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Pistola ou Lei Maria da Penha: 82% das mulheres são contra maior acesso a armas como quer Bolsonaro

Em evento com eleitoras, Bolsonaro sugeriu que elas estariam mais seguras com uma pistola na bolsa do que com a legislação contra violência doméstica - Diego Vara/Reuters
Em evento com eleitoras, Bolsonaro sugeriu que elas estariam mais seguras com uma pistola na bolsa do que com a legislação contra violência doméstica Imagem: Diego Vara/Reuters

Mariana Sanches - @mariana_sanches - Da BBC News Brasil em Washington

Da BBC News Brasil em Washington

06/09/2022 05h22

Em evento com eleitoras, Bolsonaro sugeriu que elas estariam mais seguras com uma pistola na bolsa do que com a legislação contra violência doméstica. Presidente tenta crescer entra as mulheres, mas dados inéditos da Quaest mostram que o eleitorado feminino recusa o armamento mais do que o masculino.

A facilitação ao acesso a armas, uma das principais bandeiras do presidente Jair Bolsonaro (PL), é o tema que mais divide homens e mulheres no Brasil. É o que mostram dados inéditos de uma pesquisa Genial/Quaest à qual a BBC News Brasil teve acesso com exclusividade.

Enquanto 82% das mulheres são contra armar a população, só 63% dos homens expressam o mesmo posicionamento. Perguntados sobre outros temas polêmicos, como legalização do aborto e diminuição da maioridade penal, homens e mulheres não demonstraram o mesmo grau de discordância.

O resultado do levantamento, feito a partir de 2 mil entrevistas presenciais realizadas na semana passada em todo o Brasil, mostra por que causou polêmica a declaração do presidente, em um evento exclusivo para mulheres eleitoras em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, no último fim de semana.

"Quando precisar trocar um pneu sozinha na rua e vier pessoas na sua direção, prefere ter na bolsa uma Lei Maria da Penha ou uma pistola? E ninguém aqui é contra Maria da Penha. Nosso governo foi o que mais prendeu machões", afirmou Bolsonaro, em referência à legislação de 2006 que protege mulheres contra a violência doméstica.

Desde que assumiu, Bolsonaro publicou uma série de decretos e portarias que ampliaram o acesso a posse e porte de arma de fogo, armas de uso restrito e munições. Atualmente, o número de armas à disposição de civis no Brasil já supera a quantidade de armamento do contingente da Polícia Federal.

Nesta segunda (5/9) o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou a suspensão de parte dessas novas regras para limitar a circulação de armas, alegando "risco de violência política".

Uma análise nos dados da Polícia Federal sobre novos registros de armas mostram que os beneficiários da flexibilização no acesso a armamento foram majoritariamente os homens. A BBC News Brasil tabulou as informações obtidas pelo portal de transparência Fiquem Sabendo, que mostram na prática a diferença apontada na pesquisa da Quaest: entre 2019 e o primeiro trimestre de 2022, mais de 96% dos novos registros de armas foram feitos por homens.

A pesquisa da Quaest sugere que esse eleitor beneficiado pela flexibilização das armas demonstra fidelidade a Bolsonaro. A pesquisa mostra que 45% dos que declaram voto no atual presidente também afirmam ser contrários às ações para facilitar o armamento. Já entre os que declaram voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o percentual de desaprovação quase dobra (88%).

Se pode contar com o apoio dos homens afeitos às armas, Bolsonaro tem entre suas maiores fragilidades a baixa intenção de voto no eleitorado feminino. Em agosto, o Datafolha mostrou que 53% das mulheres diziam rejeitar Bolsonaro.

O desafio é enorme, especialmente para o candidato que busca a reeleição e aparece atualmente mais de dez pontos percentuais atrás de Lula, que lidera as sondagens

Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, com 82 milhões de votantes, as mulheres são a maioria do eleitorado feminino (53% dos votos). Entre o grupo de 16 e 17 anos, o percentual chega a 54% e a 56% na faixa acima de 70 anos ou mais. Elas são também a maioria entre os indecisos.

A arma no centro do voto

"A questão da arma é central para explicar essa diferença que há hoje entre homens e mulheres na avaliação do presidente. As mulheres entendem que mais armas representam mais violência para as famílias delas, independentemente de uma posição mais à direita ou mais à esquerda (em outros assuntos). Esse é um tema que divide a sociedade há tempos, e que não foi tão importante em 2018, mas que nessa eleição poderá ser decisivo", afirma o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest.

É justamente neste contexto que o presidente tem feito da primeira-dama Michelle Bolsonaro - uma figura até então discreta em seu mandato - protagonista nas peças publicitárias da campanha de reeleição. É também neste contexto que ele tentou sugerir, em Novo Hamburgo, que as mulheres da plateia estariam em melhor situação se carregassem consigo uma pistola.

