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Chico Alves

REPORTAGEM

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'Conluio de Bolsonaro e Arthur Lira é nefasto para o país', diz pesquisador

Jair Bolsonaro com Arthur Lira  - Reprodução
Jair Bolsonaro com Arthur Lira Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

22/08/2021 04h00

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Enquanto o presidente da República ataca o Judiciário e mantém o público e as instituições mobilizadas para evitar um golpe, o presidente da Câmara dos Deputados tem caminho livre para aprovar sem grandes sobressaltos várias pautas que enxugam o Estado e retiram direitos dos brasileiros, como sempre pregou o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Essa leitura do cenário atual é do pesquisador João Cezar de Castro Rocha, professor doutor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor do livro "Guerra cultural e retórica do ódio" (Editora Caminhos).

"É um conluio absolutamente nefasto e que criará dificuldades muito grandes para o próximo governo", diz o professor, nessa entrevista à coluna.

Segundo ele, temas como privatização da Eletrobras, criação de uma carteira de trabalho para jovens sem benefícios, a tentativa de acabar com a estabilidade do funcionário público são colocados em pauta por Arthur Lira geralmente no fim do expediente parlamentar, com pouco tempo para debate.

Seria justamente esse o objetivo do show diário de absurdos de Bolsonaro: tirar o foco das votações da Câmara, enquanto a militância bolsonarista se encarrega de inflamar debates completamente sem sentido.

Aplacar essa câmara de eco que propaga ódio e desinformação seria uma providência útil. Mas como?

"O bolsonarismo não é compreensível sem considerarmos o fenômeno da monetização, que é uma espécie de rachadinha universal", explica Rocha. "Não existe militância bolsonarista que não cace likes para obter a monetização do seu canal de YouTube". Por isso, a decisão do Supremo Tribunal Federal, de desmonetizar alguns canais que usam discurso de ódio foi comemorada pelo professor.

UOL - Qual a extensão do prejuízo causado pela parceria entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira?

João Cezar de Castro Rocha - O conluio Jair Messias Bolsonaro e Arthur Lira é muito mais nefasto do que percebemos. O procedimento típico do Bolsonaro é ele esticar a corda e provocar pânico. As instituições se reúnem, ele avança um passo e enquanto ele estica a corda e produz toda essa confusão, o Arthur Lira está fazendo o verdadeiro tratoraço.

Há dois tratoraços: o do orçamento secreto e o que o Arthur Lira tem feito. Ele sistematicamente tem colocado pautas que são muito prejudiciais para o país, especialmente para os trabalhadores. Ele coloca essas pautas para a votação geralmente no final do expediente e simplesmente não respeita o regimento, passa por cima de qualquer possível obstrução por parte da oposição.

Ele, aliás, inovou no regimento de modo a não permitir a obstrução, que é algo que se faz em parlamentos do mundo inteiro. O Arthur Lira está passando adiante uma pauta neoliberal mas que não é do Paulo Guedes do Bolsonaro, mas do Paulo Guedes do Pinochet. Isso é muito importante.

Quando nós pensarmos no Paulo Guedes nós não temos que pensar no Paulo Guedes da Faria Lima, nós não temos que pensar no Paulo Guedes do Bolsonaro, nós temos que recordar sempre que é o Paulo Guedes do Pinochet.

É esta agenda que ele pretende impor. E, surpreendentemente, enquanto o Bolsonaro faz espuma, o Arthur Lira passa o trator. É um conluio absolutamente nefasto e que criará dificuldades muito grandes para o próximo governo.

Quais são os principais exemplos de que essa estratégia está dando certo?

A privatização da Eletrobras, a privatização dos Correios, a criação de uma carteira de trabalho para jovens que não é carteira de trabalho coisa alguma, a uberização da economia como um todo, a tentativa de passar a perda da estabilidade do funcionário público, o Distritão que ele tentou passar há pouco tempo. Todas essas pautas que são realmente absurdas e estão indo adiante.

