O que a eleição no Chile significa para a esquerda da América Latina
A eleição mais polarizada das últimas décadas no Chile terminou no último domingo com a vitória do esquerdista Gabriel Boric, que derrotou por 55,8% a 44,1% o adversário José Antonio Kast, de direita e, aos 35 anos, vai se tornar o mais jovem presidente da história do país — e também o mais votado.
Sua vitória e sua agenda jogam os holofotes na esquerda latino-americana, que havia ascendido ao poder em grande parte do continente no início do milênio, mas minguado na última década.
Mas o quanto essa esquerda — que agora engloba desde Boric a líderes considerados autoritários, como o venezuelano Nicolás Maduro e o nicaraguense Daniel Ortega — é coesa, ou mesmo igual à de duas décadas atrás?
E existe, de fato, uma nova "onda vermelha" no continente?
"É de fato uma questão da maior relevância, porque há um efeito contágio. O que acontece nos vizinhos acaba influenciando o jogo político aqui no Brasil. Há muito dessas dinâmicas transnacionais", diz à BBC News Brasil Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada na UFMG e pesquisador sênior do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).
"No fim dos anos 2000, o mapa da América Latina era tingido de vermelho. O engraçado é que, no fim da década de 2010, ficou ao contrário: (Mauricio) Macri ganhou na Argentina em 2015, houve o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e em sequência, com algumas outras vitórias, o mapa passou a ser azul", prossegue o estudioso.
"Me parece que a gente está num momento de aparente reversão desse fluxo, mas com muito equilíbrio ainda. Não acho que dê para falar de uma onda vermelha. Mas certamente a virada à direita estancou", opina.
Agora, diz Belém Lopes, o continente está dividido entre países no momento governados pela direita — em países como Brasil, Colômbia, Uruguai, Paraguai e Equador — e os de esquerda, como México, Argentina, Peru, Bolívia, Venezuela, Nicarágua e outros.
Mas, no ano que vem, esse equilíbrio de forças terá dois momentos decisivos: as eleições presidenciais do Brasil e da Colômbia.
Aqui, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem liderado as intenções de voto e ensaia uma possível aliança com seu ex-adversário Geraldo Alckmin.
Na Colômbia, cujo governo atual, de Iván Duque (direita), tem baixos índices de popularidade, o favoritismo no pleito de maio de 2022 até agora é do esquerdista Gustavo Petro.
Essas eleições, em especial a brasileira, serão "o fiel da balança", diz Belém Lopes. "Se aqui no Brasil a esquerda voltar ao poder, aí sim a balança pende para a esquerda — afinal, o Brasil sozinho é um terço da América Latina, e no momento está nas mãos da direita. A radiografia atualmente é de uma divisão de forças."
As divisões de uma esquerda 'mais frágil'
Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV-SP, a crise econômica provocada pela pandemia de covid-19 no continente abre uma brecha para a esquerda, "mas é uma esquerda com profundas diferenças entre si e em sua visão de mundo", diz à BBC News Brasil.
"Obviamente existem semelhanças, como a ênfase na desigualdade, nos serviços públicos e em um Estado mais forte. Mas, se você sai do campo econômico e vai para o social, as diferenças são grandes", prossegue Stuenkel.
Ele cita como exemplo as diferenças entre Boric — que durante a campanha no Chile levantou bandeiras como a do casamento gay e da legalização do aborto — e outro líder esquerdista a vencer recentemente: o peruano Pedro Castillo, de posições conservadoras em temas ligados aos direitos reprodutivos das mulheres ou causas LGBT.
"Nesse quesito, há muito pouco que une esses personagens", aponta Stuenkel.
"As diferenças são profundas, mas a esquerda está se renovando. Nesse sentido, uma outra leitura é a de que o Chile está um pouco na frente. (...) Muito vai depender de como Boric vai governar. Ele representa uma nova esquerda, mas, se fracassar, essa nova esquerda pode sumir."
Boric, um ex-líder estudantil, tem em sua coalizão o Partido Comunista, mas, na disputa de segundo turno pela Presidência precisou fazer acenos a (e alianças com) figuras ao centro da política chilena para abocanhar mais votos.
Agora, em meio ao processo de construção de uma nova Constituição no Chile, Boric terá grandes desafios para pôr em prática seu programa de governo — que inclui aumento nos impostos da população mais rica e das grandes empresas, o fim do atual sistema de aposentadorias e criação de um fundo universal de financiamento da saúde pública e privada —, sem ter maioria no Congresso e em um país ainda bastante dividido.
Isso representa também um pouco dos obstáculos de outros líderes à esquerda no continente.
"É uma esquerda de articulação mais frágil — não tem aquela coesão do início dos anos 2000, em que parecia que de fato era uma novidade", analisa Dawisson Belém Lopes.
