Como religião dominou política nos EUA, mesmo com menor crença em Deus em 8 décadas
Os Estados Unidos costumam ter uma imagem de país profundamente religioso, mas uma pesquisa Gallup divulgada recentemente revelou que o número de americanos que acreditam em Deus, apesar de ainda alto, vem caindo — e é o menor já registrado em pelo menos 78 anos.
Diante da pergunta "você acredita em Deus?", 81% dos adultos entrevistados em maio deste ano responderam "sim", e 17% disseram que "não". O restante afirmou não ter opinião. A pesquisa não menciona nenhuma religião especificamente e, nesse contexto, acreditar em "Deus" pode ser interpretado como crer em um poder superior.
Em 1944, quando o instituto fez essa pergunta pela primeira vez, 96% responderam acreditar em Deus. O percentual chegou a 98% em 1953 e se manteve acima de 90% durante as seis décadas seguintes. Em 2013, caiu para 87%, resultado repetido em 2017.
Mesmo com o declínio mais recente, a vasta maioria da população ainda diz acreditar em Deus.
"Pesquisas vêm mostrando que a crença em Deus está, lentamente, caindo nos Estados Unidos", diz à BBC News Brasil o sociólogo Paul Froese, professor da Universidade Baylor, no Texas, onde também é diretor de pesquisas sobre religião.
"Mas ela ainda é a norma."
O resultado da pesquisa Gallup chama a atenção, no entanto, em um momento em que a religiosidade está cada vez mais ligada à identidade política dos americanos ? e que decisões da Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça no país, vêm ampliando o papel da religião na vida pública.
Segundo o Gallup, na comparação desses últimos resultados com a média entre quatro pesquisas feitas entre 2013 e 2017, houve declínio em todos os grupos demográficos. Mas a redução foi mais acentuada entre jovens e aqueles que se identificam como progressistas ou democratas, com queda de pelo menos 10 pontos percentuais.
Enquanto 62% dos progressistas afirmaram acreditar em Deus, entre os conservadores o percentual foi de 94%, queda de apenas um ponto. Entre os que se identificam como democratas, 72% responderam crer em Deus, uma diferença de 20 pontos em relação aos 92% dos republicanos que disseram o mesmo.
"A religiosidade é um dos principais fatores determinantes de divisões políticas nos Estados Unidos", diz o instituto de pesquisa.
Deus bíblico ou poder superior?
"É preciso ter em mente como o Gallup fez a pergunta", diz à BBC News Brasil o sociólogo Ryan Cragun, professor da Universidade de Tampa, na Flórida, e especialista no estudo dos não-religiosos.
A pesquisa Gallup perguntou "você acredita em Deus?", e ofereceu apenas duas opções de resposta: "sim" ou "não". Os que optaram pelo "sim" responderam a uma segunda pergunta, para aprofundar que tipo de visão têm sobre Deus.
"Cerca de metade dos que acreditam em Deus ? o equivalente a 42% de todos os americanos ? diz que Deus ouve suas preces e intervém quando as pessoas rezam", afirma o instituto.
"E 28% de todos os americanos dizem que Deus ouve as preces, mas não pode intervir."
Mas Cragun ressalta que, quando outras pesquisas oferecem opções de resposta mais complexas, em que os entrevistados podem expressar o que pensam em maiores detalhes, o percentual de americanos que revelam acreditar em Deus é ainda menor.
"Se você olhar para o percentual que diz 'não sei se existe um Deus', ou 'talvez às vezes acredite' (ou outras respostas do tipo), é na verdade cerca de 45% dos americanos", afirma.
Cragun destaca que, pelos menos nos últimos 40 anos, o número daqueles que acreditam no Deus bíblico vem caindo nos Estados Unidos.
"Nem todos passam imediatamente a dizer 'não acredito em um Deus'. Muitos agora acreditam em um poder superior, e não está claro como (esse poder superior) é definido", observa.
"Mas também cada vez mais pessoas estão dizendo 'não acredito em um Deus', e também 'não sei (afirmar com certeza se existe ou não)', o que é o rótulo de agnóstico", afirma.
Em uma pesquisa Gallup de 2016, que oferecia mais opções de resposta além de "sim"ou "não", 11% responderam não acreditar em Deus. Mas outros 10% disseram que era "um assunto sobre o qual não têm certeza". Os 79% que afirmaram ser "algo em que acreditam", representam uma queda de 11 pontos percentuais em relação a 2004.
