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Desinformação fez da máscara 'vilã' após países adotarem uso contra covid

Passageiros de transporte público usam máscaras de proteção em Londres  - Tolga Akmen/ AFP
Passageiros de transporte público usam máscaras de proteção em Londres Imagem: Tolga Akmen/ AFP

Maurício Moraes

Da Agência Lupa

16/06/2020 04h00Atualizada em 16/06/2020 14h08

Em apenas dois meses, posts compartilhados nas redes sociais transformaram as máscaras em "vilãs" da pandemia da covid-19. A partir de abril — quando vários países, incluindo o Brasil, passaram a recomendar que todas as pessoas colocassem máscaras ao sair às ruas, para evitar contaminação pelo novo coronavírus —, multiplicaram-se as publicações com acusações falsas sobre os supostos danos à saúde causados por esse tipo de proteção.

Desde o início da pandemia até 15 de junho, plataformas de checagem de 47 países publicaram 254 verificações que citavam de alguma maneira esse equipamento de proteção. A concentração dessas checagens foi maior nos Estados Unidos (37), Espanha (26), Brasil (19), Índia (19), França (16), Taiwan (15), Alemanha (11) e Itália (11).

Entre janeiro e março, predominaram nas redes sociais os posts sobre recomendações de uso e problemas de logística, como a indisponibilidade das máscaras em alguns países. Foram 59 textos sobre os dois temas em 79 checagens.

A partir de abril, no entanto, essa tendência sofreu uma mudança radical. Antes praticamente inexistentes, publicações acusando as máscaras de serem perigosas tornaram-se maioria entre os conteúdos checados, somando 92 dos 175 posts publicados no período, ou 52,5% do total.

Houve apenas 24 textos verificados sobre recomendações de uso e questões de logística entre 1º de abril e 10 de junho, equivalentes a apenas 13,7% de todo o material desse tipo analisado pelas plataformas de checagem.

A maior parte dos posts negativos (41) acusa as máscaras de causar dois tipos de problemas respiratórios. O primeiro deles, a hipóxia, consiste em um quadro clínico de baixa concentração de oxigênio no sangue, que impede o funcionamento adequado do corpo. Isso ocorreria com o uso prolongado da proteção, porque essa barreira impediria o dióxido de carbono (CO?),
resultante da respiração, de escapar, sendo inspirado novamente pela pessoa. Isso provocaria ainda uma segunda condição médica, a hipercapnia -- uma concentração elevada de dióxido de carbono no sangue.

Especialistas de diferentes partes do mundo desmentiram essas alegações. Todas as máscaras são porosas -- ou seja, nenhuma
delas funciona como uma barreira de vedação aos gases
, mas bloqueia as partículas levadas por eles. Logo, o CO? expirado retorna para o meio ambiente.

A pessoa que está com o equipamento também inspira o oxigênio que está do lado de fora da proteção. Nas máscaras caseiras, a vedação é bem menor do que a das versões cirúrgicas. Mesmo equipamentos de uso profissional, como a N95, filtram somente a entrada de micropartículas no corpo, sem impedir as trocas de oxigênio e dióxido de carbono.

A história de que as máscaras podem causar hipóxia circulou primeiro na Alemanha. Em 24 de abril, foi publicada a checagem de um post falso com a acusação de que essa proteção reduziria a concentração de oxigênio no sangue. Não demorou muito para que a história viralizasse pelo mundo.

A informação foi desmentida na Venezuela em 4 de maio; na Guatemala, um dia depois; na França, em 6 de maio; e no Brasil, na Colômbia e no México, no dia 7 de maio. Ao longo de pouco mais de um mês, a desinformação circulou por 22 países em todo o mundo, sendo que 7 deles estão localizados na América Latina e outros 7, na Europa.

Outro tipo de post bastante compartilhado dizia que as máscaras não funcionavam contra o novo coronavírus — e, por isso, não fazia nenhum sentido usá-las. Foram produzidas 13 verificações sobre isso.

Nesse caso, o argumento usado nessas alegações varia e inclui desde orientações falsas atribuídas ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos até uma suposta afirmação da Organização Mundial de Saúde (OMS), dizendo que o vírus não é transmitido pelo ar.

