A mulher que quer adotar sua amiga que vive em uma instituição psiquiátrica
As russas Arina e Nina se encontravam apenas uma vez por semana — em atividades organizadas na instituição psiquiátrica onde Nina morava. Agora, Arina está se candidatando para se tornar guardiã de Nina, dando à jovem de 27 anos a esperança de finalmente poder deixar o local onde viveu toda a sua vida adulta.
Nos últimos meses, Nina Torgashova pôde desfrutar de uma independência que sempre esteve fora do alcance dela — fazendo compras, cozinhando e lavando suas próprias roupas, tarefas rotineiras para a maioria dos jovens de sua idade.
Mas não para Nina, que sempre viveu em instituições e se mudou quando tinha 18 anos para o que na Rússia é conhecida como "casa de cuidados psiconeurológicos".
Na verdade, até o início da pandemia... porque depois dela, Nina foi morar com uma voluntária, Arina Muratova.
Ela se lembra do momento em que descobriu que estava indo embora. "Nunca pensei que alguém fosse me levar! Achava que ia ficar presa para sempre nesse lugar!"
Era abril de 2020 e Moscou, a capital da Rússia, entrou em lockdown. Com as visitas a instituições como a de Nina interrompidas, ONGs fizeram lobby para que os voluntários pudessem assumir a responsabilidade por alguns dos residentes por alguns meses.
Foi então que Arina, uma especialista em pesquisa de mercado, se ofereceu para cuidar de Nina. Mas, depois de experimentar a liberdade que nunca havia desfrutado antes, Nina decidiu que não queria voltar para a instituição. Isso fez com que Arina tomasse uma decisão importante.
Faz dez anos que ela atua como voluntária — começou ajudando crianças com dificuldades de aprendizagem e suas famílias. Em seguida, se envolveu com o cuidado de adultos. Foi quando Arina conheceu Nina por meio de uma ONG chamada Rota da Vida.
Essa entidade organiza viagens e aulas para os residentes de alguns lares de cuidados psiconeurológicos russos (conhecidos como PNIs). Arina começou a trabalhar como voluntária no PNI 22 — onde Nina vivia com centenas de outros residentes — há cerca de quatro anos. A instituição cuida de adultos com uma ampla gama de distúrbios, que se acredita estarem relacionados a deficiências cognitivas e doenças mentais de gravidade variada.
O diagnóstico de Nina permanece confidencial para todos, exceto para o diretor da instituição. Geralmente, esse é o caso para os residentes que o Estado julga não conseguir viver de forma independente. Portanto, nem ela nem Arina sabem por que ela está na instituição.
Embora Nina tenha dificuldades para escrever e fazer contas, Arina diz que ela é muito capaz. "Ela aprende muito rápido e está bem adaptada à vida cotidiana", afirma.
Nina foi internada em uma instituição para crianças com deficiência quando era muito jovem, antes de se transferir para o PNI aos 18 anos. Não está claro se ela foi levada para o lar infantil pelos pais ou foi removida à força de seus cuidados.
Nina conta que eles chegaram a visitá-la no local uma vez, mas ela estava com medo e se escondeu embaixo da cama.
"Eles estavam bêbados. Eu estava com medo. Eles cheiravam a álcool", diz ela.
Arina conta que Nina sempre se destacou nas visitas à Rota da Vida, participando ativamente das atividades e viagens organizadas pela ONG.
"Nina era uma pessoa muito ativa em seu lar", diz Arina. "Ela participou de várias atividades criativas: teatro amador, oficinas de artes e ofícios. Participou de competições esportivas também: jogou dardos, jogou futebol. O futebol foi algo de que sentiu muita falta depois de sair de casa."
Quando o lockdown decretado em Moscou na primavera passada tornou essas visitas impossíveis, Arina propôs que os voluntários mantivessem conversas por Zoom com os residentes. Mas desde a primeira ligação ficou claro que isso não iria funcionar — a internet simplesmente não era boa o suficiente. Outras ONGs ajudando outros lares de idosos em Moscou e São Petersburgo estavam enfrentando problemas semelhantes.