Em 2017, outra pesquisa Gallup revelou que 64% dos adultos americanos estavam "convencidos de que Deus existe", uma queda de 15 pontos em relação a 2005. Outros 21% achavam que Deus provavelmente existia, mas tinham dúvidas; 6% achavam que provavelmente não existia; e 7% estavam convencidos de que não existia.
No mesmo ano, uma pesquisa de outra organização, o Pew Research Center, revelou que, enquanto 80% diziam crer em Deus, somente 56% acreditavam no Deus bíblico. Os outros acreditavam em um poder maior ou força espiritual. Entre os 19% que não acreditavam em Deus, metade acreditava em um poder superior.
Aumento dos sem religião
A queda no percentual da população que diz acreditar em Deus ocorre ao mesmo tempo em que se observa declínio em vários outros indicadores relacionados à religião nos Estados Unidos. Segundo o Gallup, o percentual de americanos que são membros de uma igreja, sinagoga ou mesquita caiu de 70% para 47% de 1999 a 2020.
Todas as faixas etárias registraram queda nesse período, mas o instituto afirma que o declínio "parece estar amplamente ligado a mudanças na população", com grandes diferenças entre as gerações. Enquanto 66% dos nascidos antes de 1946 disseram pertencer a uma igreja, somente 36% dos nascidos após 1981 responderam o mesmo.
O percentual vem diminuindo mesmo entre os que se definem como religiosos, com queda de 13 pontos desde a virada do milênio. Mas a queda também acompanha um aumento daqueles que dizem não se identificar com nenhuma religião, que passaram de 8% para 21% nas últimas duas décadas, com crescimento em todas as faixas etárias.
No ano passado, o Pew analisou a composição religiosa da população e revelou que o percentual de americanos sem religião passou de 16% em 2007 para 29% em 2021. Neste grupo, estão os que se descrevem como ateus, agnósticos ou "sem religião em particular".
No mesmo período, o percentual dos que se identificam como cristãos caiu de 78% para 63%. Esse declínio se concentra entre os protestantes, que passaram de 52% para 40% da população, segundo o Pew. A queda entre os católicos foi menor, de 24% para 21%.
Números divulgados pelo Gallup no ano passado, levando em conta uma média entre diferentes pesquisas, indicam tendência semelhante: 69% dos americanos se identificavam como cristãos, sendo 35% protestantes e 22% católicos. Outros 21% diziam não ter preferência religiosa.
Segundo essa análise Gallup, 49% dos americanos consideram a religião "muito importante" em suas vidas. Em 1965, quando o instituto fez a pergunta pela primeira vez, 70% diziam que era muito importante.
Conforme o estudo Pew, de 2007 a 2021, o percentual de americanos que consideram a religião "muito importante" em suas vidas caiu de 56% para 41%, e o dos que rezam todos os dias oscilou de 58% para 45%.
"As mudanças em direção à secularização, evidentes na sociedade americana até o momento no século 21, não dão sinais de desaceleração", disse o Pew na divulgação da pesquisa.
Politização da religião
"Talvez essas mudanças não representem uma grande modificação na maneira de pensar das pessoas ? mas, sim, em como se tornou culturalmente aceitável não ir à igreja", afirma Froese, da Universidade Baylor.
O sociólogo lembra que, historicamente, nos Estados Unidos, sempre houve muita pressão social para pertencer a uma igreja, mas isso enfraqueceu com o tempo.
"Talvez os que (agora) estão dizendo que não creem em Deus já não acreditassem, mas apenas não dissessem isso abertamente."
Froese observa que os esforços de parte da sociedade para ampliar o papel da religião na vida pública também podem ser uma reação à tendência de secularização.
"Há um certo paradoxo no fato de que, à medida que o secularismo se torna mais culturalmente aceitável, há uma reação a isso entre pessoas religiosas muito conservadoras", afirma.
Segundo Froese, há uma politização da religião nos Estados Unidos, e a identidade religiosa adquiriu uma conotação política que não costumava ter. Pessoas com comportamentos religiosos semelhantes se descrevem de maneira oposta, de acordo com sua inclinação política.
"Digamos que duas pessoas nos Estados Unidos pertencem a uma igreja, vão à missa três vezes por ano e dizem em pesquisas que acreditam firmemente em Deus. Quando você pergunta o quão religiosas elas são, a conservadora vai dizer que é muito religiosa, e a liberal vai responder que não é nem um pouco religiosa", afirma Froese.