O Arthur Lira ter colocado para plenário o voto impresso depois de ter sido derrotado na Comissão de Constituição e Justiça, que, como sabemos, é liderada pela Bia Kicis, é sintomático. Pelo trâmite normal, isso levaria ao arquivamento da pauta.

O Arthur Lira levou a pauta para o Congresso e hoje nós sabemos que muito dinheiro correu por debaixo dos panos para que se obtivessem votos de um modo a dar munição para retórica golpista do Jair Messias Bolsonaro.

Este conluio é o que há de pior no Brasil de hoje. É uma parceria estratégica, mas é sobretudo uma apropriação econômica do Centrão sobre os recursos federais.

Como, apesar de tantas fake news, o bolsonarismo ainda mantém apoio importante nas redes sociais?

A extrema direita em todo mundo aproveitou-se da era digital para uma interferência nova na política, isso já sabemos. E se eu disser que o bolsonarismo no Brasil introduziu a política na era do e-comerce?

O bolsonarismo não é compreensível sem considerarmos o fenômeno da monetização, que é uma espécie de rachadinha universal. Não existe militância bolsonarista que não cace likes para obter a monetização do seu canal de YouTube. Não existe militância bolsonarista que o tempo todo não esteja fazendo algum tipo de vaquinha.

Pode ser vaquinha para um filme que nunca é lançado, pode ser vaquinha para ir a Brasília. Eu acabei de ver a uma empresa de turismo que lançou um pacote para fazer manifestação. O Sérgio Reis naquele vídeo polêmico, na verdade bizarro, dizia: "ficaremos hospedados em Brasília o tempo que for necessário com o hotel e tudo pago". Lembra disso? Quem paga?

A monetização é o fenômeno-chave para compreender o bolsonarismo, é como se houvesse um certo nível de empreendedorismo no campo da política. Você tem youtubers que oferecem cursos o tempo todo, que pedem desesperadamente superchats (contribuições em dinheiro feitas pelo espectador).

O Allan dos Santos (youtuber bolsonarista investigado no inquérito das fake news) há pouco tempo publicou no Twitter um pedido desesperado dizendo "estamos sendo perseguidos e ameaçados, por favor colaborem conosco". E ele colocava o PIX do Terça Livre. Não existe possibilidade de manifestação política que não seja monetizada.

A decisão do Supremo Tribunal Federal de desmonetizar alguns veículos que disseminam o ódio foi, então, acertada?

O STF tem sido de uma importância ímpar neste momento. Desmonetizar os canais de desinformação é muito importante. Porque o que ocorre é que a sociedade civil cada vez mais rejeita o Bolsonaro. Eu serei levado a pensar que, em breve, quando a sociedade brasileira realizar o trabalho de luto de 600 mil mortes, surgirá nesse país pela primeira vez um sentimento inédito, um enorme asco em relação à figura de um político, no caso o Bolsonaro. Nós não conseguiremos nem escutar a sua voz, a não ser os bolsonaristas empedernidos.

Eles criaram um sistema de comunicação como nunca houve nesse país. Eles difundem desinformação, notícias falsas, teorias conspiratórias, narrativas polarizadoras vinte e quatro horas por dia. É uma máquina ininterrupta. Desmonetizar esta máquina é fundamental para frear o projeto autoritário do Bolsonaro.

Professor João Cezar de Castro Rocha - Reprodução de vídeo - Reprodução de vídeo
Professor João Cezar de Catsro Rocha
Imagem: Reprodução de vídeo

Na verdade, os bolsonaristas repetem a receita do guru das fake news, o americano Steve Bannon.

É exatamente isso. Um exemplo: quando o Donald Trump perdeu as eleições ele lançou uma campanha para arrecadar fundos. Entre a derrota em novembro e o dia 31 de janeiro de 2021, a revista Forbes fez um levantamento, e ele conseguiu levantar em dois meses US$ 255 milhões, mais de R$ 1 bilhão.