Foi assim que essas ONGs pressionaram as autoridades para permitir que alguns residentes fossem autorizados a deixar esses locais — uma exceção em meio ao rigoroso confinamento.
"Foi tudo acertado em um dia, e no dia seguinte a pessoa estava fora. Não consigo imaginar algo assim antes da pandemia", diz o diretor da Rota da Vida, Ivan Rozhansky .
Mesmo assim, Arina admite que ficou nervosa quando tomou a decisão inicial de cuidar de Nina. Ela contava com a relativa independência de Nina, pois precisava trabalhar em casa.
"Havia um certo cálculo em pegar Nina. Tinha muito trabalho a fazer, mesmo durante o lockdown. Percebi que tinha que viver com alguém que fosse capaz de se ocupar — pelo menos algum tempo. Com Nina, estava claro que... poderia dizer: 'Agora tenho que trabalhar três horas, mas depois podemos fazer o almoço juntas!' "
As mulheres ficaram confinadas fazendo atividades em casa juntas.
Mas a mudança de Nina para o apartamento que a ONG havia cedido às mulheres para morar durante o lockdown teve um começo um pouco difícil.
"Ela tinha muito poucos pertences, apenas uma pequena mochila. Parecia perdida. Enquanto estava assinando os papéis trazidos pela cuidadora, Nina caminhou pelo apartamento. Não parecia feliz, e eu estava contando com isso".
"Quando vi Nina parecendo tão perdida, me perguntei se isso tinha sido uma boa ideia (tirá-la do PNI). Uma coisa é perguntar a uma pessoa em uma mensagem de texto se ela quer se mudar, mas é bem diferente realmente quando isso acontece!"
Mas não muito tempo depois, Arina compartilhou com outras voluntárias uma selfie dela mesma com uma Nina sorridente, braços levantados de alegria.
Não apenas Nina começou a comprar comida e cozinhar para si mesma, Arina arranjou para ela um professor de matemática — importante agora que ela estava comprando coisas sozinha. Nina agora está aprendendo matemática.
"Não é que Nina não entenda as coisas. Ela simplesmente nunca precisou disso antes", diz Arina.
A própria Arina começou a ajudar Nina com sua alfabetização — Nina sabia ler e escrever, mas lentamente e com dificuldade. "Preciso saber ler e escrever", diz Nina. "Para poder cozinhar para mim mesma, para ir trabalhar. Quero ter um emprego."
"Poderia fazer e vender pulseiras da amizade. Perguntei a Arina: 'Você conhece alguém que possa querer uma?' Arina perguntou à mãe dela, e ela se mostrou muito interessada. Ela disse: 'Vou resolver isso!' A mãe dela escolheu as cores, Arina me mostrou uma foto (das cores) e eu comecei a fazer."
Arina diz que queria ter certeza de dar a Nina responsabilidade sobre si mesma, em vez de sempre assumir o comando, mesmo que nem sempre saísse como planejado. Ela cita o exemplo de Nina querer aprender a desenhar.
Arina encontrou outro voluntário que poderia ensina-la pelo Zoom e explicou a Nina que ela deveria participar das aulas. Mas depois de um tempo, descobriu que Nina estava faltando a algumas sessões.
"Não quero ficar no pé de outro adulto e importuna-lo", diz Arina. "Achei que esse era o tipo de responsabilidade que Nina poderia ter e acabamos brigando por causa disso."
Mas, em outra ocasião, Arina queria se envolver mais na vida de Nina do que os regulamentos permitiam.
Nina reclamou de uma terrível dor de estômago e foi internada no hospital para vários dias de exames. Arina não teve permissão para ficar com ela porque não era parente ou guardiã.
"Por favor, envie a Nina algumas mensagens para tranquiliza-la", escreveu Arina em uma mensagem para o chat do grupo de voluntários. "A pobrezinha está apavorada, ela está fazendo um terceiro exame de sangue e está assustada."
Felizmente, não havia nada de muito errado. Quando o lockdown em Moscou foi flexibilizado em junho, a ONG Rota da Vida enfrentou um desafio.