"Nos Estados Unidos, um conservador sempre irá dizer que é muito religioso, porque isso é considerado uma parte integral de ser conservador. E progressistas vão dizer que não são religiosos, mesmo que sejam, simplesmente porque não querem que (os outros) pensem que são conservadores."
Decisões da Suprema Corte
Cragun, da Universidade de Tampa, lembra que, desde a década de 1990, se tornou mais aceitável nos Estados Unidos para uma pessoa admitir que não é religiosa ou que é ateia.
"Durante a Guerra Fria, você não podia fazer isso, porque imediatamente as pessoas iriam perguntar: 'Você é um comunista?'", lembra Cragun.
"Então, as pessoas não admitiam, apesar de eu acreditar que esses números (dos que não acreditam em Deus) já vinham aumentando."
Para Cragun, o aumento no percentual dos que agora admitem abertamente não crer em Deus pode ser uma resposta aos sucessos políticos e legais do nacionalismo cristão, encabeçados pelos que acreditam que os Estados Unidos devem ser um país cristão.
"Acho que os nacionalistas cristãos nos Estados Unidos, que são muito vocais e estão promovendo sua agenda, estão finalmente forçando aqueles que não são religiosos, que não acreditam, a dizer: 'Sou ateu há 40 anos, e apenas não dizia. Mas agora vou dizer'", afirma.
"Vários juízes da Suprema Corte não são apenas conservadores, mas conservadores cristãos", afirma Cragun.
"E muitos casos estão sendo decididos em favor de uma ideologia que está sendo rotulada cada vez mais como nacionalismo cristão."
Em junho deste ano, a Suprema Corte ? atualmente composta por seis juízes da "ala conservadora", que foram indicados por presidentes republicanos, e três da "ala liberal", indicados por democratas ? derrubou a decisão no caso "Roe x Wade", que desde 1973 garantia o direito constitucional ao aborto.
A decisão abriu caminho para que os Estados possam proibir completamente a interrupção da gravidez, e provocou protestos em todo o país por parte de grupos que defendem direitos reprodutivos. Mas também foi comemorada por ativistas contrários ao aborto, muitos deles religiosos e que há décadas lutavam pela revogação da decisão do caso "Roe x Wade".
No mesmo mês, a Corte emitiu decisão favorável a um técnico de futebol americano de uma escola pública de Ensino Médio que brigava na Justiça pelo direito de rezar no meio do gramado depois de cada jogo. O caso colocava, de um lado, a proibição de que o governo endosse uma religião, prevista na Constituição americana, e, de outro, o direito à liberdade religiosa e de expressão.
Em outro caso recente, a maioria decidiu que o Estado do Maine não pode excluir escolas religiosas de programas de assistência financeira para o pagamento de mensalidades. A decisão foi criticada por afetar a capacidade dos Estados de se recusarem a financiar educação religiosa.
Comparação com outros países
Apesar das mudanças na sociedade, os Estados Unidos continuam a ser descritos como um país muito religioso em comparação com outras nações, especialmente na Europa Ocidental. Segundo pesquisa Pew de 2018, somente 27% dos europeus dizem acreditar no Deus bíblico, e 38% afirmam crer em um poder superior.
Mas Cragun, da Universidade de Tampa, diz não concordar com essa descrição e salienta que, em termos de comportamento real, os americanos não são tão mais religiosos que os moradores de outros países.
"Se você tem 70% (da população) dizendo que é religiosa, mas somente cerca de 20% realmente participando (de cultos, missas e outras celebrações), isso significa que 50% dos americanos dizem que pertencem a uma religião, mas não vão à Igreja", afirma Cragun.
"O quão religiosos são eles realmente, se não estão envolvidos?"
Ele está finalizando o livro Beyond Doubt: the Secularization of Society ("Sem Sombra de Dúvida: a Secularização da Sociedade", em tradução livre), com publicação prevista para 2023, em que analisa o declínio de crença e comportamento religioso ao redor do mundo, com dados de mais de 100 países.
"Não somos tão religiosos como as pessoas pensam. Ainda somos mais religiosos que muitos países desenvolvidos, mas eu não diria que somos um país altamente religioso", observa.
"Compare (os Estados Unidos) com, digamos, a Arábia Saudita. No momento em que fizer isso, as pessoas irão dizer: 'Ah, claramente não somos tão religiosos'."
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62760987
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