"Alguns filósofos falavam (na época) de um 'socialismo do século 21', de um movimento novo. Agora, não. É uma volta das composições amplas, da social-democracia. (...) Boric teve que fazer esse esforço também: não é mais o líder estudantil de outros tempos, é outra figura. Teve que compor com o centro da política chilena. É uma esquerda que chega com menos impacto. Tende a ser mais institucional, convencional, não tão transformadora com o início dos anos 2000", avalia.
Além disso, Boric faz esforços para se diferenciar da esquerda bolivariana representada por Nicolás Maduro, que comanda um regime acusado de prisões arbitrárias e supressão da oposição.
Em maio, quando Maduro celebrou, no Twitter, o resultado das eleições locais chilenas (para cargos de constituintes, governadores e prefeitos) como uma "contundente rejeição ao neoliberalismo selvagem", Boric retuitou dizendo:
"E também um mandato de respeito irrestrito aos direitos humanos. Algo em que tanto (o presidente chileno Sebastián) Piñera e o senhor não têm estado à altura."
Aqui no Brasil, Lula também tem sido cobrado por seu apoio (ou ao menos ausência de críticas) à contestada vitória de Daniel Ortega na Nicarágua.
Nesse sentido, a esquerda latino-americana é hoje "um balaio de muitos gatos", afirma Belém Lopes.
"Há muitas tendências hoje. A esquerda que competiu com o (Guillermo) Lasso, presidente do Equador (que governa desde maio deste ano), tinha argumentos indigenistas, ambientalistas, assim como Boric tem argumentos ligados à economia verde. Tem uma nova esquerda aí, talvez mais liberal nos costumes, que preza mais pelas liberdades individuais, de imprensa, expressão. As perspectivas coletivistas são deixadas de lado, ao contrário da Venezuela. E os direitos civis têm um peso muito grande."
Os obstáculos da esquerda que já está no poder
Ao mesmo tempo, a esquerda que já está no poder hoje enfrenta críticas e desafios diversos.
No México, o populista Andrés Manuel Lopez Obrador (ou AMLO) passou meses minimizando a pandemia de covid-19 e chegou a se opor ao uso de máscaras. No início deste ano, o país chegou a ter as mais altas taxas de mortes por covid-19 de todo o continente.
No Peru, o atual presidente Pedro Castillo, um professor com raízes no sindicalismo, assumiu o país em julho, depois de uma série de convulsões sociais e políticas, e chegou a ser alvo de um pedido de impeachment que não prosperou no Congresso. Na visão da revista britânica The Economist, em reportagem de outubro, Castillo tem uma gestão até agora "definida por inexperiência política e indecisão, pelo extremismo e brigas internas de seus aliados e por um mandato fraco".
Na Argentina, o governo de Alberto Fernández sofreu uma dura derrota nas eleições legislativas de novembro e, pela primeira vez desde 1983, o peronismo perdeu o controle do Senado do país.
Na avaliação de Belém Lopes, a fragilização desses governos não se deve ao fato de serem de esquerda: "A questão de fundo é a pandemia, que dilapidou o capital político no espectro todo, da esquerda à direita", analisa o pesquisador.
"De modo geral, a gestão da pandemia na nossa região é considerada das mais desastrosas, não só no Brasil. A média de contágio e de fatalidades é muito grande. Nossos números são muito ruins. E todos os políticos vêm sendo punidos pela gestão ruim que fizeram da pandemia e de seus efeitos."
Além disso, existem os movimentos de rejeição a o que é visto como a "política tradicional".
"Conversei com dois polítólogos chilenos muito importantes recentemente, e a perplexidade mais ou menos generalizada era com o fato de que, pela primeira vez desde a redemocratização do Chile, nos anos 1990, as tradicionais coalizões de direita e esquerda não tiveram nenhum protagonismo no processo (eleitoral)", ressalta Belém Lopes.
"A turma encabeçada pela (ex-presidente) Michelle Bachelet e a turma encabeçada pelo (atual presidente) Sebastián Piñera ficaram completamente à margem. Quem ascendeu foi uma ultradireita militarista, pinochetista, e uma esquerda insurrecional na sua origem, das revoltas estudantis de 2011."
Embora ambos os lados tenham se aproximado do centro para ampliar seu eleitorado, "são candidaturas que, na sua origem, desafiavam o sistema político eleitoral. Mas a tendência agora, naturalmente, é de normalização. Dentro dessa lógica, o (direitista) Kast está pensando (nas eleições) de 2025".
Democracia chilena
A partir de agora, os olhos se voltarão à capacidade de Boric em executar suas promessas. "Se ele conseguir implementar metade do que promete, vai virar alguém que define e inspira uma nova esquerda", avalia Oliver Stuenkel.
"As expectativas são gigantescas. Mas o Chile é uma democracia superconsolidada, a mais resiliente da América Latina, junto com o Uruguai, o que facilita o trabalho de Boric. É um país com uma capacidade de discussão pública de muito alto nível. (...) O que diferencia uma democracia de qualidade é a maior capacidade de resolver seus problemas de forma construtiva e sua cultura de debate (para cargos de constituintes, governadores e prefeitos) — e o Chile tem esse espírito, apesar de sua desigualdade."
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