O Steve Bannon foi preso por desviar recursos recolhidos dessa forma.Era uma rachadinha Ele pegou o dinheiro da campanha de arrecadar fundos para o Build the Wall e usou para pagar as despesas pessoais, é rachadinha. Ele foi preso, ele só não será preso de novo porque recebeu o perdão presidencial.

Então a monetização da política é um tema que nós precisamos jogar para discussão pública. Se nós conseguirmos desmonetizar essas redes de informação, o bolsonarismo vai começar a definhar. Palmas para o STF.

O sr. observa que nas últimas semanas Bolsonaro e seus seguidores passaram a se referir a sua movimentação golpista como contragolpe. Qual a importância disso?

.Essa é a narrativa mais perigosa que enfrentamos até agora, nós precisamos desmascará-la de imediato. É a narrativa do contragolpe. A palavra contragolpe é a palavra da hora nas redes bolsonaristas. Em primeiro lugar porque estabelece um elo direto com 1964. Naquele ano, os militares de imediato denominaram sua ação como uma ação contrarrevolucionária já que havia um projeto revolucionário da esquerda para tomar o poder. Então o golpe foi uma contrarrevolução.

Isso dá uma legitimidade constitucional ao golpe, porque a iniciativa teoricamente não parte das Forças Armadas, que apenas reagem para defender a nação. O que constitucionalmente é o papel da Forças Armadas.

É, portanto, uma maneira bastante esdrúxula de legitimar o golpe arbitrário. Agora o discurso é "vivemos uma ditadura da toga". Isso dá possibilidade de dizer que se trata de um contragolpe porque existe um golpe em curso. Dado por quem? Pelo TSE e pelo STF. Portanto, se as Forças Armadas reagirem, elas não estão sendo inconstitucionais. Pelo contrário, elas vão agir para proteger a Constituição.

E qual é a base? Artigo 142, na interpretação da hermenêutica terraplanista do Ives Gandra Martins Filho. Por isso, a militância grita com todos os pulmões: "Eu autorizo, eu autorizo!". Eles autorizam que o Jair Bolsonaro dê um contragolpe constitucional para proteger a Constituição. É de uma perversão assustadora.

Mas que tipo de golpe Bolsonaro pretende dar?

O golpe pretendido pelo Bolsonaro tem duas pontas. No Planalto, a cooptação dos poderes ou a tentativa de manietar o Judiciário. No asfalto, a intimidação e a ameaça de violência física.

A cooptação das instituições serve para produzir o que se chama hoje em dia de democratura. Isto é, você chega ao poder de uma forma democrática, pela via eleitoral, mas uma vez no poder você tudo faz para eternizar-se através de instituições que apoiam o seu projeto autoritário.

Um exemplo concreto: Venezuela. O projeto é a venezuelização das instituições brasileiras. O Bolsonaro pediu o impeachment de um ministro. Se o ministro for impedido, ele indica o outro. Foi o que Hugo Chavez fez, ele aumentou o número de ministros. Ele passou a dominar a Suprema Corte.

O golpe já está em andamento, então?

Estão esperando um golpe tradicional, tanques na rua. Não. Vamos lá: Eletrobras privatizada, com um modelo absurdo, e o dinheiro será dado para quem comprar. Você viu o modelo da privatização dos Correios? Quem comprar manterá o monopólio e continuará com subsídio. Que privatização é essa?

Autonomia do Banco Central. A Reforma da Previdência nos moldes em que ela foi feita, isto é, aumentando os ganhos dos militares. A ameaça de reforma administrativa, cuja finalidade de um lado é retirar a estabilidade do funcionário público e de outro um cabide de empregos para que políticos possam empregar pessoas.

Isso é o bolsonarismo sem Bolsonaro. É implantar no Brasil a fórceps o modelo neoliberal como do Chile. Será casual que o homem forte da economia um dia tenha sido Paulo Guedes? Enquanto Bolsonaro faz a confusão, o Arthur Lira implementa essa política. Se isso for levado adiante em 2023, o romance brilhante do Inácio Loiola Brandão "Não verás país nenhum" não será um título, mas sim um autorretrato do Brasil.