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Rubens Valente

Malária explode na terra Yanomami; casos quadruplicaram em 5 anos

Menino da etnia ianomâmi coloca máscara em outra criança em Alto Alegre, Roraima - ADRIANO MACHADO
Menino da etnia ianomâmi coloca máscara em outra criança em Alto Alegre, Roraima Imagem: ADRIANO MACHADO

Colunista do UOL

02/08/2020 18h19

Resumo da notícia

  • Número de casos da doença passou de 2.896, em 2014, para 16.613 e cinco mortos no ano passado na Terra Indígena Yanomami, em Roraima
  • Rede Pró-Yanomami e Yekwana aponta situação crítica da doença e diz que governo deixou de enviar medicamento usado junto com cloroquina no tratamento
  • Ministério da Saúde diz que tem estoque de medicamento auxiliar na região e que tem adquirido equipamento para as equipes de combate a endemias

Antes da pandemia do novo coronavírus, que registra 364 casos e quatro mortes na região, a degradação da condição de saúde dos yanomâmis e yekwanas já preocupava indígenas e especialistas. Assim como a covid-19, uma outra doença associada aos garimpos ilegais se alastra por toda a região e matou pelo menos cinco indígenas no ano passado.

O Ministério da Saúde fechou o ano de 2014 com 2.896 casos de malária dentro da TIY (Terra Indígena Yanomâmi), em Roraima, o maior território indígena em extensão no país, onde vivem cerca de 27 mil yanomâmis e yekuanas. Cinco anos depois, em dezembro de 2019 e ao final do primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, os casos de malária tiveram 16.613 registros, uma diferença de 473%. Somente entre 2018 e 2019, o aumento foi de 71,7%.

Os dados foram informados ao UOL pelo Ministério da Saúde por meio da Lei de Acesso à Informação.

Nos últimos anos, conforme várias denúncias das lideranças yanomâmis, a invasão de garimpeiros ilegais tem aumentado vertiginosamente, chegando no ano passado a 20 mil invasores - o vice-presidente da República Hamilton Mourão diz que são 3,5 mil.

'Indicador da doença é estratosférico'

O IPA (Incidência Parasitária Anual) - um indicador de saúde formado pelo número de casos de malária dividido pela população em risco e multiplicado por mil - dentro da TIY não encontra paralelo em nenhuma outra terra indígena no Brasil e confirma o tamanho do problema. Em 2019, o índice foi de 628 na TIY. A média nacional no mesmo período foi de 89 - uma diferença de seis vezes.

Abaixo da TIY, o maior IPA registrado entre as terras indígenas foi no Médio Rio Purus, com 1.880 casos e um IPA de 267.

"De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o risco de contaminação é baixo numa área endêmica quando o IPA é menor do que 10. O risco é médio quando o IPA varia de 10 a 49,9. O risco é alto acima de 50. Com esse número do IPA na Terra Yanomami [628], vemos que é risco é altíssimo, é estratosférico. Entre os indígenas de um modo geral no país o risco já é alto. Quando se olha os Yanomâmi, é sete vezes mais alta", disse o médico sanitarista Paulo Cesar Basta, pesquisador da escola nacional da saúde pública da Fundação Osvaldo Cruz.

Rede Pró-YY vê 'condição crítica'

O combate à malária foi a justificativa apresentada pelo Ministério da Saúde para a remessa, no final de junho, de 49 mil comprimidos de cloroquina para dentro da TIY, em uma viagem organizada pelo Ministério da Defesa, o que gerou muitas críticas de indígenas e indigenistas. Entretanto, a Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana, um coletivo de pesquisadores e apoiadores, questiona a explicação. Não foi enviada na mesma viagem nenhuma carga de primaquina e tafenoquina, medicamentos que são usados concomitantemente à cloroquina no tratamento da malária do tipo vivax, a mais comum na região.

Em nota do dia 16 de julho, a Rede Pró-YY advertiu que "a situação da malária é extremamente preocupante na TIY e já foi denunciada diversas vezes pelos Yanomami e Ye'kwana. Segundo relatos de moradores da região de Auaris, em 2019 casos de malária voltaram a ser reportados em comunidades onde há pelo menos uma década havia sido erradicada".

A Rede Pró-YY menciona, na nota, que o DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami trabalha com um IPA, em 2019, de 456. O índice é menor e diferente do informado ao UOL por escrito pelo Ministério da Saúde em resposta ao pedido feito pela LAI (628). No entanto, continua altíssimo e seria "mais de 9 vezes superior ao escore limite estabelecido pela OMS [Organização Mundial da Saúde], o que representa uma condição crítica para a doença na região".

"Os altos índices de malária na TI Yanomami se tornam ainda mais alarmantes no presente contexto da pandemia, uma vez que a malária é uma comorbidade que pode agravar o quadro de covid-19. Cabe lembrar que o jovem da comunidade Helepe que faleceu com o novo coronavírus em abril havia recém se recuperado de uma malária falciparum. Em maio, outra vítima da covid-19 entre os Yanomami foi um senhor de 68 anos da comunidade Maturacá, que estava se tratando desse mesmo tipo de malária", diz a nota técnica da coalizão.

A entidade voltou a pedir a retirada dos garimpeiros da região, a adoção de uma "estrutura adequada nas unidades básicas de atendimento à saúde para profilaxia e rápida identificação de casos de malária, como microscópio, reagentes e borrifador", a elaboração "de um Plano de Ação do DSEI Yanomami para erradicação da malária na TIY urgentemente", entre outras medidas para impedir o alastramento da covid-19.

Invasão garimpeira e deficiências no sistema de saúde

Com seus 16.613 casos de malária em 2019, a TIY respondeu sozinha por 45% de todos os casos da doença registrados nas terra indígenas no país todo no mesmo ano (36.384), segundo os números informados ao UOL pelo Ministério da Saúde.

Nos últimos dez anos, os casos apresentam um crescimento impressionante dentro da TIY. Os números oficiais do ministério mostram a escalada: 2.180 (no ano de 2012), 2.494 (2013), 2.896 (2014), 4.559 (2015), 6.253 (2016), 7.757 (2017), 9.674 (2018) e 16.613 (2019). Com mais de 27 mil indígenas habitando a TIY, equivale a dizer que mais da metade de toda a população da TIY foi infectada pela malária somente no ano passado.

Para o pesquisador da Fiocruz Paulo Basta, há duas explicações básicas para a explosão dos casos da doença. Em primeiro lugar, o aumento da atividade garimpeira dentro da TIY. "A invasão garimpeira provoca devastação, altera a população de mosquitos. É bem reconhecido na literatura científica que a malária segue o rastro do garimpo. Quando o garimpo se expande, é natural que a malária aumente."

Os garimpos derrubam árvores, abrem crateras, mexem com o leito dos rios. Todo esse processo, explica Basta, cria águas paradas que são condições ideais para a proliferação do mosquito transmissor da malária, o Anopheles ou anofelino, e ao mesmo tempo espanta espécies nativas de insetos predadores dos mosquitos, como aranhas, alterando todo o equilíbrio do ecossistema.

A própria presença dos garimpeiros, que vivem aglomerados, em condições precárias e sem assistência de saúde permite que a doença se alastre, pois o homem é o reservatório do parasita plasmódio, causador da doença.

Uma segunda explicação para a explosão dos casos de malária estaria na desestruturação de ações para o controle da doença dentro do território. "Sobretudo agora no período da pandemia, os serviços de saúde deixaram de fazer muitas atividades de rotina para se dedicar ao controle da pandemia."

Assim, na opinião de Basta, duas medidas devem ser tomadas para tentar reverter a doença.

"O primeiro é a retirada dos invasores ilegais do território, restabelecer a cobertura vegetal natural e deixar a Amazônia se reorganizar novamente. Essa seria a medida que atuaria na principal causa do problema. Uma vez isso estabelecido, o que o serviço de saúde deve fazer é realizar sistematicamente, periodicamente, a chamada busca ativa dos casos. As equipes de saúde devem ir às comunidades onde há casos de malária e fazer a busca de pacientes com febre, cansaço, emagrecimento, anemia e também estender essa busca a toda a população daquela região. Por meio da busca ativa, você faz um diagnóstico precoce, evitando que a doença se espalhe."

Quando não mata, a malária provoca cansaço, anemia, febres, tremores, levando o doente à prostração por vários dias ou semanas. Sem condições de plantar e caçar, o indígena vê a alimentação da sua família diminuir, o que pode levar ao aumento da desnutrição, de várias outras doenças e da mortalidade infantil.

"A malária é uma ameaça ao pleno desenvolvimento de uma população. A doença impõe um ônus ainda maior à existência do grupo. É uma doença silenciosa, se desenvolve lentamente dentro do sangue, podendo resultar em uma anemia importante. A pessoa deixa de fazer as coisas que costumava fazer. Na mata não há equipamentos elétricos, geladeira, para estocar o alimento. A sobrevivência da família está atrelada ao bem-estar físico da pessoa que vai caçar, pescar, plantar na roça para se alimentar e alimentar a família. Se você está enfermo, você compromete a subsistência da família", explica Basta.

Posição do Ministério da Saúde

A coluna procurou a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) do Ministério da Saúde para que comentasse a nota técnica da Rede Pró-YY e apontasse que medidas tem tomado para combater o aumento dos casos de malária na TIY.

Em nota, o órgão respondeu, na íntegra: "O Ministério da Saúde mantém estoques de primaquina na sede do DSEI [Distrito Sanitário Especial Indígena] Yanomami e o processo de dispensação para as unidades de saúde é realizado a cada 15 dias. Os medicamentos só são entregues aos pacientes na dose necessária para o tratamento. O Ministério da Saúde tem garantido o diagnóstico e tratamento em tempo oportuno. Além disso, o DSEI também tem adquirido equipamentos para o controle vetorial, manejo do ambiente e EPIs para os Agentes de Combate a Endemias".

Há duas semanas, quando indagado sobre a retirada dos garimpeiros dentro da TIY, o vice-presidente e presidente do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), Hamilton Mourão, disse que a operação não é tão simples quanto retirar camelôs na rua e evitou se comprometer com uma data.