Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Fracasso, isolamento e mortes levam governo a ensaiar mudança internacional
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Resumo da notícia
- Com um ano de atraso, autoridades passam a considerar nos bastidores novas estratégias internacionais
- Ministérios da Economia, Saúde e Itamaraty foram acionados para trazer resultados
- Comunidade internacional ainda desconfia que nova tentativa pode sofrer resistência de ala mais radical do bolsonarismo
Por mais de um ano, o governo de Jair Bolsonaro tripudiou as recomendações da OMS, faltou às reuniões com grandes produtores de vacinas, esnobou encontros ministeriais para tratar dos imunizantes, minou propostas de ampliação de distribuição de doses e se recusou a ampliar o leque de alternativas para lidar com a covid-19.
Mas com o país transformado em uma ameaça sanitária global, o vírus descontrolado, fechado aos demais vizinhos e sem uma expectativa real de recuperação econômica, membros do governo ensaiam nos bastidores uma movimentação para buscar uma nova estratégia internacional e uma resposta à crise.
A iniciativa vem num momento em que o governo tem uma previsão de entregar apenas metade das vacinas prometidas para abril e ocorre apesar de discursos e narrativas do presidente Jair Bolsonaro, direcionada em grande parte para atender alas mais radicais de sua base de apoio.
Segundo membros do governo, a operação vem ocorrendo em diferentes frentes e com o reconhecimento de alguns dos principais embaixadores do país pelo mundo de que a estratégia adotada no primeiro ano da pandemia foi um "enorme fracasso".
Embate entre ala radical e políticos
Dificilmente haverá uma mudança brusca em todos os aspectos da resposta à pandemia e temas como o lockdown continuarão sofrendo resistência. Os próprios membros do Palácio do Planalto acreditam que Bolsonaro deve continuar a defender medidas sem base científica em seus discursos públicos e a minimizar a dimensão da crise.
Mas uma atitude diferente está sendo vista em reuniões fechadas envolvendo o segundo escalão do governo. Para alguns dos interlocutores, apenas uma resposta à pandemia poderá abrir chances de uma eventual reeleição de Bolsonaro em 2022.
A primeira frente foi iniciada no fim de semana, com o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, mantendo uma reunião com a cúpula da OMS e na qual foi estabelecido um entendimento de que a agência prestaria ajuda ao Brasil de forma regular para lidar com a crise.
Dois dias depois, foi a vez de Queiroga se reunir com a embaixada da China, alvo também de críticas por parte de membros do governo de Jair Bolsonaro.
A aceitação de um papel mais contundente da OMS e a sinalização de aproximação às autoridades de Pequim foram consideradas na diplomacia internacional como uma mudança na estratégia do Brasil.
Gestos ainda são vistos com desconfiança
Os gestos ainda são recebidos com desconfiança, principalmente diante do tom usado nos últimos dias pelo presidente Bolsonaro ao defender medidas sem eficácia comprovada e diante do temor de que as alas mais radicais do bolsonarismo possam fazer naufragar a nova tentativa.
A desconfiança não ocorre por acaso. Por meses, a ordem no governo era a de deslegitimar as recomendações da agência, culpar a OMS pela crise e ainda tentar impedir que ela fosse o centro de uma resposta global.
Em 2020, quando Donald Trump se retirou da OMS, vozes dentro do governo brasileiro também chegaram a defender um ato similar, inclusive com a suspensão de pagamentos para a organização. Não faltaram ainda encontros no qual o então chanceler Ernesto Araújo deixou claro que as respostas à covid-19 não viriam das entidades internacionais, mas de "governos soberanos".
Num outro encontro na OMS, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, sequer citou o papel que a agência deveria ter na pandemia e não mencionou a OMS por seu nome durante o discurso.
Antes, em abril de 2020, o governo ficou inicialmente de fora do lançamento da iniciativa mundial da OMS que visava criar um mecanismo para distribuir vacinas aos países mais pobres. Enquanto fragilizava de forma deliberada a resposta global, o Brasil se afastava de parceiros tradicionais e ampliava crises diplomáticas.
Mesmo para experientes embaixadores dentro do Itamaraty, o preço pago por essas atitudes foi elevado. Além da falta de insumos, a recusa em aceitar as recomendações científicas internacionais foi traduzida em um número inédito de mortes.
Cenário: abril mortífero
A meta é a de conseguir reverter a crise a partir de maio. Mas admite-se que abril ainda será um "mês mortífero". Enquanto isso, outra dimensão fundamental dessa nova etapa é o envolvimento ativo do Itamaraty como forma de reconstruir relações que permitam resultados concretos na luta contra a pandemia.
Nesta semana, ao tomar posse no Itamaraty, o novo chanceler Carlos França foi claro em dizer que a urgência sanitária exigiria "diálogo" com parceiros e voltou a usar o termo "multilateral", rejeitado por Araújo.
"O Brasil sempre foi ator relevante no amplo espaço do diálogo multilateral", destacou. "O que nos orienta, antes de tudo, são nossos valores e interesses. Em nome desses valores e interesses, continuaremos a apostar no diálogo como método diplomático. Método que abre possibilidades de arranjos e convergências que sempre soubemos explorar em nosso favor. O consenso multilateral bem trabalhado também é expressão da soberania nacional", disse, numa frase que ressoou como uma resposta à estratégia de Araújo e de olavistas dentro e fora do Itamaraty.
Imediatamente, em diferentes postos, embaixadores indicaram que o discurso foi imediatamente entendido como uma instrução de uma mudança de postura.
"As missões diplomáticas e consulados do Brasil no exterior estarão cada vez mais engajados numa verdadeira diplomacia da saúde", prometeu França. "Em diferentes partes do mundo, serão crescentes os contatos com governos e laboratórios, para mapear as vacinas disponíveis. Serão crescentes as consultas a governos e farmacêuticas, na busca de remédios necessários ao tratamento dos pacientes em estado mais grave. São aportes da frente externa que podemos e devemos trazer para o esforço interno de combate à pandemia. Aportes que não bastam em si, mas que podem ser decisivos", disse.
Ele ainda se comprometeu em "engajar o Brasil em intenso esforço de cooperação internacional, sem exclusões".
Guedes também envolvido
Nesta semana, também foi a vez de o ministro da Economia, Paulo Guedes, entrar em cena. Ele usou uma reunião do Fundo Monetário Internacional para pedir uma cooperação mundial para garantir o abastecimento de vacinas.
"Apelamos aos setores públicos e privados, bem como às organizações multilaterais e cooperação bilateral, para ajudar a preencher as lacunas de financiando e distribuição, inclusive incentivando a transferência de tecnologia e licenciamento voluntário de propriedade intelectual", disse.
Uma das apostas do governo é no projeto na Organização Mundial do Comércio para que haja um acordo amplo entre indústria e governos no sentido de garantir uma maior distribuição e doação de doses dos países ricos aos emergentes.
Hoje, das 600 milhões de doses já dadas contra a covid-19, 150 milhões ocorreram apenas nos EUA. Na África, foram apenas 11 milhões e, em todos os mais de cem países em desenvolvimento no mundo, o mecanismo da OMS conseguiu enviar apenas 36 milhões de doses.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.