Na defesa de Bolsonaro, Cid vai da ‘autonomia’ à superioridade
No tempo em que a Terra ainda era redonda, os valores pareciam mais nítidos. Na hierarquia militar, o presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas, era era superior a tenente-coronel. E o ajudante de ordens cumpria ordens. Bolsonaro já havia declarado que, na Presidência da Terra plana, Mauro Cid "tinha autonomia". Agora, a defesa incluiu no enredo o fator da subordinação.
Aquele capitão mitológico que exerceu atribuições de comandante supremo das Forças Armadas subordina sua evolução no teatro de guerra à voz de comando do tenente-coronel. Apenas 24 horas depois de silenciar Bolsonaro na superquinta dos interrogatórios simultâneos da PF, os advogados correram ao Supremo para pedir a Alexandre de Moraes acesso irrestrito às confissões de Mauro Cid.
Pelas regras do devido processo legal, todo investigado tem o direito de folhear os autos. Mas os condutores do inquérito têm a prerrogativa de regular o relógio —nem tão devagar que pareça uma ofensa ao princípio da ampla defesa, nem tão rápido que se assemelhe à violação do sigilo de investigações sigilosas.
Na petição endereçada a Moraes, os advogados de Bolsonaro anotaram: "...É indubitável que os termos de declarações de oitivas já realizadas constituem elementos já efetivamente documentados, tornando-se, assim, imperiosa a concessão de acesso imediato a esses documentos."
Não houve nem tempo para que a PF empurrasse as declarações de Mauro Cid e do pai dele, o general Lourena Cid, para dentro do processo. Mas a defesa, a pretexto de justificar a pressa, reconhece até a eficiência dos investigadores:
"Diante do significativo progresso nas investigações, notadamente com a obtenção de depoimentos cruciais ocorridos ontem, requer-se a autorização para a atualização dos autos, permitindo o acesso integral aos termos de declarações relativos às oitivas realizadas em 31 de agosto de 2023".
Advogados não costumam jogar palavras ao vento. Quando silenciam um cliente, calam um indefeso. Quando lançam seu palavreado astuto em petições formais, tentam pescar novas artimanhas em velhas súmulas supremas. O pedido de acesso a "elementos já efetivamente documentados" escora-se na Súmula 14 do Supremo Tribunal Federal.
Uma súmula é um resumo breve de decisão tomada pela Suprema Corte. A de número quatorze tem 14 anos de idade. Foi aprovada em sessão plenário do dia 2 de fevereiro de 2009. Anota o seguinte: "É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa."
O que os advogados de Bolsonaro esquecem de lembrar —ou lembram de esquecer— é que o sucesso do trabalho policial por vezes depende do sigilo. Na sessão em que aprovaram a súmula que consagra a obviedade do direito do acusado de conhecer as acusações, os ministros do Supremo também reconheceram outra obviedade: Há diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do seu sucesso.
As declarações de Cid inspiraram nos investigadores iniciativas cuja efetivação exige tempo e sigilo. Cogita-se inclusive incluir demandas novas num pedido de colaboração internacional a ser remetido para os Estados Unidos. De resto, Mauro Cid é visto pelos inquiridores como um depoente fluido —percorre a corda bamba da confissão enquanto flerta com o desejo de pular na rede de segurança de uma colaboração premiada.
A história brasileira já teve outros dois capitães famosos: Luis Carlos Prestes e Carlos Lamarca. Ambos são abominados por Bolsonaro. Vivos, talvez admitissem que não trouxeram sorte. Mas tomariam o vitupério como troféu. E encomendariam a pipoca para se juntar à plateia que aguarda pelos próximos atos do capitão das joias.
Num teatro de operações militares fluidas, Bolsonaro pode confirmar tudo ou desmentir qualquer outra coisa que o tenente-coronel Cid declarar, desde que consiga terceirizar culpas e se livrar da cadeia.
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