nos EUA: país registra pico de homicídios em ano marcado pela pandemia

Em um ano marcado pela pandemia de coronavírus, crise econômica e protestos contra brutalidade policial, diversas cidades americanas vêm registrando aumento na taxa de homicídios. - Getty Images
Em um ano marcado pela pandemia de coronavírus, crise econômica e protestos contra brutalidade policial, diversas cidades americanas vêm registrando aumento na taxa de homicídios. Imagem: Getty Images

Alessandra Corrêa - De Washington (EUA) para a BBC News Brasil

05/12/2020 10h47

Em um ano marcado pela pandemia de coronavírus, crise econômica e protestos contra brutalidade policial, diversas cidades americanas vêm registrando aumento na taxa de homicídios.

A tendência é verificada em diferentes análises, feitas tanto por órgãos do governo, como o FBI (a polícia federal americana), quanto por pesquisadores independentes, e o aumento ocorre em todas as regiões do país, em cidades grandes e pequenas, governadas por democratas e republicanos.

Em muitos casos, os números já superam marcas históricas. Los Angeles registrou mais de 300 homicídios neste ano, o que não ocorria desde 2009. Oakland, também na Califórnia, ultrapassou a marca de 100 homicídios pela primeira vez em sete anos.

Analistas ressaltam que é muito cedo para saber o que está causando esse aumento e lembram que os números, apesar de maiores do que os do ano passado, ainda assim estão bem abaixo das taxas de criminalidade registradas há algumas décadas.

Enquanto os mais de 300 homicídios em Los Angeles representam aumento de 25% sobre 2019, o número ainda é bem menor do que a média de mil homicídios registrada em alguns anos nas décadas de 1980 e 1990.

Mas muitos lembram que a pandemia de covid-19 fez de 2020 um ano atípico e teve impacto em diversos fatores, desde aumento de estresse devido ao isolamento e temor da doença até uma explosão na venda de armas de fogo e redução de programas de prevenção de violência por conta das regras de distanciamento social.

"Temos motivos para esperar que, além de todos os outros horrores de 2020, os Estados Unidos também terão um aumento histórico na taxa de homicídios", diz à BBC News Brasil o analista de dados Jeff Asher, especialista em segurança pública e co-fundador da empresa AH Datalytics.

Aumento acentuado

Asher analisou uma amostra de 51 cidades americanas, com dados de homicídios ocorridos pelo menos até o final de setembro, e observou aumento de 35,7% em comparação com o mesmo período do ano passado.

Das 51 cidades, somente três - Baltimore (Maryland), Durham (Carolina do Norte) e Virginia Beach (Virginia) - registraram menos homicídios do que em 2019.

Em Nova York, foram 405 homicídios até 15 de novembro, aumento de 37,3% sobre o mesmo período em 2019. Chicago registrou 692 homicídios até 15 de novembro, salto de 53,4%.

"Os Estados Unidos fazem um péssimo trabalho em contabilizar e divulgar dados sobre crime", afirma Asher. "Por isso, coletar dados de grandes cidades é uma maneira de obter uma boa estimativa sobre a tendência nacional."

Mas o analista ressalta que o aumento ocorre em cidades de todos os tamanhos. Em Milwaukee, no Estado de Wisconsin, o salto foi de 102,4%, com 172 homicídios até 12 de novembro. Em Madison, também em Wisconsin, os 10 homicídios registrados até 30 de setembro representam aumento de 400% sobre o ano anterior.

A tendência é confirmada por outras análises. O sociólogo e especialista em criminologia Patrick Sharkey, professor da Universidade Princeton, analisou dados das cem maiores cidades americanas e estima que a taxa de homicídios por arma de fogo poderá chegar ao nível mais alto dos últimos 15 anos.

Assim como outros analistas, ele também identificou aumento acentuado especialmente a partir de maio.

Até 15 de novembro, Nova York teve um aumento de 37% nos assassinatos sobre o mesmo período em 2019 - Getty Images - Getty Images
Até 15 de novembro, Nova York teve um aumento de 37% nos assassinatos sobre o mesmo período em 2019
Imagem: Getty Images

"A violência aumentou em quase todas as cidades de maio a outubro, e explodiu em cidades como Chicago, Milwaukee, Nova York, Nova Orleans, Louisville e St. Louis", afirmou Sharkey em uma série de tuítes comentando o resultado da análise.

"Temo que a taxa de homicídios em 2020 será pelo menos tão alta como era no início dos anos 2000."

Queda em outros crimes violentos

Analistas observam que o aumento no número de homicídios e agressões com armas de fogo ocorreu ao mesmo tempo em que houve queda em outros crimes violentos, como estupros ou roubos. Essa disparidade não é comum, e ocorreu poucas vezes nas últimas décadas.

Um relatório preliminar do FBI, que compara dados do primeiro semestre de 2020 com o mesmo período do ano passado, revela que, enquanto o número de homicídios aumentou 14,8%, houve redução de 17,8% em estupros e de 7,1% em roubos.

Outro relatório, divulgado no fim de novembro pela Comissão Nacional sobre Covid-19 e Justiça Criminal, ligada ao centro de pesquisas Council on Criminal Justice (Conselho sobre Justiça Criminal), analisou as taxas de criminalidade em 28 cidades americanas.

Segundo essa análise, liderada pelo professor de criminologia Richard Rosenfeld, da Universidade de Missouri-St. Louis, a taxa de homicídios de janeiro a outubro deste ano foi 29% maior do que em 2019.

Quando analisado o período a partir de março, início do agravamento da pandemia de coronavírus nos Estados Unidos, o aumento foi de 32%. De junho a agosto, durante o verão americano, o salto chegou a 42%.

Mas Rosenfeld e sua equipe observaram queda em outros tipos de crime. Roubos caíram 14% durante a pandemia em comparação ao mesmo período de 2019. Crimes relacionados a drogas tiveram queda de 32%, e invasões a propriedades residenciais caíram 24%.

Possíveis causas

Enquanto diferentes analistas concordam que houve grande aumento no número de homicídios, ninguém sabe ao certo o que provocou a mudança, que pode ser fruto de vários fatores.

"Podemos fazer suposições, mas não temos os dados para apoiar essas suposições", destaca Asher.

Especialistas e policiais listam diferentes impactos provocados pela pandemia. O distanciamento social restringiu ações de prevenção e aconselhamento em várias comunidades afetadas pela violência, interrompendo programas que vinham tendo sucesso na redução de crimes em determinadas áreas.

"A capacidade da polícia de prevenir e investigar crimes é reduzida consideravelmente com as exigências de distanciamento social", afirma Rosenfeld em seu estudo.

Ele observa que o distanciamento social também também dificulta esforços de outros profissionais engajados em ações preventivas contra a violência, "ao impedir o contato direto com aqueles em maior risco".

"Controlar a pandemia de covid-19 continua sendo uma condição necessária para reduzir a violência", ressalta Rosenfeld.

O fechamento de escolas por conta do coronavírus é citado por policiais em algumas áreas como um dos fatores que pode ter levado a um aumento de crimes praticados por jovens.

Igrejas, restaurantes, bares e outros locais de lazer também foram fechados em determinados períodos e cidades no início da pandemia, aumentando o isolamento e, em muitos casos, a sensação de ociosidade. Além disso, a pandemia levou milhares de americanos a perderem o emprego.

Protestos

A partir do fim de maio, protestos contra racismo e brutalidade policial se espalharam pelo país, provocados pela morte George Floyd, um homem negro morto sob custódia de um policial branco na cidade de Minneapolis. Muitos manifestantes pediram reformas e corte de verbas para a polícia.

Manifestantes fizeram um memorial para George Floyd em Minneapolis, Minnesota, nos EUA - AFP/GETTY IMAGES - AFP/GETTY IMAGES
Manifestantes fizeram um memorial para George Floyd em Minneapolis, Minnesota, nos EUA
Imagem: AFP/GETTY IMAGES

Há teorias de que, como resultado, tanto policiais podem ter reduzido a presença em algumas áreas quanto moradores de determinadas comunidades podem ter deixado de chamar a polícia, o que poderia levar a aumento da violência.

