Como Sérgio Reis foi do 'Menino da Porteira' a bolsonarista investigado por possíveis crimes
"É uma coisa totalmente sem sentido, um negócio maluco, a gente não consegue entender", diz Murilo Carvalho, jornalista e biógrafo de Sérgio Reis, sobre o envolvimento do cantor na organização de atos antidemocráticos planejados para setembro, com o voto impresso e a derrubada de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) como pauta.
Como o cantor que se lançou na Jovem Guarda, tornou-se um astro do sertanejo vencedor de Grammys, foi ator de novelas e elegeu-se deputado federal por São Paulo com mais de 45 mil votos chega aos 81 anos como alvo de investigações por diversos possíveis crimes, após ter se tornado um fervoroso defensor do presidente Jair Bolsonaro (sem partido)?
A BBC News Brasil conversou com Carvalho e outras pessoas próximas ao sertanejo, para tentar entender como um astro da música amado por milhares de brasileiros botou sua reputação a perder ao se colocar à frente de ameaças golpistas, posteriormente desautorizadas pelas próprias categorias que Sérgio Reis dizia representar.
"Os caminhoneiros não participam de ato político, nem a favor, nem contra o presidente", disse Wallace Landim, conhecido como Chorão, presidente da Abrava (Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores).
"Esses malandros têm que parar de usar a categoria como massa de manobra", completou o caminhoneiro, em vídeo nas redes sociais.
'Meu coração é igualzinho ao seu e sofre como eu'
Muito antes de se envolver com política, Sérgio Reis lançou seu primeiro álbum Coração de Papel em 1967, batizado a partir do sucesso do iê-iê-iê de mesmo nome, gravado pelo cantor acompanhado dos Jet Blacks.
A gravação do hit foi feita a convite de Tony Campello - irmão de Celly Campello (a cantora de Estúpido Cupido), pioneiro do rock no Brasil e produtor na Odeon.
Paulistano do bairro de Santana, na Zona Norte, Sérgio Reis nasceu Sérgio Bavini, passou por um breve período cantando rock sob o nome artístico de Johnny Johnson, até adotar o sobrenome Reis de sua mãe, no lugar do Bavini do pai.
No livro Sérgio Reis - Uma Vida, Um Talento, Murilo Carvalho conta que a virada de Serjão - como é chamado pelos amigos devido ao seu corpanzil de quase 2 metros de altura - da Jovem Guarda para o sertanejo começou num show feito numa festa de formatura em Tupaciguara, no Triângulo Mineiro.
Já encerrada a apresentação, Reis ouviu do camarim a banda seguinte tocando O menino da porteira, de Teddy Vieira e Luizinho, para uma plateia que explodiu em gritos e aplausos. Filho de violeiro e fascinado pela música sertaneja desde a infância, incluiu tempos depois a canção no repertório de um show numa boate - chamada Cafona - em Goiânia.
Como em Tupaciguara, o público se levantou, aplaudiu e pediu bis. Num momento em que a Jovem Guarda perdia o viço diante da ascensão da MPB de nomes como Chico Buarque e Caetano Veloso, Sérgio Reis viu na música caipira um novo rumo para sua carreira musical.
Com a nova empreitada, veio a amizade com Renato Teixeira e Almir Sater - os três vizinhos na Serra da Cantareira, região montanhosa e de mata preservada ao norte da capital paulista. Como Sater, Sérgio Reis investiu uma época com sócios em uma fazenda de gado no Pantanal.
"Em uma ocasião, ele levou o [autor de novelas] Benedito Ruy Barbosa para passar um tempo lá. O Benedito se encantou com aquela paisagem fantástica do Pantanal e acabou escrevendo a Pantanal para a Manchete", lembra Carvalho.
"E aí, ele convidou o Sérgio Reis como cantor para fazer uma dupla com o Almir Sater. Foi esse o início da vida dele como ator de novela, isso aumentou em muito a popularidade dele. Depois eles repetem a dupla nO Rei do Gado", cita o biógrafo, mencionando a novela de grande sucesso da Globo, que foi ao ar entre 1996 e 1997, na qual os cantores interpretaram a dupla caipira Pirilampo e Saracura.
