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"Xerife" do desperdício diz até rasgar piscinas para poupar água na Maré

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

31/01/2015 06h00

Na intricada geografia de forças que compõem o Complexo da Maré, em que tráfico, milícia e Exército convivem diariamente com cerca de 130 mil moradores, Deraldo Batista dos Santos se destaca. Onde o poder público não entra, ele faz o papel de fiscal e, em tempos de seca prolongada e medo de racionamento, se torna um “xerife” informal do desperdício de água na comunidade.

Santos é presidente da Associação de Moradores do Parque União, uma das 16 favelas que compõem o complexo, localizado na zona norte do Rio de Janeiro, e circula pela comunidade atento a vazamentos e outros abusos do uso da água. Somente na quarta-feira (27), havia contabilizado e reportado à Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgotos) seis vazamentos.

Ele cumprimenta os vizinhos, acena a cabeça para traficantes --que carregam rádios transmissores e jogam cartas a dezenas de metros do local em que cabos do Exército montam guarda atrás de barricadas--, percorre quadras favela adentro e chama a atenção para um cano dentro de uma poça em uma ruela, enrolado por uma borracha para conter a água.

“Isso corre noite e dia, já avisei a Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgotos) e nada”, diz, apontando o cano de onde flui um esguicho de água. “Vendo o que aconteceu em São Paulo, a gente fica preocupado, tenta conscientizar os moradores. Hoje tem água, amanhã pode não ter mais.”

Na sua mira estão, principalmente, as piscinas montadas pelos moradores no meio da rua para escapar ao calor, que tem chegado com frequência aos 40º C neste verão, e os chuveiros, muitas vezes canos de água potável ou hidrantes abertos à força dos quais a água jorra ininterruptamente. As boias mal colocadas que deixam a água escapar das caixas são outra preocupação.

“Muito morador deixa escorrer água porque não paga nada. Se pagassem, não fariam isso”, diz Silva, ao contar que quando encontra piscinas na rua age sem dó. “Pego o canivete e corto mesmo. Se deixar, vira bagunça”, diz.

Apenas quatro comunidades da Maré, segundo a Cedae, têm abastecimento regular –Timbau, Roquete Pinto, Baixa do Sapateiro e Praia de Ramos. Nos outros locais, a água vem de ligações clandestinas, os chamados “gatos”. A concessionária diz que a ideia é levar o serviço a todo o conjunto de favelas, a exemplo do que já ocorre no Dona Marta, na zona sul da cidade, mas não soube precisar um prazo. "É um processo que caminha", informou em nota.

O complexo, que ainda não tem prazo para receber uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), se mantém como um dos locais mais conturbados da cidade. Há confrontos entre facções rivais e as forças de segurança quase todas as semanas. Em dezembro, o governo prorrogou pela segunda vez a permanência das Forças Armadas na comunidade, ocupada por 3.000 homens da Marinha, do Exército, da Polícia Militar e da Polícia Civil desde abril.

Apesar de o governador Luiz Fernando Pezão negar a possibilidade de racionamento, a crise hídrica no Estado se agrava dia a dia. O volume médio do Rio Paraíba do Sul, principal fonte de abastecimento da capital fluminense e da região metropolitana, chegou a 0,49% na quinta-feira (29), menor nível histórico já alcançado pelo rio nesta época do ano. Já os reservatórios de Santa Branca e de Paraibuna, que junto com Jaguari e Funil compõem o sistema de captação do Paraíba do Sul, atingiram o volume morto nos últimos dias, de acordo com boletins do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico).