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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Saúde diz, em ofício, que usa ivermectina e 'kit covid' em indígenas de RO

Em 2019, indígenas de várias etnias ocuparam a sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress
Em 2019, indígenas de várias etnias ocuparam a sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena, em Brasília Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Colunista do UOL

18/03/2021 04h01

Resumo da notícia

  • Servidora de Rondônia que assina o documento diz que remédios foram usados a pedido dos indígenas no ano passado e ofício não reflete a situação atual
  • Médicos e indigenistas condenam a orientação para uso dos medicamentos que, além da ineficazes, podem gerar efeitos colaterais graves de saúde

Um ofício distribuído pelo DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) de Vilhena (RO) no último dia 15 diz que "está sendo realizado" entre os indígenas um suposto "tratamento profilático com ivermectina para a população maior de dez anos" e um suposto "tratamento kit covid para todos os indígenas que apresentarem sintomas" da doença causada pelo coronavírus.

Os DSEIs são vinculados à Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), um órgão do Ministério da Saúde. A unidade de Vilhena é responsável pelo atendimento de 6 mil indígenas de 144 aldeias e 43 etnias diferentes, além de manter quatro casas de saúde indígena nos municípios de Cacoal e Vilhena, em Rondônia, e de Juína e Aripuanã, em Mato Grosso.

Localizada por telefone pela coluna, a coordenadora do DSEI Vilhena que assina o documento, Solange Pereira Vieira Tavares, disse que "kits covid" foram entregues por prefeituras da região e usados por indígenas no ano passado, a pedido dos próprios indígenas, e desde que assinassem um termo de compromisso. Mas agora o distrito estaria vivendo "uma nova fase", "estamos vacinando". Ela disse que iria "averiguar" se os medicamentos ainda estão sendo usados porque apontou um erro no ofício: uma funcionária do DSEI teria copiado a frase sobre o uso dos remédios de um ofício anterior, do ano passado, como se fosse um cenário atual.

"Esse texto do parágrafo nono é de quando começou a covid", disse a coordenadora. Solange não soube dizer se crianças acima de 10 anos usaram a ivermectina nem quantos indígenas foram medicados.

"Não sei [dizer] agora a faixa etária, porém... Por exemplo, o município de Cacoal distribuiu kits para a população, com ivermectina, e nós pegamos. Nós recebemos do município [...]. O kit é de cada município, protocolo de cada município. Aí os indígenas quiseram. Os municípios distribuíram para toda sua população. [...] O município fez uma declaração para o paciente assinar. Quem quis tomar teve que assinar esse termo. Cada pessoa que tomou assinou o termo. [...] Inclusive os indígenas", disse a coordenadora.

O ofício foi enviado para os chefes da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Cacoal (RO) e de Juína (MT) e dezenas de lideranças indígenas da região. No documento, Solange afirma que é necessário reforçar o isolamento social nas aldeias frente ao agravamento da pandemia, cita recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Ministério da Saúde e pede que seja determinada "uma quarentena no período de 15 de março a 29 de março de 2021" nas aldeias. Nesse período, diz o documento, as lideranças não devem permitir entradas e saídas dos indígenas e autorizar apenas o ingresso de servidores do DSEI e da Funai.

Trecho de ofício do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) de Vilhena, em Rondônia, vinculado ao Ministério da Saúde - Reprodução - Reprodução
Trecho de ofício do DSEI (Distrito Sanitário de Saúde Especial Indígena) de Vilhena, em Rondônia, vinculado ao Ministério da Saúde
Imagem: Reprodução

O item nono do ofício orienta como, na visão do DSEI, devem se comportar as aldeias "com casos suspeitos e/ou confirmados". Nesses locais "está sendo realizado", diz o ofício: "Borrifação residencial, nos postos de saúde, escolas e igrejas com hipoclorito; tratamento profilático com ivermectina para a população maior de 10 anos; Tratamento KIT COVID para todos os indígenas que apresentarem sintomas; testagem de todos os sintomáticos no período adequado conforme protocolo do teste; isolamento dos casos positivos e suspeitos; orientação para isolamento dos grupos de risco; orientação para isolamento das aldeias".

Médicos e indigenista condenam orientação sobre uso dos medicamentos

A indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo, a Neidinha Suruí, que há quase 30 anos atua na Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé de Rondônia, considerou o ofício-circular "um absurdo". Ela disse que Solange - que é uma servidora anterior ao mandato de Jair Bolsonaro - trabalha há mais de cinco anos na saúde indígena na região. Até por isso, tomou conhecimento do ofício "com espanto".

"Estou chocada com o que eu li. O DSEI não pode orientar uso de medicamento por ofício, sem que um médico faça os exames, os testes. E ainda mais com esses remédios que podem condenar o indígena a um ataque cardíaco, uma hepatite, uma série de outras doenças", disse Neidinha.

O médico sanitarista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Douglas Rodrigues, doutor em saúde coletiva pela instituição, que desde os anos 80 atua no atendimento à saúde de diversos povos indígenas, disse que "não existe profilaxia medicamentosa para a covid-19. Só mesmo vacinas e distanciamento social'.

Ele pontuou que o documento do DSEI "é até bem-intencionado, propondo um lockdown nas aldeias com transmissão da covid-19". "Porém ser bem-intencionado não é tudo. Fala em vulnerabilidade imunológica dos índios, que não é um conceito correto. É tratar a vulnerabilidade social dos indígenas como se fosse um problema biológico. Frente ao novo coronavírus, todos somos 'deficientes imunológicos'. E o 'tratamento profilático' então, é o fim da picada a essa altura da pandemia", disse Rodrigues.

O médico sanitarista Paulo Cesar Basta, pesquisador da Escola Nacional da Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Osvaldo Cruz), com larga atuação junto aos povos indígenas, disse que o ofício expressa a intenção de orientar as aldeias sobre o isolamento social, mas se complica quando fala da medicação.

"Esse tipo de tratamento não deveria ser prescrito para ninguém. Porque já existem muitas evidências e estudos nacionais e internacionais apontando que esses medicamentos não trazem nenhum benefício para o paciente. Nem adulto nem criança. As drogas já demonstram que não têm eficácia. Além disso, podem ocasionar efeitos adversos. Sobre a cloroquina já sabemos de vários problemas, como alterações no batimento cardíaco, prejuízo de funções hepáticas", disse o médico.

"Atualmente não estão disponíveis no mercado nenhuma droga, nenhum medicamento, nenhum tratamento que previna o contágio ou o adoecimento pela covid-19. [Só] a vacina efetivamente tem potencial, de certa forma o efeito profilático. Temos medidas não farmacológicas, como máscaras, distanciamento social."

Ministério diz que ofício não tinha objetivo de prescrever medicamentos

Em nota enviada à coluna após a publicação desta reportagem, o Ministério da Saúde afirmou, na íntegra:

"O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), informa que a estratégia adotada para enfrentamento da pandemia da Covid-19, além do isolamento social, é a vacinação efetiva de toda a população indígena aldeada maior de 18 anos, além das especificidades da ADPF 709.

"O atual oficio-circular não teve o intuito de orientar ou prescrever a utilização de medicamentos. Não se trata de uma prescrição, sua finalidade era orientar o isolamento social nas aldeias e alertar para a situação atual. As demais orientações, como a importância da vacinação e uso da borrifação de hipoclorito, devem ser seguidas.

"O DSEI Vilhena já vacinou 80% da população indígena com a primeira dose do imunizante contra a Covid-19. Em relação à segunda dose, 56% dos indígenas elegíveis à vacina já a tomaram."