"Ficou óbvio que os residentes que nossa ONG levou para os apartamentos durante a quarentena não queriam voltar para o PNI", diz Ivan Rozhansky, diretor da ONG.
Essas instituições têm sido foco de preocupação há algum tempo. No início de 2019, a vice-primeira-ministra da Rússia, Tatiana Golikova, ordenou uma inspeção das condições de vida em 192 lares de cuidados psico-neurológicos.
O órgão de proteção ao consumidor, Rospotrebnadzor, descobriu violações de saúde e segurança e outros regulamentos em cerca de 80% deles.
Em janeiro deste ano, o Ministério do Trabalho da Rússia introduziu uma série de mudanças estruturais nos PNIs.
"Obviamente, todas essas mudanças não serão realizadas imediatamente em 1º de janeiro de 2021, mas a situação vai mudar aos poucos", disse Golikova.
'Má qualidade de vida'
Maria Sisneva, da ONG PNI, diz que a qualidade de vida nessas instituições é ruim.
"Em um PNI, são de 500 a mil pessoas morando em quartos próximos, mas com níveis de habilidade muito diferentes e origens diferentes, necessidades diferentes. Elas vivem em condições extremamente precárias, na melhor das hipóteses, duas em um quarto pequeno, muitas vezes em corredores, em espaços semelhantes a quartéis militares, isoladas do mundo exterior. Mal têm qualquer experiência social real."
O diretor do PNI 22 onde Nina vivia rebate as acusações.
"A principal vantagem dos lares psiconeurológicos é a segurança", diz Anton Kliuchev. "Os residentes são atendidos por profissionais, que sabem exatamente como ajudá-los e apoiá-los, como falar com eles, como cuidar deles".
Ao redor do mundo, existem instituições para pessoas com necessidades especiais e doenças mentais. Mas a partir de meados do século 20 nos Estados Unidos e em alguns países europeus, iniciou-se um processo de desinstitucionalização, com o objetivo de substituir instalações fechadas de longa permanência por cuidados prestados dentro da comunidade.
Mas essas instituições ainda são o modelo predominante na Rússia. De acordo com estatísticas do governo russo, em fevereiro de 2020 havia mais de 150 mil pessoas vivendo em PNIs.
Ao contrário de muitos países, a Rússia só oferece esse tipo de assistência durante a infância. ONGs acreditam que, se esse sistema alternativo fosse mais estabelecido, muitos residentes de instituições como a de Nina poderiam deixar esses locais.
"Neste momento, o sistema na Rússia é tal que se uma pessoa é considerada insuficientemente independente pelo estado, não há nenhum lugar para ela ir além de um PNI, ou (para aqueles portadores de deficiência física) uma casa de inválidos", diz Sisneva.
A Life Route começou a discutir como o esquema introduzido durante o lockdown poderia se tornar permanente para as nove pessoas que foram realojadas. A ONG alugou quatro apartamentos, incluindo um para Nina dividir com outros moradores da instituição, Sergey e Ivan. Arina voltou para seu próprio apartamento e começou a passar uma noite por semana na nova acomodação de Nina em rodízio com outros voluntários.
Mas havia outro obstáculo. O PNI só pode liberar permanentemente a assistência de seus residentes a ONGs como a Rota da Vida se eles tiverem o que se denomina "capacidade legal" — ou seja, o Estado considera que, em teoria, podem agir de forma independente, mesmo que na prática vivam em uma casa de cuidados.
Nina não tem capacidade jurídica — todas as decisões sobre sua vida são tomadas pelo diretor de seu PNI. Como Nina é funcionalmente capaz, não está claro por que isso acontece, embora os especialistas digam que pode ser simplesmente uma falha do sistema.
Se, como Nina, alguém veio de outras instituições de cuidados, como um orfanato, e nunca foi devidamente avaliado, seu status legal nunca pode ser contestado.
Então Arina se candidatou para se tornar a guardiã de Nina.
"Um dia simplesmente tive essa ideia. E eu percebi que tinha que fazer isso."
