Topo

Esse conteúdo é antigo

"Censurar minha palestra foi como queimar livros durante a ditadura", comparou Moro após ter evento cancelado na Universidade de Buenos Aires

Andre Coelho/Getty Images
Imagem: Andre Coelho/Getty Images

Em Buenos Aires (Argentina)

30/05/2020 08h48Atualizada em 30/05/2020 15h59

Um dia depois de ter a sua palestra cancelada na Argentina, Sergio Moro revelou que, depois do episódio, multiplicaram-se os convites para outras conferências na Argentina. "Eu devo realizar alguma outra conferência. Depois do cancelamento, muitos argentinos entraram em contato, lamentando o havido e ofereceram para realizar a conferência em outro cenário, em outro contexto", revelou Moro em entrevista ao canal argentino de notícias La Nación Más (LN+).

A entrevista aconteceu nesta sexta-feira (29) logo após o cancelamento da palestra "Combate contra a corrupção, democracia e estado de direito", que aconteceria na Faculdade de Direito da principal universidade argentina e uma das mais destacadas da região, a Universidade de Buenos Aires. O evento seria realizado pela plataforma digital Zoom no dia 10 de junho às 10 da manhã.

Esta seria a primeira palestra internacional de Moro desde que saiu do governo Bolsonaro no dia 24 de abril.

Porém, logo após a divulgação do evento, apareceram expressões de repúdio por parte de políticos, profissionais e acadêmicos identificados com o kirchnerismo, setor liderado pela vice-presidente Cristina Kirchner e alinhado com o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. O organizador do evento, o Centro de Estudos sobre Transparência e Luta contra a Corrupção, decidiu suspender a atividade.

"Houve um misto de intolerância e de pressão política num cenário de polarização que afeta tanto o Brasil quanto a Argentina. Não levo isso para o lado pessoal. Essa polarização política dificulta o diálogo e o debate", avaliou Moro sem, no entanto, esconder a sua surpresa por se tratar de um setor onde a liberdade tenderia a prevalecer.

"Acho que o ambiente acadêmico é um ambiente próprio para o pluralismo, para o debate e para a liberdade de expressão", considerou.

Impedir palestras é como queimar livros

O ex-juiz e ex-ministro comparou a censura que sofreu com uma prática comum às ditaduras dos anos 70, tanto na Argentina quanto no Brasil. "Esse tipo de situação de impedir palestras é mais ou menos o que se fazia no passado quando se queimavam livros em situações arbitrárias", refletiu. "Não me parece a postura mais apropriada do ponto de vista da tolerância", acrescentou.

Confrontado com o fato de o presidente Alberto Fernández, na qualidade de professor de Direito da faculdade, ter assinado a carta de repúdio à participação de Moro, informação que, no entanto, não foi confirmada pelo governo, Sergio Moro evitou criticar a suposta postura do líder argentino.

"Não me cabe avaliar a conduta do presidente. O que eu vi, em geral, foi um discurso de certa incompreensão do que foi realizado no Brasil, motivado por questões político-partidárias", questionou.

Carta de repúdio

Entre outros políticos, assinaram a carta de repúdio a Moro a atual ministra das Mulheres, dos Gêneros e da Diversidade, Elizabeth Gómez Alcorta, o ex-juiz da Corte Suprema, Eugenio Zaffaroni, e também professores da faculdade e ligados ao kirchnerismo.

"Durante o exercício da magistratura, Moro representou um modelo de juiz incompatível com o Estado Democrático de Direito ao prender uma pessoa (Lula) sem que a sua sentença estivesse firme; o que impediu a sua apresentação como candidato, possibilitando a vitória de Bolsonaro", diz um trecho da carta de repúdio.

Em 2017, o então juiz Sergio Moro condenou o ex-presidente Lula em primeira instância, mas não ordenou a sua prisão que só aconteceria depois da sentença segunda instância, que aumentou a pena contra o petista. O Supremo Tribunal tinha avalizado a prisão em segunda instância, situação que foi revertida com decisão no ano passado que propiciou a liberdade de Lula. Independentemente da prisão do ex-presidente, a condenação em segunda instância, em 2018, ativou a Lei da Ficha Limpa que impede a candidatura de condenados penais por um tribunal.

"Houve comentários de pessoas dentro da faculdade, a meu ver, fundados numa incompreensão do que foi a Operação Lava Jato no Brasil", interpretou Moro.

Visita a Lula na prisão foi ofensiva

A aproximação do presidente argentino com o ex-presidente Lula foi questionada por Moro, para quem "a relação Brasil-Argentina tem de ficar acima de questões partidárias". No entanto, ele criticou a visita que o então candidato, Alberto Fernández fez, em julho do ano passado, ao ex-presidente Lula na prisão em Curitiba.

"Na época, achei que isso foi um pouco ofensivo. Sinceramente, achei que não fez bem para as relações bilaterais. Não foi muito apropriado", sentenciou o ex-juiz.

Lawfare é papo de criminoso

Para o kirchnerismo, Sergio Moro foi um juiz parcial no processo que condenou Lula, sendo um representante do chamado "Lawfare", termo usado para definir uma guerra judiciária para intervir na política e para destruir adversários. Esse é hoje o principal argumento usado por Cristina Kirchner, acusada de corrupção em diversos processos.

"Com todo respeito, lawfare é conversa de criminoso que busca se defender. No fundo, como não têm como questionar as provas, é muito fácil invocar perseguição política como defesa quando não tem como se defender", acusou Moro, relembrando que a Lava Jato condenou a todos os envolvidos sem distinção de ideologia nem de tamanho do poder.

"Foram condenados empresários que pagaram subornos, diretores das estatais que receberam subornos e políticos, tanto da direita quanto da esquerda", recordou.

O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, rebateu a declaração de Moro. "Ao contrário do que afirmou Sérgio Moro, lawfare não é papo de criminoso. É uma prática de cooptação do poder do Estado que, seguindo uma verdadeira estratégia de guerra, faz uso estratégico do Direito para destruir ou aniquilar inimigos. A ação criminosa pode estar na prática do lawfare, não na conduta da vítima. A prática envolve acusações sem materialidade, subversão da garantia da presunção de inocência, e condenações pré-estabelecidas. O caso do ex-presidente Lula é emblemático no campo do lawfare", disse.

Sem avanço na agenda anti-corrupção de Bolsonaro

O ex-ministro da Justiça defendeu a sua postura de integrar o governo do presidente Jair Bolsonaro "porque tinha o objetivo de avançar com reformas", mas que "só foram alcançadas em parte".

"A agenda que eu assumi no governo Bolsonaro era contra a corrupção, contra o crime organizado e contra a criminalidade violenta. Avançamos bastante contra o crime organizado e contra a criminalidade violenta, mas, na agenda anticorrupção, de fazer reformas para melhorar a lei, de fazer alterações para proteger as instituições de influências políticas, nisso praticamente não houve avanço", admitiu Moro, colocando no banco dos réus o presidente Bolsonaro.

"Eu já vinha numa crescente insatisfação com a falta de atenção com a agenda anticorrupção por parte da Presidência", contou como um processo prévio à suposta tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.