Bolsonaro pode ser afastado por investigação por prevaricação?
Inquérito aberto recentemente pela Polícia Federal pode eventualmente se tornar denúncia contra presidente a ser acatada ou não por deputados. Especialistas dizem que esse cenário é possível, mas não provável.
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já foi alvo de dezenas de pedidos de impeachment apresentados à Câmara dos Deputados, nesta semana a Polícia Federal (PF) deu um passo que, eventualmente, poderia levar ao afastamento do mandatário através de um caminho iniciado no Judiciário.
Após autorização concedida pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber, a PF abriu um inquérito para apurar se Bolsonaro cometeu crime de prevaricação ao não pedir a abertura de uma investigação sobre as denúncias de corrupção na compra da vacina Covaxin pelo governo federal.
A depender de seus resultados, o inquérito pode levar à apresentação de uma denúncia pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao STF - que, por sua vez, teria que a remeter à Câmara dos Deputados. Se dois terços dos parlamentares (342 deputados) votarem a favor da abertura de um processo, o presidente é obrigatoriamente afastado do cargo por 180 dias.
É uma via possível - o que não quer dizer ser provável, segundo especialistas entrevistados pela BBC News Brasil. "O caminho para isso acontecer é longo e pode demorar a ponto de invadir o calendário eleitoral", resume Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), à BBC News Brasil.
Um julgamento de Bolsonaro por crime comum seria um movimento parecido com o enfrentado por Michel Temer em 2017, quando ele era presidente. Na época, a PGR ofereceu duas denúncias contra Temer: uma por corrupção passiva e outra por organização criminosa e obstrução da Justiça no caso envolvendo o empresário Joesley Batista. Em ambas, a Câmara não autorizou abertura de processo no STF contra o então presidente.
Desta vez, Bolsonaro é investigado por prevaricação, crime que pode ser punido com três meses a um ano de prisão e é descrito no Código Penal como "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".
Os irmãos Luis Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, e Luis Claudio Miranda (DEM-DF), deputado federal, afirmam ter se encontrado com o presidente em 20 de março, quando o teriam informado das suspeitas de irregularidade na venda da Covaxin e deixado documentos do ministério que continham indícios de superfaturamento na aquisição do imunizante.
Segundo o parlamentar, Bolsonaro apontou que o deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), líder do governo na Câmara, estaria envolvido no esquema. Barros nega.
Bolsonaro defende que passou os papéis entregues pelos irmãos "para frente", pedindo ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma investigação do caso na pasta. Bolsonaro também teria dito que enviaria o caso à PF. Entretanto, Pazuello saiu do cargo dias depois e não há registros de que a Polícia Federal tenha de fato investigado as suspeitas.
O presidente também afirma que o crime de prevaricação só poderia ser enquadrado para atos de servidores públicos, e não do presidente da República.
Para Elival da Silva Ramos, professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Bolsonaro pode ter sido mal orientado nesse ponto. "O Código Penal aponta que o presidente da República, assim como deputados e senadores, podem cometer crime de prevaricação, como agentes políticos. Talvez alguém tenha informado mal o presidente sobre essa questão", diz.
Imprevisibilidade nos próximos passos - na Justiça e na política
No inquérito contra Bolsonaro, a Polícia Federal terá 90 dias para investigar se o presidente realmente prevaricou no caso envolvendo a compra da vacina. Esse prazo pode ser postergado. Depois, a PF enviaria o inquérito à PGR.
"O Ministério Público Federal (MPF) pode entender que há indícios de autoria e materialidade do crime e apresentar uma denúncia contra Bolsonaro. Pode também considerar que esses indícios não são suficientes e arquivar", diz Chemim.
No cenário de uma denúncia apresentada, a Câmara teria obrigatoriamente que analisar e votar sobre a abertura de ação penal contra Bolsonaro no STF - aqui não há a possibilidade de não analisar a matéria, como acontece por exemplo com pedidos de impeachment, em que a decisão de apreciar ou não fica a cargo do presidente da Casa.
"Nesse caso, Bolsonaro seria julgado pelo STF, que diria se ele cometeu ou não o crime de prevaricação relacionado à função pública."
A advogada explica que esse julgamento teria natureza público-administrativa, pois o crime teria sido cometido no exercício da função de agente público. Já um processo de impeachment, por exemplo, poderia correr em paralelo, mas o julgamento caberia ao Congresso e teria caráter político, envolvendo crimes de responsabilidade (prevaricação poderia ser um dos fatores a serem julgados pelo Congresso).
Se condenado por prevaricação pelo STF, Bolsonaro seria retirado do cargo definitivamente e poderia até ser preso, embora Chemim argumente que o crime de prevaricação raramente é punido com a detenção do réu.
Para Elival da Silva Ramos, da USP, o caminho para um afastamento dependeria muito da atuação do chefe da PGR, Augusto Aras. "Só uma pessoa pode processar o presidente: o procurador-geral. Se ele disser que não há indícios de crime, acabou. O Supremo não tem o poder de abrir um processo penal", diz.
Aras, indicado ao cargo por Bolsonaro, tem sido criticado por sua proximidade com o governo - ele era um dos nomes mais cotados para a indicação do presidente a uma vaga no STF. Inicialmente, o procurador decidiu não abrir uma investigação contra o Bolsonaro no caso da Covaxin, mas, pressionado pela ministra Rosa Weber, o MPF iniciou o inquérito.
O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, ressalva também que, embora possa ocorrer o afastamento iniciado por esta via jurídica, ela ainda depende de um contexto político - materializado na eventual votação da denúncia na Câmara.
"Às vezes, os argumentos jurídicos não são suficientes, porque o último filtro sempre será da política - e isso passa por ter a maioria qualificada para se abrir o processo (de afastamento)", aponta o analista.
"Michel Temer estava desgastadíssimo, o procurador-geral da República pediu duas vezes a abertura de processo à Câmara, havia todo dia no jornal uma denúncia nova, um clima ruim, popularidade na sola do sapato... E não houve afastamento. Ele de alguma forma conseguiu o que a Dilma (Rousseff, que sofreu impeachment) não conseguiu: a partir do controle da máquina, manter votos favoráveis para si."
Apesar do destaque ao pragmatismo da política, Melo diz que o afastamento de um presidente, - seja devido a uma ação no STF, seja por pedido de impeachment - é um "processo" que acontece com a combinação de vários fatores, nunca apenas um. Estes podem ser crise econômica, pressão das ruas, a articulação por parte do vice-presidente, entre outros.
Sua leitura da situação de Bolsonaro, ameaçado por pedidos de impeachment e pelo inquérito da PF, é a de que há muitos desses fatores colocados - mas a própria relutância do presidente da Câmara Arthur Lira em acatar os pedidos de impeachment indicam que, provavelmente, um afastamento não seria hoje aprovado na Casa.
Para Melo, a provável rejeição na Câmara pode explicar muito mais a postura de Lira do que a aliança deste com Bolsonaro. Na sua avaliação, se as condições para o afastamento se firmarem, o presidente da Câmara acataria o processo.
"Tem o fator da aliança com o Bolsonaro, é claro, mas tem uma frase do Tancredo Neves que dizia: o bom político vai com o outro até a sepultura, mas não se joga. Acho que o Arthur Lira é esse tipo de político, vai com o Bolsonaro até a sua sepultura mas não se joga."
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