Iraque faz 'censo mais perigoso do mundo', com potencial de abalar o Oriente Médio

Durante dois dias, todo o Iraque estará sob toque de recolher: as fronteiras ficarão abertas, mas entre 43 milhões e 46 milhões de cidadãos comuns receberam instruções para não ir ao trabalho nem à escola.

As restrições relativas a esta quarta (20) e quinta-feira (21) nada têm a ver com outros conflitos em curso no Oriente Médio: pela primeira vez em quase quatro décadas, realiza-se no país árabe um recenseamento completo a fim de aferir não só o número de habitantes, como o que fazem e como vivem.

Munidos de tablets eletrônicos, entre 120 mil e 140 mil recenseadores especialmente treinados apresentarão mais de 70 perguntas. As autoridades iraquianas prometem dados preliminares dentro de 24 horas, e resultados completos no prazo de dois meses.

"Situação é explosiva em todo o país"

Enquanto políticos argumentam que o censo é essencial para o desenvolvimento nacional, há ressalvas quanto às suscetibilidades políticas e mesmo o potencial perigo de tal "contagem de cabeças", que influenciará aspectos da sociedade iraquiana indo desde a infraestrutura à saúde e educação.

"A situação é explosiva em todo o país", afirma Adel Bakawan, diretor do Centro de Pesquisa sobre o Iraque, sediado em Paris, "porque não foi resolvida nenhuma das questões centrais entre os diferentes componentes da sociedade iraquiana - muçulmanos xiitas e sunitas, curdos."

Para a maioria xiita, o censo é um "imperativo nacional", enquanto os sunitas "o veem como um mecanismo de dominação xiita sobre o país", e para os curdos trata-se de "uma arma acionada pelo governo central contra eles", explica Bakawan.

O último recenseamento em âmbito nacional realizou-se em 1987; o de 1997, sob Saddam Hussein, excluiu as regiões curdas. Em 2003, após a invasão pelos Estados Unidos, o ditador foi derrubado, e uma nova contagem programada para 2007 foi adiada diversas vezes, por temores de desestabilização nacional.

Durante uma tentativa em 2009, diversos recenseadores foram mortos por atiradores em Mossul. No vizinho Líbano, onde a situação étnica é análoga, não há recenseamentos há mais de 90 anos, por receios sociais semelhantes.

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Territórios disputados, faturamento do petróleo e funcionários fantasmas

Há outros motivos para a demora na realização de um novo censo. Desde 2003 o sistema político do Iraque se baseia num esquema de quotas estabelecido pelos administradores americanos, a fim de evitar conflitos pelo poder. O primeiro-ministro é sempre xiita; o líder do parlamento, sunita; e o presidente, curdo, o que garante que os grupos demográficos mais importantes estejam politicamente representados.

Um censo que forneça uma imagem atual e mais precisa das comunidades iraquianas pode quebrar esse equilíbrio. Bakawan prevê que provavelmente seja necessário elevar o número de assentos no parlamento, de 329 para cerca de 450, já que a lei prevê um representante para cada 100 mil habitantes.

Além disso, os iraquianos tendem a votar dentro de sua própria comunidade étnico-religiosa: "Então, dado que a taxa de natalidade entre os curdos é de 1,9, e entre os xiitas, de 4,99, estes deverão reafirmar ainda mais sua dominância demográfica."

No entanto, qualquer alteração no equilíbrio de poder no parlamento e nas câmaras locais pode gerar novas tensões entre os diferentes grupos. Outro aspecto polêmico de um censo no Iraque são os assim chamados "territórios disputados", que os curdos consideram parte de sua região semiautônoma no norte, mas o governo afirma pertencerem à federação.

A Constituição nacional de 2005 postula que a solução para esse impasse deveria incluir um censo, mostrando quem vive realmente nas áreas em questão. Porém a contagem poderá resultar em respostas que não agradem nem aos curdos nem aos árabes.

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O faturamento com o petróleo é outro fator problemático: em 2023 ele resultou numa média mensal de cerca de 8 bilhões de dólares (R$ 46 bilhões). A quantia deveria ser dividida igualmente entre as províncias, enquanto as menos populosas receberiam menos verbas estatais.

Os "funcionários fantasmas" são mais um problema que o recenseamento pode afetar: supostamente, dezenas de milhares de iraquianos mantêm diversos empregos ao mesmo tempo, inclusive no governo federal, e subornam os chefes com parte do seu salário para manter o emprego sem precisar comparecer ao trabalho.

"Não são só números, mas narrativas demográficas"

Bagdá tentou contornar esses e outros problemas removendo do formulário as perguntas sobre etnicidade ou facção religiosa. Na opinião do diretor para o Oriente Médio e Norte da África do think tank Crisis Group, Joost Hiltermann, isso reduz o potencial perigoso da iniciativa.

"Recenseamentos padrão por todo o mundo não incluem o quesito da etnicidade, pois ele tende a criar questionamentos politicamente voláteis quanto ao tamanho relativo dos grupos étnicos." Assim, a decisão das autoridades iraquianas de retirar o item torna o censo "muito menos delicado" do ponto de vista político.

No que tange as apreensões quanto aos "territórios disputados", o governo federal concordou em tomar o censo de 1957, anterior à ditadura de Hussein, como base para aferir a população curda em locais sensíveis como Kirkuk. Porém há quem critique essas resoluções como táticas políticas que reduzirão o significado da contagem.

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"Não se trata apenas de números, são 'narrativas' demográficas", argumentava em maio o analista político local Yahya al-Kubaisi num artigo editorial para o veículo Al-Quds Al-Arabi¸ sediado em Londres. "Elas foram transformadas em dados que produzem medidas políticas, esses números estão refletidos em tudo", por isso essas categorias não devem ser ignoradas.

Apesar de tudo, Hiltermann, do Crisis Group, crê que o impacto geral será positivo: "O censo fornece informação vital sobre a sociedade iraquiana à medida que ela evoluiu, sobretudo após uma lacuna tão longa. É vital para o desenvolvimento. E pode haver ou não corrupção, mas com informações precisas, atualizadas, pelo menos se pode lançar uma estratégia de desenvolvimento baseada na realidade."

O especialista enfatiza a vantagem de excluir os dados relativos ao volume dos diferentes grupos: "Os iraquianos devem ser, acima de tudo, cidadãos, e ser tratados como tal pela estratégia governamental. Dividir a sociedade em grupos étnicos, como aconteceu no Líbano e no Iraque, só aumenta o risco de conflito violento."