Se sua solicitação for atendida, Arina se tornará responsável por todos os elementos da vida de Nina — financeiros, práticos, emocionais e médicos. Como seu tutor, o PNI finalmente compartilhará o diagnóstico de Nina com ela.
O processo não será simples e envolverá extensas avaliações financeiras, físicas e psicológicas, conta Arina, incluindo até mesmo uma inspeção da casa de seus pais, pois esse é seu endereço registrado.
"Emocionalmente [a decisão] também não foi fácil", diz Arina. "Mas assim que tirei Nina da instituição, ela se tornou minha responsabilidade."
Esse périplo pode explicar por que há tão poucas pessoas que se oferecem como tutores legais na Rússia.
No entanto, seu papel é fundamental para a transição do atendimento das instituições para a comunidade da Rússia — algo que Vera Shengelia, chefe-executiva da Life Route, acredita que deva ser o objetivo.
"Esse tipo de arranjo ajuda uma pessoa a preservar sua identidade por ter uma casa, ter suas próprias coisas ... Em instuições de cuidados, esses componentes desaparecem e as pessoas se tornam [apenas] estatuetas sem rosto, sem nada."
Enquanto Arina aguarda a concessão da tutela de Nina, o PNI, que vem perdendo recursos estatais nos últimos tempos, pode exigir que Nina volte para eles a qualquer momento.
Enquanto isso, Arina diz que ainda está descobrindo o papel exato que desempenha na vida de Nina, já que é apenas três anos mais velha que ela.
"Nunca poderei ser a mãe de Nina. Nunca poderei dar a ela a infância que ela mereceu."
Mas Arina aceita que Nina a veja como muito mais do que uma amiga. Nina espera participar de todas as tarefas importantes: desde ir ao dentista a furar as orelhas, passando por se registrar no médico local.
E essas novas responsabilidades surgiram em um momento em que Arina passou por dias difíceis em sua vida pessoal.
"Não foi apenas Nina que passou por uma grande mudança emocional, eu também — durante esse período, tive uma redução de salário e problemas em minha vida pessoal."
Mas Arina diz que essas adversidades aproximaram as duas.
"Depois de passar por todas essas experiências [ao lado de outra pessoa], é difícil recuar.
"Não vou dizer que não estou angustiada por isso (tornar-se guardiã legal de Nina). Estou extremamente nervosa. E há certas pessoas ao meu redor que me assustam ainda mais. Eles ficam me perguntando... 'Você já pensou sobre isso? É para a vida! '
"Mas me acalmo dizendo que temos um plano."
Esse plano é, em última análise, resgatar a capacidade jurídica total de Nina.
Nina precisa ser considerada independente pelo Estado se quiser viver sozinha ou conseguir um emprego.
Além de Arina, ela tem outro relacionamento próximo — com um homem chamado Sasha, que conheceu no PNI 22, e que agora está vivendo em um apartamento diferente. Nina encontra-se regularmente com Sasha na cidade e claramente gosta dele. Arina está ciente de que Nina pode eventualmente querer se casar e ela também precisaria de capacidade legal para isso.
Portanto, Arina espera que as aulas de Nina dêem a ela a opção de ser avaliada em algum momento.
"Os avaliadores observam atentamente as habilidades de leitura, escrita e matemática", diz Arina.
O processo não está disponível publicamente, mas relatos sugerem que o teste pode incluir diferentes atividades, desde dançar ou cantar uma música, ou mesmo saber o preço de um pão.
Arina diz que só vai inscrever Nina para fazer o teste quando ela estiver o mais preparada possível.
Nesse ínterim, Arina está envolvida em todos os momentos importantes da vida de Nina.
"Talvez eu seja apenas o tipo de pessoa que não tem medo da responsabilidade. Foi algo inesperado — mas na verdade uma coisa boa — que aconteceu comigo. A quarentena nos ajudou a aprender mais uns sobre os outros, nos aproximar e estabelecer uma relação de confiança".
"Eu a amo... Não há muito mais o que dizer. Eu a amo muito."
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