Mais recentemente, até mesmo um estudo com 455 pessoas expostas a um infectado assintomático foi usado para "provar" que a proteção facial era desnecessária, porque nenhum deles foi infectado. Na verdade, todas essas pessoas usaram máscaras durante o experimento.

Em abril, também começaram a circular textos nas redes sociais com a alegação de que as máscaras estavam contaminadas. Foram localizadas ao todo 12 checagens desse tipo. A mais antiga, publicada no Brasil em 14 de abril, desmentiu um áudio de WhatsApp que acusava a China de infectar propositalmente esses equipamentos de proteção.

A mensagem não mencionava nenhuma prova de que isso havia acontecido. Ao ser questionado, o autor da gravação admitiu ser ele mesmo a fonte da "denúncia" e não apresentou nenhum documento que a embasasse.

A maior parte das publicações sobre esse tema, no entanto, exibia um vídeo com agentes do FBI transportando caixas para o interior de um caminhão. Uma legenda dizia se tratar de uma operação em que os policiais norte-americanos teriam apreendido lotes de máscaras com coronavírus vindas da China.

As imagens mostravam, na verdade, uma apreensão de material hospitalar estocado ilegalmente nos Estados Unidos. Checagens desses posts começaram a ser publicadas em 20 de abril, nas Filipinas e na África do Sul. Dois dias depois, a história já era desmentida no Brasil.

Circulou ainda uma grande quantidade de desinformação que associava as máscaras a atividades criminosas. Uma primeira versão foi desmentida na Itália em 2 de abril, em que uma foto mostraria dois homens que teriam doado máscaras para entrar em um prédio e assaltar moradores. A imagem era anterior à pandemia.

Depois disso, tornou-se popular a história falsa de que pessoas distribuíam máscaras com produtos químicos que faziam as vítimas adormecerem, permitindo que fossem furtadas. Esse boato circulou por Estados Unidos, Taiwan, França, Irlanda, Espanha, Costa Rica, Alemanha e Myanmar.

Há acusações ainda mais bizarras, como a de que o uso desses equipamentos de proteção ajuda o coronavírus a infectar o cérebro.

A pessoa contaminada inspiraria de volta o próprio vírus retido pela máscara, facilitando que ele viajasse até o órgão. Não há, contudo, qualquer base científica nessa alegação.

Mais recentemente, surgiu na Itália um outro boato, acusando esses equipamentos de causarem câncer. A barreira de proteção seguraria o dióxido de carbono, o que faria as pessoas desenvolverem acidose respiratória por inspirarem de volta o gás retido. Esse processo levaria à formação de um tumor. O relato, contudo, é falso.

Recomendações

No início da pandemia, o uso das máscaras não era amplamente recomendado. Havia o temor de que isso pudesse provocar uma corrida para a compra do equipamento, o que seria um problema grave para os profissionais de saúde, que precisam usar as máscaras em sua atividade.

A orientação era que, além deles, apenas quem estivesse infectado usasse esse tipo de proteção. Com o aumento dos casos da covid-19 pelo mundo e a descoberta científica de que pessoas assintomáticas poderiam transmiti-lo, governos de diferentes países começaram a rever essa posição.

O uso de máscaras, inclusive de fabricação caseira, passou a ser recomendado de forma geral, principalmente para evitar que pessoas contaminadas e sem sintomas espalhassem a doença.

No Brasil, a mudança de posicionamento ocorreu em 2 de abril. Nos Estados Unidos, o CDC alterou a sua orientação no dia seguinte. Mais recentemente, em 6 de junho, a OMS também passou a recomendar o uso de máscaras em espaços públicos.

Esta coluna foi escrita pela Agência Lupa a partir das bases de dados públicas mantidas pelos projetos CoronaVerificado e LatamChequea Coronavírus, que têm apoio do Google News Initiative, e pela CoronaVirusFacts Alliance, que reúne 88 organizações de checagem em todo mundo. A produção das análises tem o apoio do Instituto Serrapilheira e da Unesco. Veja outras verificações e conheça os parceiros em coronaverificado.news