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Teorias conspiratórias elevaram bactéria a 'causa de mortes' por covid

Vírus Sars-COV-2 (em amarelo) infectam células humanas, que replicam material genético e morrem - NIAID
Vírus Sars-COV-2 (em amarelo) infectam células humanas, que replicam material genético e morrem Imagem: NIAID

Maurício Moraes

Da Agência Lupa

30/06/2020 04h00

Diz o ditado que "quem conta um conto aumenta um ponto". De uma desinformação a outra, posts falsos que circularam por pelo menos 18 países, de janeiro a junho, transformaram uma bactéria na verdadeira responsável pelas mortes de covid-19.

Sem nenhum respaldo científico, essa teoria da conspiração foi moldada aos poucos e colocou o novo coronavírus, real causador da doença, no papel de simples coadjuvante na pandemia. Nas versões mais recentes, a bactéria ganhou superpoderes, tornando-se ainda mais letal graças ao 5G — nova tecnologia ultraveloz de transmissão de dados móveis.

Até a história chegar à sua forma atual, foi um longo caminho. A associação entre bactérias e o Sars-CoV-2 começou logo no início da pandemia, em janeiro, por meio de uma mensagem de voz que foi desmentida na Turquia.

Entre várias afirmações erradas, o conteúdo dizia que o novo coronavírus, por ser diferente de qualquer outro organismo conhecido, tinha o poder de "ativar" bactérias e outros vírus no corpo humano. Com isso, facilitaria uma infecção secundária, agravando a covid-19. Na época, no entanto, estudos já apontavam que o problema não ocorria na maioria dos pacientes.

Por mais absurda que possa parecer, essa relação foi reproduzida em 3 de fevereiro por ninguém menos do que o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Em entrevista à imprensa sobre os esforços do país contra a doença, ele comparou o novo coronavírus ao HIV.

"Você não morre de HIV. Você morre porque seu corpo é enfraquecido pelo vírus e então as bactérias se espalham e há pneumonia. O coronavírus também funciona assim", disse. No entanto, como os dois vírus têm natureza totalmente diferente e agem de modo distinto, a "teoria" foi desmentida mais uma vez.

Essa versão, então, perdeu força e, em março, deu lugar a outra, completamente diferente e muito mais mirabolante, na Rússia. Uma ativista contra os transgênicos, Irina Ermakova, disse que o fragmento de uma bactéria sintética criada nos Estados Unidos em 2010, a Synthia, teria sido encontrado no RNA do coronavírus. Isso comprovaria a origem artificial do causador da covid-19, que teria sido desenvolvido por pesquisadores norte-americanos.

Checadores desmentiram a afirmação. Não há qualquer evidência que embase a teoria de Ermakova, que aliás teve pesquisas contestadas pela comunidade científica.

A Synthia está bem distante de ser uma arma biológica e não há pedaço do seu genoma no Sars-CoV-2. O organismo tem o código genético derivado de uma outra bactéria, a Mycoplasma mycoides, causadora da pleuropneumonia contagiosa bovina, uma
doença que afeta esse grupo de animais na África
.

A diferença é que o DNA da Mycoplasma mycoides foi reduzido para que a Synthia conseguisse viver com o menor genoma possível. Ou seja, os cientistas não acrescentaram combinações que poderiam torná-la letal — apenas removeram tudo o que acreditavam ser desnecessário para a vida.

Nessa época já circulavam acusações falsas de que o coronavírus teria sido produzido artificialmente. O nome do linguista e filósofo Noam Chomsky foi usado em uma dessas teorias, que apareceu na Espanha e foi parar na Argentina.

Segundo um post no Facebook, Chomsky teria acusado os Estados Unidos de iniciar uma "guerra bacteriológica" ao criarem o Sars-CoV-2. Na verdade, em entrevista ao jornal Il Manifesto, ele havia dito justamente o contrário. "Não há nenhuma credibilidade na afirmação de que o vírus foi espalhado propositalmente", afirmou. Análises científicas confirmaram a origem natural do vírus, desmontando essas teorias da conspiração.

O ataque das bactérias assassinas

Quando parecia que tudo estava esclarecido, a história propagada em janeiro misturou-se com a da Mycoplasma mycoides e voltou com uma nova roupagem no final de abril. Checadores da França tiveram que desmentir a afirmação de que o novo coronavírus infectava uma bactéria encontrada na flora intestinal, a Prevotella.

