Os interesses de EUA, China, Rússia, Irã e Paquistão no futuro do Afeganistão
O Afeganistão é campo de batalha de potências estrangeiras há muito tempo.
Foi assim durante grande parte do século 19, no que agora é conhecido como "O Grande Jogo" - a turbulenta rivalidade entre os impérios britânico e russo pelo controle da Ásia Central.
Dois séculos depois, o Afeganistão está passando por um momento ainda mais sombrio.
A partir do momento em que os Estados Unidos começaram a retirar suas tropas, o Talebã acelerou seu avanço e neste domingo conseguiu o colapso do governo afegão após tomar a capital, Cabul.
O Talebã segue uma linha extrema da lei islâmica e, quando esteva no comando, entre 1996 e 2001, proibiu a televisão, música, filmes, maquiagem e proibiu que meninas com 10 anos ou mais fossem à escola.
Eles também impuseram punições de acordo com sua interpretação estrita da lei islâmica, como a execução pública de assassinos condenados, o apedrejamento atá a morte de adúlteros e a amputação das mãos de ladrões.
O Grande Jogo terminou há mais de 100 anos, mas uma luta muito diferente pelo controle do país continua, e a maioria dos especialistas em assuntos afegãos concorda que as últimas quatro décadas de conflito são consequência de um novo conjunto de interesses regionais e internacionais.
Além do Paquistão e da Índia, cuja competição para influenciar o Afeganistão se acredita ter gerado o Talebã, há também uma rivalidade intensa entre o Ocidente e a Rússia, que em sua última fase remonta à época em que os soviéticos invadiram o país em 1979.
Rússia e o Talibã
Moscou insiste que seus atuais interesses no Afeganistão se limitam a garantir a segurança das fronteiras de seus aliados na Ásia Central, mas suas intenções finais são menos claras.
Apesar de o Kremlin ter declarado o Talebã como "terroristas" em 2003, a Rússia organizou nos últimos anos rodadas de negociações com o grupo e outras forças de oposição, sem incluir membros do governo afegão.
Os então líderes do Afeganistão, agora no exílio, só foram convidados para uma conferência internacional realizada em Moscou em março deste ano, da qual também participaram representantes da chamada "troika ampliada": Estados Unidos, China, Rússia e Paquistão.
"A Rússia tem ajudado o Talebã, não apenas com sua diplomacia, mas também com dinheiro e possivelmente inteligência", disse à BBC Mundo o cientista político Seth Jones, que é também diretor do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), com sede em Washington.
Jones, que é conhecido por seus muitos trabalhos sobre contra-insurgência e contraterrorismo, aponta ainda que por quase uma década a Rússia tem feito esforços para expandir sua influência em seu chamado "quintal".
"Um de seus interesses é simplesmente contrapor o poderio dos Estados Unidos em regiões que considera pertencerem a suas esferas de influência: Sul da Ásia, Oriente Médio e Leste Europeu", acrescenta Jones.
Mas a Rússia - que tem uma longa história de ataques jihadistas no Cáucaso - também se preocupa que o terrorismo avance na região.
"Moscou está alarmada principalmente com as ações do grupo autointitulado Estado Islâmico, um inimigo jurado da Rússia e do Talebã", diz o especialista em Afeganistão.
Para o jornalista afegão Mohammad Bashir, do serviço mundial da BBC, não há dúvida de que o Afeganistão é um país chave para a Rússia.
"O Afeganistão está no meio do jogo geopolítico. Sua localização o torna interessante e perigoso, porque faz fronteira com aliados da Rússia: Tajiquistão, Uzbequistão, Turcomenistão."
"A Rússia não quer que o Estado Islâmico se aproxime do norte do Afeganistão, ameaçando seus aliados e colocando seus próprios interesses em risco."
China: mais do que interesses econômicos
Além dos interesses econômicos no Afeganistão - a China ainda tem esperança de extrair cobre na região de Mes Aynak, no Afeganistão -, Pequim também teme que grupos islâmicos que operam na região de Xinjiang, no oeste da China, ganhem força.
"Os chineses estão interessados em fazer contraterrorismo no Afeganistão, devido às atividades de grupos extremistas uigures em Xinjiang e no Partido Islâmico do Turquestão (uma organização islâmica fundada por jihadistas uigures)", explica Seth Jones.
A China, que compartilha uma pequena fronteira com o Afeganistão, teme que, com o Talebã assumindo o controle de todo o país, grupos islâmicos se fortaleçam e possam cruzar a fronteira, criando ainda mais problemas na província de Xinjiang.
Nos últimos anos, Xinjiang ganhou as manchetes por acusações de genocídio contra o povo uigur - denúncias que Pequim chamou de absurdas.
Mas, além das preocupações com a segurança, a China há muito mostra interesse em fazer contrapeso aos Estados Unidos na região.
"A saída dos EUA do Afeganistão, junto com seus drones e seu aparato de inteligência, é boa notícia para os chineses, porque significa uma coisa a menos com que se preocupar", diz Jones.
EUA sob ameaça de um 'santuário para grupos extremistas'
Para Seth Jones, a decisão dos EUA de se retirar do Afeganistão foi "um grande erro", avaliação que muitos outros especialistas no Afeganistão repetiram.