'Caminhando pela estrada, deixo poeira rastros pelo chão'
Em paralelo à trajetória musical, Sérgio Reis teve uma extensa carreira no rádio, à frente do programa Siga Bem Caminhoneiro, veiculado por mais de uma centena de emissoras de todo o Brasil e posteriormente transformado em um programa de televisão transmitido pelo SBT.
Foi na função de apresentador que o cantor de Destino Carreteiro e Pela Estrada conheceu Carvalho, diretor dos programas por mais de 30 anos. E foi aqui também que conviveu com Pedro Trucão, principal repórter brasileiro especializado em transporte rodoviário de cargas.
"Eu fazia as reportagens e ele apresentava", lembra Trucão. "Depois vieram as inaugurações dos postos Siga Bem [projeto da Petrobras de postos rodoviários com serviços voltados aos caminhoneiros], e nelas eu fazia a apresentação e sempre havia um artista - em muitas dessas inaugurações, que aconteceram em todo o Brasil, esse artista era o Sérgio Reis."
Trucão diz que, à época, Sérgio Reis não demonstrava nenhum interesse por política.
"Ele nunca teve envolvimento com política, que eu saiba. O que tinha era talvez apresentação para algum grupo político, algum grupo empresarial, o que era natural. Mas envolvimento com política, eu não tenho conhecimento", diz o jornalista.
Também é o que relata Murilo Carvalho, amigo de Sérgio por mais de 20 anos antes de lançar a biografia do artista em 2018. "Ao longo desses 30 anos, ele não tinha nenhum envolvimento com política. Era estritamente musical, a gente viajava o Brasil fazendo shows, era absolutamente isento desse tipo de discussão", conta o biógrafo.
"Houve uma época inclusive em que ele apoiou bastante o Lula, falava que era um cara legal, tinha uma simpatia popular", recorda.
Em maio deste ano, numa entrevista ao F5, portal de entretenimento da Folha de S. Paulo, Sérgio Reis deixou clara sua mudança de opinião sobre o petista.
"Não ganha nem para presidente do Corinthians, o Lula acabou, o PT acabou", disse então, acrescentando que a esquerda "não serve para o Brasil" e duvidando das pesquisas que apontam o ex-presidente à frente de Bolsonaro em 2022. "Quem acredita nisso é idiota".
'Minha vida é andar por este país'
Carvalho conta que o que levou o músico apolítico a candidatar-se a deputado foram as andanças país afora fazendo shows.
"Segundo ele [Reis], ele se candidatou a deputado porque, como ele andava o Brasil inteiro, ele via muitos problemas e achava que, como político, podia ajudar a resolver", diz o jornalista.
Uma pessoa que acompanhou o processo de candidatura de Reis pelo PRB (atual Republicanos), mas que preferiu falar sob anonimato, conta que o músico foi trazido ao partido de Celso Russomanno e Marcelo Crivella por um empresário amigo.
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"Ele [Reis] falava assim: 'eu sempre fui muito bem tratado pelo meu público, acho que posso contribuir um pouco fazendo alguma coisa na política'", conta essa pessoa. "Ele dizia que tinha vontade fazer alguma coisa pela saúde, pelos idosos - ele já era idoso, tinha 74 na época."
O PRB viu no interesse do músico pela política uma oportunidade de fortalecer sua chapa, que naquele ano de 2014 contava ainda com o próprio Russomanno e Sula Miranda - com pouco menos de 4 mil votos, a também cantora e "Rainha dos Caminhoneiros" não se elegeu.
Os 1,5 milhão de votos obtidos por Russomanno naquele ano garantiram ao PRB mais quatro deputados, entre eles Sérgio Reis. O apresentador de TV e candidato derrotado à prefeitura de São Paulo foi na ocasião o deputado mais votado do Brasil, seguido pelo palhaço Tiririca (do PR de São Paulo, com 1 milhão de votos) e por Jair Bolsonaro, então no PP do Rio de Janeiro, com 464,6 mil votos.
"Quando ele [Reis] foi eleito, mandei um 'zapzap', falando para ele não esquecer do pessoal do trecho", conta Trucão, fazendo referência aos caminhoneiros.