Mas especialistas salientam que não há, até o momento, dados suficientes para relacionar a alta nos homicídios aos protestos.

"Parte da história é o aumento em disparos de armas de fogo na esteira dos protestos contra violência policial", afirma Sharkey. "Mas o aumento da violência já era visível nos primeiros quatro meses de 2020 (antes dos protestos)."

Também houve aumento histórico nas vendas de armas de fogo, em meio aos temores gerados pela pandemia. Calcula-se que já tenham sido compradas mais de 20 milhões de armas neste ano, superando a marca anterior de 16,6 milhões em 2016.

Em um estudo sobre os meses iniciais da pandemia, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Davis encontraram relação entre aumento na compra de armas e salto na violência.

Democratas e republicanos

Durante a campanha eleitoral, o presidente Donald Trump muitas vezes caracterizou o aumento da criminalidade como um problema específico de cidades governadas por democratas.

No entanto, diferentes estudos contradizem essa alegação e indicam que houve aumento de homicídios tanto em cidades lideradas por democratas quanto nas comandadas por republicanos.

Como estratégia eleitoral, Trump tentou atribuir o aumento de crimes a políticas falhas de governantes do Partido Democrata - Reuters - Reuters
Como estratégia eleitoral, Trump tentou atribuir o aumento de crimes a políticas falhas de governantes do Partido Democrata
Imagem: Reuters

Em sua análise, Asher identificou aumento de 36,2% nos homicídios em cidades com prefeitos democratas e de 35,6% nas governadas por republicanos.

"O que estamos vendo é um aumento muito significativo em nível nacional, e culpar um ou outro partido político não faz sentido", diz Asher.

"Eleger um líder do partido oposto não vai alterar os fatores fundamentais que estão levando a esse grande aumento."

Especialistas advertem que há vários fatores que podem ter tido impacto na taxa de homicídios e que, em um ano tão incomum como 2020, é possível que nenhuma das teorias sobre o atual aumento esteja correta.

O relatório coordenado por Rosenfeld será atualizado quando dados até o final de 2020 estiverem disponíveis. "Talvez então possamos chegar a conclusões mais precisas sobre os fatores que estão provocando as mudanças", diz o documento.

Os outros especialistas também vêm atualizando suas análises à medida que novos dados estão disponíveis. O FBI deve divulgar seu relatório final sobre 2020 no ano que vem.

Desvio ou nova tendência?

Asher e outros analistas advertem que, além de ser muito cedo para identificar as causas exatas do problema, também é difícil prever se este é apenas um desvio específico de 2020 ou se a tendência de aumento na taxa de homicídios irá se manter no longo prazo, mesmo depois da pandemia.

Desde a década de 1990, a taxa de crimes violentos vem caindo nos Estados Unidos, apesar de flutuações em alguns anos. Nesses casos, especialistas costumavam ressaltar que um aumento sobre o ano anterior não indicava necessariamente altos índices de violência, já que os números permaneciam historicamente baixos.

Mas neste ano, mesmo que o número de homicídios em diversas cidades ainda seja bem menor do que o registrado décadas atrás, alguns analistas consideram o crescimento preocupante.

"O maior aumento percentual (que já tivemos na taxa de homicídios) de um ano para outro foi de 12,5%", afirma Asher.

"Então, mesmo que houvesse um erro de 10 pontos na nossa estimativa, e o aumento fosse de 25% e não de 35%, ainda assim seria o dobro do maior aumento que já tivemos."

Asher cita o caso de Nova Orleans, cidade onde mora e que já registrou mais de 170 homicídios neste ano, aumento de 75,3% em relação a 2019, mas ainda longe dos índices das décadas de 1980 e 1990.

"Este será o pior ano em mais de uma década. Mas, em 1994, Nova Orleans registrou mais de 400 homicídios. Então, (mesmo com o aumento atual) teremos menos da metade dos homicídios daquela época", afirma.

"É uma comparação que precisamos fazer, para lembrar como as coisas eram ruins 20 ou 30 anos atrás. Mas, ao mesmo tempo, o fato de os números atuais serem melhores do que os dos anos 1990 não deveria (ser o suficiente para) fazer ninguém se sentir bem."