Boate Kiss: juiz que comanda processo dá bronca, é aplaudido e toca violão
No tribunal, a voz tranquila do juiz Orlando Faccini Neto por vezes dá lugar à exaltação. O magistrado não poupa palavras para dar broncas nos advogados e até em promotores de Justiça que atuam no julgamento em Porto Alegre dos quatro réus acusados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS). O Tribunal do Júri começou na última quarta-feira (1º), com previsão de durar 15 dias.
O último puxão de orelha ocorreu ontem, quando um o advogado Jean Severo - que defende o produtor musical Luciano Bonilha - começou a gritar e bater boca com uma testemunha, em dois momentos diferentes, em um intervalo de cerca de 20 minutos. "Doutor, eu vou lhe dizer uma coisa: a próxima [vez] que o senhor fizer isso, não vai ficar aqui", disse o juiz, sendo em seguida aplaudido por sobreviventes e familiares de vítimas presentes no fórum.
Na noite de quinta-feira (2), a bronca foi direcionada ao advogado criminalista Jader Marques, que integra a banca de defesa do sócio-proprietário da Kiss, Elissandro Spohr, conhecido como Kiko.
Já passava das 20h e o juiz propôs fazer um intervalo para a janta. Ainda restava mais uma pessoa a ser ouvida. Porém, o advogado pediu que o último depoimento do dia ocorresse na manhã do dia seguinte. Marques justificou que não haveria tempo hábil para ir e voltar do local organizado pelo escritório para fazer as refeições.
Foi quando Faccini Neto se exaltou. "Eu vou lhe dizer: a minha janta está num tupperware [pote de plástico] gelado e eu vou comer ali na sala. Faça sua comida e traga de casa, doutor Jader, ou vai comer e depois volta", disse, sob aplausos dos presentes.
Marques rebateu, mas o magistrado não mudou de opinião, apenas ofereceu a própria janta para o advogado.
Nem só a marmita foi trazida de casa. Faccini Neto também levou a própria cadeira de gamer para o tribunal. E diz que não empresta.
No dia seguinte, Marques postou uma foto de um almoço ao lado de documentos do processo. "Seguimos", escreveu no stories do Instagram. Dentro da forma de alumínio havia legumes cozidos, purê e um bife.
Nos intervalos, o magistrado caminha pelo andar onde ocorre o julgamento. Durante as andanças, pergunta como estão os familiares e sobreviventes da tragédia —ao todo 55 foram cadastrados.
Anteontem, surpreendeu jornalistas ao entrar na sala de imprensa, montada ao lado do salão onde são ouvidas as testemunhas. Queria ver como estavam os profissionais dos 43 veículos credenciados. "Só não dá para falar mal do senhor", disse um repórter entre risos. "Pode falar mal", rebateu o magistrado em tom de brincadeira.
Prevendo qualquer pergunta, antecipou-se a dizer que não torcia nem para o Grêmio, nem para o Internacional —os dois principais times gaúchos. "Sou corintiano", disse, deixando o local a passos largos.
Paulista, Faccini Neto se formou na FDSBC (Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo), a 20 quilômetros de São Paulo. Chegou a cursar filosofia na USP (Universidade de São Paulo), mas abandonou a segunda graduação um ano depois, em 2001.
Na época, começou a dar aula em um curso preparatório da OAB e passou a dedicar "mais fortemente nos estudos para concursos", segundo mensagem encaminhada por ele à assessoria do Tribunal. "Saiu da faculdade antes da posse e, como estava se preparando para os concursos, as atividades ficaram inconciliáveis", complementou.
Nesse mesmo ano ingressou no TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul). A nomeação dele foi publicada no mesmo dia do atentado no World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001.
Inicialmente, atuou no interior do Estado: em Jaguarão, no sul, em Carazinho e Passo Fundo, no norte gaúcho. Em 2016, foi para Porto Alegre.
No mesmo ano, chegou a trabalhar no STJ (Superior Tribunal de Justiça) como juiz instrutor no gabinete do ministro Felix Fischer, auxiliando em julgamentos de recursos de processos da Operação Lava Jato.
É professor no IBDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e na Ajuris (Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul) —onde é presidente. Ao longo da carreira, já atuou em outras três universidades diferentes.
Fez doutorado em Lisboa, em Portugal, onde morou por um ano e nos outros anos retornava esporadicamente para o país europeu, inclusive para defender a tese. Além dessa pós-graduação, fez mestrado e especialização. É autor de quatro livros, todos relacionados ao direito. Além de português, fala outros quatro idiomas: inglês, alemão, espanhol e italiano.
Nas redes, descontração e críticas
Nas redes sociais, o juiz aparece de bermuda, camisa e pés descalços. Ou numa piscina no Rio de Janeiro, acompanhado da esposa, a advogada e assessora jurídica no MP-RS (Ministério Público do Rio Grande do Sul) Bruna de Witt Faccini.
O perfil no Instagram é aberto e cheio de fotos de viagens. A lista de lugares visitados é extensa. Em fevereiro de 2020 disse em depoimento à Ajuris que já tinha visitado quase 50 países. Em uma imagem, Faccini Neto aparece em frente à Catedral de São Basílio, em Moscou; em outra em frente a um clube em Liverpool, no Reino Unido, noutra no lago Titicaca, na Bolívia. Também há imagens no Muro das Lamentações, em Jerusalém.
Em vídeos caseiros, toca violão —por vezes, sem camisa. O apreço pela música veio à tona inclusive em meio ao depoimento do engenheiro civil e militar da reserva Miguel Ângelo Teixeira Pedroso, contratado para fazer um projeto de isolamento acústico para a boate Kiss.
Faccini Neto disse que a espuma acústica seria útil em um estúdio ou em uma apresentação do cantor João Gilberto, falecido em 2019. Foi elogiado em seguida pela promotora Lúcia Helena Callegari. "É famoso. Todo mundo acompanha o doutor Orlando", disse a representante do MP.
O magistrado também usa a conta no Instagram para fazer críticas. Em janeiro de 2019, escreveu: "Sou menino, quando quero visto rosa, e nem sempre aceito brincadeira: boca, às vezes, é feita para calar". A frase faz referência a uma declaração da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que apareceu em vídeo comemorando uma "nova era no Brasil" e afirmando "menino veste azul e menina veste rosa".
Em 6 de janeiro deste ano, criticou a invasão ao Congresso dos EUA. "É surreal testemunhar a invasão do Congresso americano, para interromper a confirmação das eleições. A democracia é frágil, precisa ser cultivada, e a história demonstra que lideranças descomprometidas, mormente quando 'carismáticas', são capazes de incutir medos, incertezas e dúvidas, para a seu modo exercerem o poder. Evitar a ascensão dessas figuras trágicas, nas instâncias partidárias, é o primeiro passo a ser adotado pelos que creem nas instituições."
As fotografias revelam que o magistrado toma chimarrão, fuma, bebe drinques e gosta de xadrez. Na época em que assumiu a Ajuris, no começo de 2020, relatou que uma parte das manhãs é dedicada ao treinamento com pesos em uma academia de Porto Alegre. "A única coisa que não faço é deixar o tempo passar à toa", costuma brincar com os amigos.
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