Ao ser "contaminada", ela se espalharia rapidamente, provocando uma reação imunológica capaz de deteriorar os pulmões e causar a morte da pessoa. Um dos combustíveis para essa associação foi a defesa, ainda não confirmada cientificamente, de que um antibiótico, a azitromicina, seria eficaz contra a covid-19.

Cientistas afirmam, no entanto, que o novo coronavírus não consegue infectar nenhuma bactéria — ele não tem ferramentas que possam permitir esse tipo de invasão. Os checadores só encontraram cartas e artigos não revisados de um pesquisador indiano, Sandeep Chakraborty, respaldando essa tese.

Entre outras coisas, ele argumentava que o código genético do Sars-CoV-2 havia sido encontrado em bactérias retiradas de pacientes. Isso é improvável. O coronavírus não tem a capacidade de alterar o DNA das células que invade. Seu RNA fica livre no citoplasma, fabricando cópias do vírus. Além disso, Prevotella é o nome de um grupo de organismos, não uma bactéria específica.

A letalidade do Sars-CoV-2 continuou a ser contestada por autores de posts de desinformação. Pouco tempo depois, em maio, mensagens desmentidas no Peru e no Brasil voltaram a apontar uma bactéria não identificada como causadora das mortes pela covid-19.

Isso teria sido descoberto por médicos italianos. Eles teriam descumprido uma "lei mundial" da Organização Mundial de Saúde (OMS) e fizeram uma autópsia em cadáveres de pacientes mortos pela doença. A bactéria causaria coágulos sanguíneos
que levariam a óbito e poderia ser facilmente tratada com antibióticos, anti-inflamatórios e anticoagulantes. Nada disso era verdade.

A origem dessa história foi um texto enganoso que circulou pelas redes sobre as "autópsias de Bérgamo", na Itália. Ao examinar cadáveres de covid-19, médicos de um hospital localizado na cidade e de um hospital situado em Milão identificaram a ocorrência de tromboses nos corpos. A partir desse fato real, no entanto, o texto conclui ser essa a causa das mortes, abrindo caminho para uma falsa teoria. Em nenhum momento, no entanto, a peça de desinformação citou a presença de bactérias. E embora a covid-19 possa facilitar a formação incomum de coágulos, essa é apenas uma das complicações da doença.

A mistura de uma condição real, a trombose, com a ação de bactérias, no entanto, levou essa teoria da conspiração a viralizar. Com poucas variações em relação ao post que circulou no Brasil e no Peru, checadores de pelo menos mais nove países tiveram que desmentir versões semelhantes nos últimos dois meses. O post falso deu a volta ao mundo e circulou por Austrália, Bélgica, Egito,
Estados Unidos, Filipinas, Índia, Quênia, Rússia e Turquia.

Essa desinformação foi incrementada recentemente com outros elementos falsos. Na Colômbia, na Espanha, nas Filipinas e na Ucrânia, a história passou a incluir que o 5G seria capaz de amplificar a ação das bactérias na covid-19.

Segundo uma página de perguntas e respostas divulgada pela OMS, contudo, não se encontrou até hoje nenhum efeito danoso à saúde causado pelas redes de transmissão de dados para celular.

A versão nova do texto também passou a dizer que a Itália derrotou a doença e que o ministro da Saúde daquele país mudou o protocolo de tratamento para aspirina e anti-inflamatórios. O governo italiano desmentiu essas alegações.

O que dizem os estudos

Infecções secundárias causadas por bactérias podem ocorrer em pessoas internadas com covid-19, mas apenas uma pequena parte delas é atingida.

Uma revisão de 30 estudos feitos entre 1º de janeiro e 17 de abril com informações sobre 3.834 pacientes mostrou que apenas 7% deles contraíram também uma infecção bacteriana. As mais comuns foram Mycoplasma pneumonia, Pseudomonas aeruginosa e Haemophilus influenzae. Também houve infecções secundárias por outros vírus em 3% e apenas três estudos indicaram infecções por fungos.

Esta coluna foi escrita pela Agência Lupa a partir das bases de dados públicas mantidas pelos projetos CoronaVerificado e LatamChequea Coronavírus, que têm apoio do Google News Initiative, e pela CoronaVirusFacts Alliance, que reúne 88 organizações de checagem em todo mundo. A produção das análises tem o apoio do Instituto Serrapilheira e da Unesco. Veja outras verificações e conheça os parceiros em coronaverificado.news