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No Brasil, violência atinge tribos em disputa por terras

Índios vistoriam entrada de acampamento após morte de cacique em Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul  - Mauricio Lima / The New York Times
Índios vistoriam entrada de acampamento após morte de cacique em Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul Imagem: Mauricio Lima / The New York Times

Simon Romero

The New York Times, em Aral Moreira (Brasil)

13/06/2012 07h00

Os pistoleiros desceram de picapes ao amanhecer, com seus rostos escondidos por balaclavas, e invadiram um acampamento cercado por uma plantação de soja em Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul, na porosa fronteira do Brasil com o Paraguai.

Testemunhas disseram que os homens atiraram em Nisio Gomes, 59, um líder do povo indígena Guarani, colocaram seu cadáver na picape e partiram.

"Nós queremos os ossos do meu pai", disse Valmir Gomes, 33, um dos filhos de Nísio, que testemunhou o ataque em novembro. "Ele não é um animal para ser levado dessa forma."

Independente dos corpos serem levados ou deixados como testemunha das disputas por terras ancestrais, as mortes e desaparecimentos de líderes indígenas continuam aumentando, deixando uma mancha na ascensão do Brasil como potência econômica.

A expansão de imensas fazendas de gado e plantações em escala industrial nas regiões remotas produziu uma disputa por terras que está deixando os descendentes dos habitantes originais do Brasil desesperados em recuperar as terras tribais, em alguns casos ocupando as propriedades contestadas. Os proprietários não indígenas, por sua vez, muitos dos quais vivendo em terras ocupadas décadas atrás por seus próprios ancestrais sob o chamado programa de colonização do governo, defendem com igual tenacidade suas reivindicações.

O conflito frequentemente resulta em choques violentos, que às vezes terminam tragicamente para os posseiros, armados apenas com arcos e flechas.

Cinquenta e um índios foram mortos no Brasil em 2011; 24 dessas mortes são suspeitas de estarem relacionadas a disputas de terras, segundo o Conselho Indigenista Missionário, uma entidade ligada à Igreja Católica.

As mortes chamaram atenção para um problema que ainda atormenta o Brasil antes da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, um encontro de milhares que será realizado neste mês no Rio de Janeiro. Há 20 anos, antes da Cúpula da Terra original no Rio, as autoridades responderam às críticas internacionais às mortes dos índios ianomâmis por garimpeiros com a criação de uma reserva de 9,7 milhões de hectares na Amazônia.

Em um gesto menos chamativo, a presidente Dilma Rousseff prosseguiu neste mês com a demarcação de sete áreas indígenas muito menores. Mas Cleber César Buzzato, o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, disse que a medida foi uma decepção, já que as áreas não costumam ser foco de disputas de terras ou de grandes projetos de infraestrutura financiados pelo Estado.

Enquanto isso prosseguem as disputas de terras em diferentes partes do Brasil. Em alguns casos, os tribunais abriram caminho para alguns povos indígenas, que representam menos de 1% da população de 191 milhões do Brasil, recuperarem suas terras.

Em 2009 no Estado de Roraima, no Norte no país, o Supremo Tribunal Federal expulsou os produtores de arroz não indígenas das terras de 20 mil índios, principalmente da tribo Macuxi. Em um caso neste ano, o Supremo anulou os títulos de posse de quase 200 propriedades no Estado da Bahia, no Nordeste, decidindo que as terras pertenciam à tribo Pataxó-hã-hã-hãe. A decisão foi seguida por confrontos que deixaram pelo menos dois mortos. Mas há um limite para o que os tribunais podem realizar.

Também cresce a tensão em torno de uma legislação proposta que abriria as terras indígenas para mineração, apontando para como a demanda pelos recursos naturais do Brasil pode acentuar as disputas de terra.

Há uma série de ataques contra povos indígenas em andamento no Mato Grosso do Sul, um vasto Estado no Centro-Oeste do Brasil, onde Aral Moreira fica localizada e multinacionais como a Louis Dreyfus, a gigante de commodities francesa, se estabeleceram.