"A afirmação do presidente é estapafúrdia. O Brasil é um país extremamente violento e a vida das mulheres é marcada cotidianamente pelas expressões da violência, do assédio até o feminicídio. E a gente sabe que a presença de arma de fogo no ambiente doméstico expõe essa mulher a um risco de letalidade muito maior, já que 90% dos agressores são os maridos ou ex-companheiros", afirma a cientista política Marlise Matos, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

No Brasil, uma mulher é assassinada por sua condição de gênero a cada sete horas, segundo um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a partir de dados da violência de 2020.

Mulheres contra "bandido bom é bandido morto"

Para Matos, no entanto, a própria segurança não é a única preocupação das mulheres quando se fala em aumento da circulação de armas.

"Uma segunda explicação é que, se a gente pudesse fazer um cruzamento por gênero e raça, a gente veria, por exemplo, que essa preocupação com armas é maior ainda para as mulheres negras, e faz muito sentido que seja porque elas são as mães dos jovens negros que caem abatidos como moscas em decorrência da violência urbana no país", afirma Matos.

Alguns dados da Quaest sustentam essa afirmação. Primeiro, enquanto 50% dos homens brasileiros concordam com a frase "bandido bom é bandido morto", só 39% das mulheres chancelam a mesma frase. Segundo que, enquanto brancos tendem a aprovar mais a flexibilização nas regras de armamento (27%), os pretos são menos favoráveis a elas (20%).

Para Matos, ao abordar esse tipo de assunto com as mulheres, o presidente mostra que não entendeu bem o público com quem tenta dialogar.

"É esdrúxula a afirmação do presidente de que é melhor sacar uma arma do que sacar a Lei Maria da Penha, porque as mulheres não têm essa percepção. Acho que a pesquisa da Quaest mostra isso. No geral, a mulher não vai resolver ou mediar o seu conflito escalando a situação para uma violência ainda mais letal e de maior gravidade. Ela vai procurar uma amiga, um líder religioso, o Estado, ou vai se calar e sofrer sozinha, mas não tende a partir pra violência com as próprias mãos", diz Matos.

Homens e armas

Para os estudiosos de mulheres e política, a segurança pública é certamente um tema importante para elas, mas a solução para o problema e a prioridade da questão são percebidos de maneira diferente do que para os homens, por motivos de ordem prática e cultural.

Socialmente, mulheres são estimuladas a se dedicarem aos cuidados com a família, o que explica porque, historicamente, elas demonstram mais interesse e preocupação com saúde pública ou inflação de alimentos do que os homens.

"O armamento e a militarização estão fortemente identificados com o masculino. Desde pequenos, os meninos ganham arminhas, têm brincadeiras agressivas, enquanto as mulheres são educadas a reprimir a agressividade e a priorizar outras coisas, como o cuidado. Isso perpassa a sociedade. Já há estudos mostrando que, fora do Brasil, nas legislaturas nas quais as mulheres são eleitas em maior proporção, existe uma mudança em gastos de governo. Gastos com fins militares diminuem e esses recursos são alocados para outras áreas, principalmente saúde pública. Ou seja, existe uma priorização de áreas que têm claro recorte de gênero", afirma Malu Gatto, professora de Política Latino-Americana da University College London.

O estudo a que Gatto se refere foi feito por Amanda Clayton e Par Zetterberg, da University of Chigago, com 139 Estados que adotaram cotas para aumentar a participação parlamentar feminina entre 1995 e 2012. Os autores notaram relevante queda no orçamento das Forças Armadas e incremento nos sistemas públicos de saúde quando havia mais mulheres nos parlamentos. O estudo foi publicado em 2018.

Mulheres contra o aborto

Gatto nota ainda que, tanto no Brasil, quanto no restante da América Latina, as eleitoras tendem a ser tão ou mais conservadoras do que os homens. Isso explica, por exemplo, porque homens e mulheres têm posições muito próximas em relação à legalização do aborto: 71% deles e 69% delas são contrários, segundo a pesquisa Quaest.

Durante a pré-campanha, Lula foi duramente criticado até por aliados quando defendeu que a questão do aborto precisaria ser enfrentada como "um tema de saúde pública, a que todo mundo tivesse direito".

Entre o eleitorado que se diz decidido a votar em Lula, 63% são contra descriminalizar o aborto. Já entre os eleitores de Bolsonaro, a porcentagem chega a 85%.

Diante das manifestações contrárias, e tentando disputar com o atual presidente a preferência entre as evangélicas, Lula recuou de seu posicionamento e passou a dizer que defendia que "as mulheres pobres vítimas de aborto pudessem ser tratadas no sistema público de saúde".

Nos Estados Unidos e na Europa, o mesmo eleitor ? ou eleitora ? que rechaça o aborto costuma ser também o que defende o direito de cada cidadão se armar. Gatto nota, porém, que isso não se repete no Brasil.

"Você pode ser conservador, ou de direita, em termos de valores morais relacionados à sexualidade, por exemplo, e a direitos reprodutivos. Mas ter uma visão que estaria mais alinhada, digamos, com perspectivas de esquerda, justamente nessa questão do armamento. Aí a explicação parece estar mais relacionada à experiência de gênero do que a alinhamentos ideológicos", diz.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62794529


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