"Ele foi eleito e uma parte dos votos eu sei que veio dos caminhoneiros mesmo, mas a coisa muda", diz o repórter especializado, acrescentando que, durante o mandato, Sérgio Reis não teve nenhuma atuação de destaque em defesa da categoria que ajudou a elegê-lo.
Carvalho avalia que a atuação de Reis como deputado foi mais "emocional" do que baseada em algum projeto político concreto. "O Sérgio não é um intelectual, é um homem muito simples, estudou o colegial e olhe lá. É um sujeito muito de chão, de terra a terra."
Na Câmara, o sertanejo fez amizade com um outro deputado. "Ele é como eu, italiano, malcriado e fala o que tem que falar", disse Reis sobre Jair Bolsonaro, na entrevista ao F5.
"Quando ele estava como deputado, não tinha grande influência. No mesmo período, o Bolsonaro também era um deputado que ficava lá, meio assim... O Sérgio, como cantor, muito simpático com todo mundo, acabou ficando amigo do Bolsonaro", conta Carvalho.
"A partir dessa amizade é que acredito que ele construiu essa história de apoio ao Bolsonaro, porque ele nunca teve uma coisa política forte", avalia o biógrafo.
Concluído seu mandato em 2019, Sérgio Reis não tentou a reeleição. "Acho que teve um pouco de tudo: cansaço, frustração e desgaste do dia a dia de Brasília", conta a fonte que optou pelo anonimato.
Nas eleições de 2018, a esposa do cantor, Ângela Bavini, tentou a eleição sob o nome de Ângela Reis. Com pouco mais de 4 mil votos, não conseguiu uma vaga no Câmara.
'Vamos invadir, quebrar tudo e tirar os caras na marra'
De volta à Serra da Cantareira e impedido de fazer shows pela pandemia, Sérgio Reis voltou aos holofotes este ano de maneira surpreendente.
Num vídeo, o sertanejo anunciava, para setembro, um acampamento em Brasília para defender o presidente Jair Bolsonaro e "salvar o Brasil".
"É uma coisa séria, um movimento clássico, sem agressões, sem nada. Queremos dar um jeito e movimentar esse país. Salvar o nosso povo", dizia o cantor. "Estamos nos preparando judicialmente para fazer uma coisa séria, para que o governo e o exército tomem posição."
Após a divulgação do vídeo, tornou-se público um outro registro do cantor, que provocou ultraje ainda maior. Num áudio de WhatsApp enviado a um amigo, Sérgio Reis fazia ameaças ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e aos ministros do STF.
"Dia 8 vamos ao Senado... Eles vão receber um documento assim: vocês têm 72 horas para aprovar o voto impresso e para tirar todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Não é um pedido; é uma ordem!", dizia Reis no áudio, afirmando que iria acompanhado de dois líderes caminhoneiros e dois representantes do setor de soja.
"Se vocês não cumprirem em 72 horas, nós vamos dar mais 72 horas, só que nós vamos parar o País. Já está tudo armado. O País vai parar", afirmava. "E, se em 30 dias eles não tirarem aqueles caras [os ministros do STF], nós vamos invadir, quebrar tudo e tirar os caras na marra."
O áudio teve ampla repercussão negativa, sendo prontamente negado por líderes caminhoneiros e representantes do agronegócio, como o sojicultor Blairo Maggi.
"Bloquear estradas com caminhoneiros será uma tragédia para o próprio agronegócio. Uma semana de confusão botará o Brasil de joelhos. Todo o fluxo de insumos e mercadorias será interrompido", disse Maggi à Folha de S. Paulo, expondo sua divergência com Antonio Galvan, presidente da Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), que participou das reuniões de articulação mencionadas por Sérgio Reis no chamado para os atos antidemocráticos.
O repórter Pedro Trucão conta que ficou surpreso quando recebeu o áudio e o vídeo de seu antigo colega de programas de TV e rádio.
"Me surpreendeu muito, eu não imaginava isso do Sérgio Reis. É para surpreender qualquer um, eu acredito, até porque ele não tem forças para isso, nem com o setor agrícola e muito menos com o caminhoneiro", afirma.