"Vimos como um pequeno número de soldados americanos foi suficiente para dissuadir o Talebã de tomar cidades. Assim que eles começaram a se retirar, o Talebã avançou rapidamente."
Em seu primeiro discurso após a queda do poder central do Afeganistão para o Talebã, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que defende "integralmente" sua decisão de retirar as tropas dos EUA do país apesar das recentes cenas de caos na capital afegã Cabul.
Biden afirmou que jamais haveria um bom momento para a retirada militar do Afeganistão, o que explica por que a ocupação durou 20 anos. Ele afirmou que os objetivos americanos no país foram cumpridos. Mas Biden admitiu que a rapidez do avanço do Talebã foi algo inesperado na estratégia de retirada.
Segundo ele, para os EUA era fundamental impedir que o Afeganistão funcionasse como um Estado protetor para a organização fundamentalista Al Qaeda e capturar seu líder, Osama Bin Laden, considerado o artífice dos ataques de 11 de setembro de 2001 no território americano.
O democrata disse que o foco de sua gestão está em impedir "atos terroristas" dentro dos EUA e que a condição no Afeganistão não faz parte das prioridades de "segurança nacional".
Os interesses dos EUA no Afeganistão são variados. Por um lado, Washington sabe que seria muito perigoso deixar o Talebã controlar todo o país, pois isso significaria que o Ocidente teria que lidar com um estado de quase 40 milhões de habitantes que poderia servir de santuário para grupos extremistas.
Jones diz que o Talebã continua a manter "operações estratégicas e planos táticos" com a Al-Qaeda.
Os Estados Unidos também procuraram limitar as intervenções russa, chinesa e iraniana no país. E buscaram, antes, evitar uma catástrofe humanitária na região - um cenário que parece cada vez mais próximo, com a decisão de retirada das tropas dos Estados Unidos do país.
Depois que o Talebã entrou na capital, as imagens de caos e desespero de milhares de pessoas tentando fugir se tornaram uma constante no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, de Cabul.
Irã e sua presença 'clandestina'
A porosa fronteira do Irã com o Afeganistão, por onde passam migrantes, drogas e grupos armados, definiu suas relações com o Talebã.
Autoridades afegãs e norte-americanas acusaram repetidamente o Irã, especificamente a Guarda Revolucionária, de fornecer apoio financeiro e militar ao Talebã.
De acordo com o cientista político norte-americano Seth Jones, a Força Quds do Irã está expandindo sua presença clandestina no Afeganistão e a partir daí buscaria apoiar milícias e grupos políticos da região para promover os interesses iranianos.
A Força Quds é um poderoso braço paramilitar de elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, considerado pelos Estados Unidos como um grupo terrorista.
A cooperação de segurança do Irã com o Talebã também se baseia na hostilidade compartilhada em relação a potências ocidentais, como os Estados Unidos e o Reino Unido.
A extensão dos laços do Talebã com o Irã tornou-se aparente quando o líder talibã Mullah Akhtar Mansour foi morto em um ataque de drones dos Estados Unidos em maio de 2016, enquanto voltava do Irã para o Paquistão.
E, no final de 2018, o Irã reconheceu publicamente pela primeira vez acolher delegações do Talebã.
Ele disse que o fez com o conhecimento do governo afegão e admitiu que as negociações abordaram "a resolução dos problemas de segurança no Afeganistão".
Paquistão: um discurso ambíguo
Com a retirada das tropas americanas do Afeganistão, o Paquistão está em uma situação delicada, pois os dois países compartilham uma fronteira de 2.430 km, conhecida como Linha Durand, e têm uma história complicada e cheia de desconfiança.
Sem uma solução política visível, é muito provável que o Paquistão seja diretamente afetado pelos eventos no Afeganistão, que poderiam incluir uma guerra civil devastadora, resultando em um grande fluxo de refugiados e um aumento nos ataques transfronteiriços.
O ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Shah Mahmood Qureshi, disse no final de junho que seu país está atualmente hospedando "três milhões de refugiados afegãos e não quer hospedar mais".
Mas, além disso, o principal temor no Paquistão é que uma guerra civil no Afeganistão constitua "um grande desafio" para restaurar a paz em toda a região, como observou em julho o jornal nacionalista urdu Nawa-i-Waqt.
Mas muitos criticam que o governo do Paquistão às vezes mantém um discurso ambíguo em relação ao Talebã.
O ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Shah Mahmood Qureshi, destacou em abril deste ano que "o Talebã não deve ser responsabilizado por todos os males no Afeganistão", pois havia sabotadores dentro e fora que não queriam a paz no Afeganistão ou na região.
Por outro lado, o Paquistão negou repetidamente as alegações de que ajudou a moldar o Talebã, mas há poucas dúvidas de que muitos afegãos que inicialmente aderiram ao movimento foram educados nas madrassas (escolas religiosas) no Paquistão.
No passado, o Paquistão também foi um dos únicos três países, ao lado da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, a reconhecer o Talebã quando assumiu o poder. E foi a última nação a romper relações diplomáticas com o grupo.
Enquanto cinco nações movem suas fichas em um país que está imerso em uma guerra cruel há décadas, o Talebã toma o poder e a população afegã continua sofrendo todas as consequências.
Só no mês passado, mais de mil civis foram mortos no Afeganistão, de acordo com números da ONU.
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