O aumento da riqueza contrasta com o senso de desesperança entre os povos indígenas do Mato Grosso do Sul, que representam cerca de 75 mil dos 2,4 milhões de habitantes do Estado. A marginalização deles tem raízes em políticas implantadas nos anos 30, quando os governantes do Brasil confinaram os Guaranis e outros povos indígenas em pequenas reservas, com a intenção de abrir vastas áreas para colonos.

Os resultados para os povos indígenas foram desastrosos. À sombra da prosperidade do Mato Grosso do Sul, os líderes indígenas chamaram atenção ao longo da última década para as mortes de dezenas de crianças guaranis por desnutrição e uma epidemia de suicídios, notadamente em Dourados (MS), uma área urbana onde milhares de guaranis vivem lado a lado com pequenas propriedades.

"Dourados talvez seja a maior tragédia indígena conhecida no mundo", disse Deborah Duprat, a vice-procuradora-geral da República.

Além da desnutrição e suicídios, também ocorreram ataques contra os guaranis. Mais da metade das mortes de índios no Brasil em 2011 ocorreu no Mato Grosso do Sul. A violência está longe de ocorrer às escondidas.

O ataque em novembro contra Gomes, dias após ele ter liderado um grupo de 200 guaranis que ocupou uma fazenda de soja, foi especialmente brutal. Segundo testemunhas, uma gangue de pistoleiros teria realizado o ataque, que também envolveu o espancamento de outros adultos e crianças no acampamento.

A Polícia Federal do Brasil encontrou evidência de que quatro fazendeiros na área teriam contratado uma empresa de segurança particular para remoção dos guaranis, segundo a "Agência Brasil", a agência de notícias do governo. Em dezembro, dez pessoas foram identificadas como suspeitas por ligação ao ataque, disse Jorge Figueiredo, o delegado federal que está investigando o caso.

Mais de seis meses após o ataque, os suspeitos permanecem soltos, apesar dos relatos de dezenas de testemunhas do ataque. Figueiredo disse que as identidades deles não podem ser reveladas, enquanto as autoridades tentam construir um caso forte. Além disso, sem o corpo de Gomes, os investigadores nem mesmo têm prova material de que ele está morto, apesar de seu filho Valmir ter dito que o pai foi morto a tiros naquele dia. Enquanto a investigação se arrasta, os guaranis vivem com medo. As famílias dormem sob lonas no acampamento, que chamam de "tekoha", ou "terra sagrada". Adolescentes patrulham com arcos e flechas. Quando é permitida a entrada de visitantes, as crianças exibem cartazes dizendo: "Nós queremos os ossos de Nísio Gomes, nosso líder".

O senso de impunidade em relação ao ataque segue um padrão, disseram líderes guaranis, no qual enfrentam fazendeiros que montam poderosos esforços legais para expulsar os posseiros de suas propriedades. Alguns fazendeiros dizem que o sistema legal labiríntico do Brasil dificulta a resolução das disputas.

"Os direitos de todos têm que ser garantidos", disse Roseli Maria Ruiz, cuja família é dona da fazenda que foi parcialmente ocupada por mais de uma década pela tribo Guarani. Ocorreram confrontos em sua propriedade. "Nós não podemos, como não nativos, ser tratados como cidadãos de segunda classe", ela disse. "Nós também deveríamos ter o direito de nos defendermos."

Os líderes guaranis dizem que também são impedidos em suas reivindicações pelo processo legal, que envolve estudos antropológicos e decisões de burocratas em Brasília para determinação da propriedade da terra.

Enquanto isso, as tensões prosseguem por todo o Mato Grosso do Sul e persistem as ameaças contra os Guaranis. Um líder guarani, Tonico Benites, 39, descreveu um encontro angustiante em abril. Ele disse que um pistoleiro em uma motocicleta parou ele e sua esposa em uma estrada deserta, e ameaçou matá-lo devido aos seus esforços para recuperar terras. Uma tempestade colocou um fim ao encontro, disse Benites, que ainda treme ao recontá-lo. "Eu disse para mim mesmo, 'Eu vou gritar até ser morto; minha esposa vai me ouvir, talvez outra pessoa'", ele disse. "Eles podem me eliminar, mas não vou partir sem gritar."

* Lis Horta Moriconi, no Rio, contribuiu com reportagem.