"Acredito que ele estava preparando um palanque para a chegada às eleições de 2022", especula o repórter. De fato, na entrevista ao F5 em maio, Reis havia confirmado dois planos para o futuro: o lançamento de um novo álbum com grandes sucessos e recheado de parcerias e a intenção de se candidatar novamente a deputado federal em 2022 pelo Republicanos.
Após o vazamento do áudio, porém, algumas das parcerias musicais ficaram prejudicadas.
"De Sérgio Reis, sempre tive enorme admiração pelo trabalho, bom gosto, extrema musicalidade", escreveu no Twitter o músico Gutemberg Guarabyra, famoso por integrar a dupla Sá e Guarabyra. "No disco dele que irá sair, inclusive participaria em uma faixa, gravação dele de Sobradinho. Mas me considero incompatível com seu posicionamento atual e infelizmente declino o convite."
Na sequência, Guarabyra publicou outro tuíte, fazendo um paralelo entre Sérgio Reis tocando um berrante e o "Chifrudo do Capitólio" Jake Angeli, que se tornou célebre brevemente após participar, em 6 de janeiro de 2021, da invasão ao Congresso americano por apoiadores de Donald Trump descontentes com a derrota do republicano nas urnas.
'Um desatino absurdo'
Para o biógrafo Murilo Carvalho, as falas de Sérgio Reis foram "bravatas" de um sujeito impulsivo, mas isso não exime o cantor da responsabilidade por elas.
"Ele teve uma reunião com um pessoal muito atrasado do agronegócio - o pessoal [na internet] inclusive diz que o Sérgio tem fazenda, mas ele não tem mais nada, só tem a casa dele e provavelmente deve até as cuecas", afirma.
De fato, após a convocatória antidemocrática de Reis vir a público, o colunista Guilherme Amado, do portal Metrópoles, informou que Reis soma R$ 640 mil em dívidas com a União, principalmente em impostos federais não pagos por empresas em que o cantor é sócio.
"Esse pessoal do agronegócio influenciou muito ele e é um pessoal muito atrasado, extremamente reacionário. Não que ele não tenha culpa - ele acredita nisso, certamente, se não, não faria essa besteira", diz Carvalho. "Ele cometeu um desatino absurdo ali, mas acredito que a mulher dele deu um puxão de orelha e ele se deu conta de que foi longe demais."
À Folha de S. Paulo, Ângela Bavini disse que o sertanejo foi "mal interpretado" e que adoeceu após a ampla repercussão negativa do vídeo.
"Ele está muito triste e depressivo porque foi mal interpretado. Ele quer apenas ajudar a população. Está magoado demais", afirmou à coluna de Mônica Bergamo. "A diabetes dele subiu que é uma barbaridade", disse ela, creditando a situação ao estresse.
Após a declaração de Bavini à Folha na segunda-feira (16/8), a situação jurídica de Reis piorou.
Na terça-feira, a Polícia Civil do Distrito Federal informou que abriu inquérito para investigar o ex-deputado por possíveis crimes previstos em três artigos do Código Penal: 147 (ameaça), 163 (destruição de coisa alheia) e 262 (expor a perigo, impedir ou dificultar o funcionamento de transporte público).
Mais tarde no mesmo dia, um grupo de 29 subprocuradores da PGR (Procuradoria Geral da República) encaminhou pedido de investigação contra o cantor, "diante dos graves acontecimentos que têm marcado a história recente do país, em particular as frequentes ameaças de ruptura institucional e de desrespeito à independência dos Poderes e de seus integrantes", conforme a representação.
Procurada pela BBC News Brasil, Ângela Bavini a princípio disse que falaria, depois adiou por diversas vezes a entrevista e, por fim, na quarta-feira (18/8), optou por não falar, pedindo desculpas em um áudio de WhatsApp.
"A gente está muito preocupado com o que está acontecendo em relação ao Sérgio", afirmou, citando a onda de críticas que o músico vem sofrendo nas redes sociais. "Você me perdoe, por favor, mas hoje eu estou com a cabeça para tentarmos resolver esse problema."
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