Remoção de corpos para lixão "foi assassinato", diz mãe de vítima do desabamento no Rio
"É uma agonia não ter o direito de enterrar o corpo de alguém que você ama." A frase de Roberto Flaviano, marido de Ana Cristina Silveira, que morreu no desabamento de três prédios na avenida Treze de Maio, no centro do Rio de Janeiro, resume o sentimento das famílias de cinco vítimas cujos corpos nunca foram encontrados após a tragédia --que completa um ano nesta sexta-feira (25). Oficialmente, 17 pessoas morreram, duas tiveram a morte presumida decretada e outras três ainda são consideradas desaparecidas.
Para Josélia Alves, mãe de Alessandra Alves Lima, cujo corpo foi localizado dois dias após o desabamento, o fato de os escombros terem sido levados para o extinto lixão de Gramacho, na Baixada Fluminense, "foi um assassinato". Tal opinião é comum a parentes de outras vítimas. Na ocasião, as buscas ainda não haviam sido encerradas.
"Se o trabalho tivesse sido tão perfeito, como a prefeitura diz, vários pedaços de corpos não teriam sido achados no lixão de Gramacho. No dia 26, as máquinas já estavam lá nos escombros, mexendo em tudo. Aquilo foi um assassinato. É um descaso do governo com as famílias que perderam pessoas no desabamento não acharem os culpados até hoje”, disse Alves. "Pelo menos, o corpo dela foi achado dois dias depois e nós pudemos enterrá-la. Ela estava com o quadril e as coxas esmagados."
Josélia se emociona ao falar sobre os últimos momentos da filha: "Ela estava conversando com o marido, pelo MSN [software de bate-papo pela internet], quando o prédio caiu". O marido de Alessandra, Vítor Lima, afirmou na época que a mulher desconectara repentinamente, "sem se despedir". "Eu estava com ela no MSN e aí caiu, liguei e ninguém atendia, não consegui mais falar com ela. Já tinha saído e não se despediu, não falou nada", relatou Lima ao chegar perto dos escombros, horas depois da tragédia.
Uma das pessoas que não foi achada até hoje, Ana Cristina Silveira trabalhava em um escritório de contabilidade no edifício Liberdade, o maior entre os três que desabaram, e ficou no local depois de seu horário para esperar um técnico em informática que faria acertos nos computadores da empresa. Ela também conversava com o marido pela internet quando o prédio caiu.
Para Roberto Flaviano, marido da vítima, a suposta negligência quanto à busca pelos corpos representou "uma violência com as famílias das pessoas desaparecidas”. “O corpo dela ainda consta como desaparecido e, por isso, eu não consegui tirar a certidão de óbito. Solicitei um atestado de morte presumida, mas ele não foi deferido. Sem a certidão, eu não posso nem abrir o inventário dela”, explicou.
O concreto dos edifícios ficou misturado aos pertences das vítimas e aos corpos das pessoas que não foram encontradas. Nos dias que sucederam a tragédia, tudo isso foi retirado da avenida Treze de Maio e levado primeiramente para um depósito zona portuária, depois para outro local na rodovia Washington Luiz e posteriormente para o lixão de Gramacho, onde as buscas pelos desaparecidos duraram 15 dias.
Segundo a Defesa Civil estadual do Rio de Janeiro, não havia a possibilidade de encontrar corpos ou partes deles, pois o desabamento aconteceu de forma verticalizada e houve compactação da estrutura. As vítimas que não estavam em bolsões de ar e espaços vasculhados sofreram uma compressão incompatível com a vida.
A Defesa Civil também afirmou que as máquinas só começaram a trabalhar no local da tragédia após a varredura de todos os bolsões de ar e espaços onde poderiam ser encontradas vítimas vivas.
"Não procuram a Eliza Samudio até hoje? Por que não procurar essas pessoas até achá-las? É um crime deixar cinco corpos irem para o lixão, e a associação quer provar que a prefeitura e o governo do Estado são culpados por isso. Eles foram irresponsáveis”, afirmou o presidente da Associação de Vítimas da Treze de Maio, o dentista Antônio Molinaro, que perdeu sua clínica de odontologia. Ele trabalhava no edifício Colombo.
De acordo com a Comlurb, uma empresa privada foi contratada para realizar o trabalho de separação e catalogação dos escombros, quando estes ainda estavam na rodovia Washington Luiz, depois que o Corpo de Bombeiros liberou os destroços. O trabalho começou no dia 22 de fevereiro de 2012 e terminou em 5 de junho, com a proteção da Polícia Militar e o acompanhamento da Associação de Vítimas. O material resultante está atualmente em contêiner lacrado na sede da Comlurb, na Tijuca, à disposição da Justiça.
A Defesa Civil também afirma que os escombros removidos do local do desabamento foram encaminhados a um terreno na rodovia Washington Luiz, que não era um lixão, onde passaram por outras varreduras, com o objetivo de esgotar a possibilidade de encontrar corpos ou restos mortais.
Retirada dos escombros foi rápida demais
Segundo Molinaro, a associação participou de algumas buscas por pertences, mas não recebeu a relação do que foi achado. Para ele, a retirada do entulho, que começou no dia seguinte ao desabamento, foi feita rápida demais. “Um banco que ficava no térreo do nosso prédio foi autorizado a entrar no meio dos escombros, dias depois de os prédios terem caído e conseguiu achar seus cinco cofres, mesmo com eles soterrados por três prédios. Nós não fomos liberados para entrar e procurar nossos pertences. Eu quero ver algum governante ter a hombridade de dizer que jogou nossos bens no lixo”, questionou Molinaro.
“Os prejuízos são imensuráveis. Nós poderíamos ter salvado documentações originais de clientes, livros, projetos em andamento que poderiam gerar lucros futuros para o nosso grupo. Mas não, não conseguimos salvar um grampo”, conta Vítor Nogueira, sócio-diretor da empresa de tradução Primacy Translations, que ficava no 8º andar do edifício Liberdade. “Nem nosso cofre, que tinha R$ 3.000 e alguns dólares, apareceu. Tivemos um prejuízo de R$ 200 mil, que estamos contando até hoje”, completou.
A empresária Luciana Boal, sócia de uma produtora que funcionava no edifício Colombo, afirmou ao UOL não ter encontrado indício algum de entulho no depósito situado no km 0 da rodovia Washington Luiz, no dia da tragédia. Segundo ela, só foi possível localizar objetos como documentos e pastas em meio ao lixão de Gramacho, "tudo isso misturado com lixo e restos de comida". Ela diz ainda que houve furto de pertences. "Foi uma rapidez estúpida a que eles tiveram de tirar o entulho. Os destroços estavam visivelmente mexidos, os pertences das pessoas foram roubados. Nós temos processos contra a seguradora que não nos indenizou e contra o município também", disse ela.
A tragédia
O desabamento de três prédios na avenida Treze de Maio, que ocorreu no dia 25 de janeiro do ano passado, no centro do Rio de Janeiro, deixou pelo menos 19 pessoas mortas, das quais duas tiveram morte presumida declarada posteriormente, uma vez que os corpos não foram encontrados. Outras três pessoas permanecem desaparecidas. Ainda na época da tragédia, o Corpo de Bombeiros encerrou as buscas por considerar impossível a possibilidade de encontrar sobreviventes.
A principal suspeita, de acordo com a investigação que teve início na Polícia Civil e foi concluída, posteriormente, pela Polícia Federal, é de que obras que aconteciam no 9º andar do edifício Liberdade --o mais alto dos três--, pavimento que pertencia à empresa TO (Tecnologia Organizacional), podem ter contribuído para o acidente. O inquérito da PF, finalizado em maio de 2012, indiciou sete pessoas.
O inquérito foi encaminhado ao MPF (Ministério Público Federal), pois havia suspeita de que o desabamento poderia ter afetado o Theatro Municipal, situado na mesma avenida e vizinho ao Edifício Liberdade, que desabou. Após a comprovação de que o teatro não sofreu danos, o inquérito, com mais de 500 páginas, passou para a responsabilidade do MP-RJ (Ministério Público do Estado). Ontem (24), o MP denunciou seis pessoas pelo desabamento, entre elas Sérgio Alves de Oliveira, sócio e administrador da empresa TO; Cristiane do Carmo Azevedo, que também era ligada à TO e era responsável pela fiscalização da reforma; além dos pedreiros e mestres de obra que trabalhavam no local: Gilberto Figueiredo de Castilho Neto, André Moraes da Silva, Wanderley Muniz da Silva e Alexandro da Silva Fonseca.
Segundo nota do Ministério Público, a denúncia foi feita pelo promotor de Justiça Alexandre Murilo Graça, da 1ª Central de Inquéritos Policiais, que excluiu da denúncia Paulo de Souza Renha, síndico do prédio à época do desabamento. Renha sofria de hipertensão, teve uma parada cardíaca há cerca de um mês e morreu na manhã desta quinta (24).
No dia 17 deste mês, a promotora Ana Lúcia Melo solicitou à 5ª DP (Gomes Freire), responsável pela área onde ocorreu o desabamento, a conclusão de algumas diligências. O distrito policial tem três meses para fornecer à promotoria depoimentos de testemunhas e demais informações. Ontem, a delegada-assistente Karina Regufe designou uma equipe de peritos para retomar o caso.
Na época do desabamento, o proprietário da TO, Sérgio Alves, negou que as reformas de sua empresa possam ter provocado o acidente. O empresário afirmou à polícia que "um conjunto de fatores" pode ter sido o motivo do desastre. Segundo o empresário, as reformas estavam "em processo de demolição", e apenas três paredes de tijolos foram destruídas no 9º andar com o objetivo de alterar a posição de um banheiro. Além disso, os operários realizavam "ajustes frequentes para regulagem das portas".
O proprietário da TO esclareceu ainda que a mudança na posição do banheiro não causou impacto algum quanto à distribuição da rede hidráulica. "O prédio possuía dois barbarás [tubulação que serve de escoamento para águas pluviais e esgoto], sendo um no canto e um no centro do andar que estava sendo reformado", disse.
Dois dias após o desastre, Alves admitiu ter iniciado os trabalhos no edifício Liberdade sem um laudo técnico assinado por engenheiro. Segundo ele, o síndico exigiu o documento, porém teria aceitado recebê-lo durante a reforma em razão de um problema particular do engenheiro contratado pela empresa, Paulo Sérgio Cunha Brasil. "Foi acordado que o laudo seria entregue depois que a obra fosse iniciada", argumentou o empresário.
A reportagem do UOL tentou entrar em contato com o proprietário da TO, mas a assessoria da empresa afirmou que a mesma só se pronunciará por meio de nota, assinada pelo advogado que a representa (a assessoria não quis fornecer o nome). Segundo ele, "o laudo assinado por peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli é inconclusivo e deixa evidenciado que as paredes retiradas não eram pilares de sustentação". "A empresa aguarda a conclusão das novas investigações, uma vez que ainda há muito a ser esclarecido sobre o incidente. Sem esgotar todas as possibilidades, é impossível a atribuição de qualquer tipo de culpabilidade a algum responsável", informa a nota.
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