Topo

Em país instável na África, família brasileira mantém escola para crianças carentes

Nathan Lopes

Do UOL, em São Paulo e na Cidade do Cabo (África do Sul)

16/10/2015 06h00

Em Moçambique, país com o décimo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre 187 Estados --0,393 numa escala que vai de zero a um--, uma família de missionários brasileiros mantém um projeto de assistência social desde 2012. Rafael e Sara Zimmermann, além de seus três filhos, estão em Nampula, no norte do país, onde atendem 120 crianças carentes --com idades entre quatro e seis anos--, moradoras dos arredores das escolas Reviva e Shekinah, do Projeto Ide África.

O trabalho, porém, não é fácil. Isso em razão da instabilidade política que o país vive. Desde sua independência, em 1975, Moçambique tem sido governado por um só partido político, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), mas que sofre forte oposição de outro partido, a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana). "Sentimos que o país está dividido entre os dois", conta Rafael.

O cenário descrito por Rafael não é exagerado. Em setembro, um ataque a uma comitiva com o líder da Renamo motivou uma troca de acusações entre os dois partidos, ampliando a fragilidade política do país. Ela tem crescido desde as eleições gerais de 2014, vencidas pela Frelimo, mas ainda contestadas pela oposição, que reclama governar o centro e o norte de Moçambique, onde a Renamo obteve mais votos. "Até hoje nos encontramos nessa fase de que, a qualquer momento, pode estourar a guerra ou não", relata o missionário.

Com esse clima no país, o casal coordena o Ide África. Como o projeto ainda está crescendo, eles só têm condições, no momento, de atender as 120 crianças no período da manhã.

Base

O ensino nas duas escolas é definido pelo PEPE (Programa de Educação Pré-Escolar). Trata-se de um sistema para a implantação de unidades pré-escolares que são organizadas e administradas por igrejas cristãs ou evangelizadores, como Sara e Rafael. No currículo, estão disciplinas como linguagem, natureza e sociedade, música, arte visual, educação religiosa e matemática. Atualmente, o PEPE oferece educação escolar de base a crianças de comunidades carentes em 22 países.

Todo mês, os organizadores do programa em Moçambique recebem relatórios do casal sobre as atividades nas duas escolas. Essas informações também são repassadas ao governo moçambicano.

Nas escolas, as crianças recebem dois lanches: bolachas com suco, no meio da manhã, e uma “papinha” --composta por farinha de milho, manteiga, açúcar, leite e amendoim-- perto da hora do almoço. Essa alimentação acaba por ser fundamental para as crianças. “Na sua maioria, elas são provenientes de famílias em alto nível de miséria, com sinais de desnutrição”, conta Sara. 

“Investimos nessas crianças por entendermos ser essa a única forma sustentável para a transformação da sociedade, para a melhoria do país”, diz Rafael.

“Formamos uma base de educação moral, cívica, espiritual, além de amor, respeito e senso de responsabilidade, valores que não poderão ser apagados da vida delas. É nítida a diferença entre as crianças que ingressam no ensino público depois de passarem pelo PEPE. O retorno que recebemos dos pais é de plena alegria e satisfação de verem seus filhos bem-educados, no sentido mais profundo da palavra”, completa o missionário.

Família

Não são apenas as crianças as beneficiadas pelo projeto social. “Desde o início, procuramos envolver toda a comunidade local, mostrando a eles que todo nosso trabalho tem como foco eles mesmos, o desenvolvimento integral e sustentável das famílias e a melhoria da vida deles”, conta Sara. Atualmente, o Ide África envolve mais de 30 pessoas dos arredores do terreno de quase 10 mil metros quadrados --doado por um pastor moçambicano e expandido aos poucos-- onde está sediado o projeto.

Para a comunidade, o projeto oferece cestas básicas, além de repassar doações recebidas. Alguns dos moradores da comunidade, inclusive, atuam nas obras de ampliação das escolas e na construção de um orfanato, que deverá abrigar 60 crianças quando estiver pronto (a previsão é dezembro, com o início da operação previsto para 2016).

Para o trabalho na escola, o casal conta com o apoio de outras oito pessoas, entre professores formados pelo PEPE e ajudantes em treinamento. Ter outros colaboradores permitirá a Rafael, Sara e seus três filhos voltarem ao Brasil um dia. “Estamos aqui para ensinar e incentivar. Sabemos que retornaremos ao nosso país e queremos que o projeto continue”, conta Rafael, que pretende seguir no país com a família por, ao menos, mais cinco anos.

Manutenção

Para que o projeto social exista, o Ide África precisa de US$ 4.000 (cerca de R$ 15,3 mil) por mês, valor em que estão inclusos, por exemplo, material didático, uniformes, lanches, refeições e uma ajuda de custo aos colaboradores. Para obter essa quantia, Rafael vem constantemente ao Brasil. Ele visita igrejas e outras instituições para divulgar o projeto e conquistar mais doadores.

Mas o Ide África tem mostrado que terá condições de ser autossustentável futuramente. Isso porque, para erguer escolas e casas-lares, por exemplo, são utilizados tijolos ecológicos, feitos na própria associação, que ajudam a economizar em 30% os gastos com construção. No momento, o foco está em construir o orfanato. Também estão nos planos a criação de um aviário --para produção de ovos e de carne de frango-- e de uma horta, que poderão ajudar a incrementar a renda com a venda de alimentos.

Por que Moçambique?

Em 1980, os pais de Sara --ligados à Comunidade Vinho Novo, do Pará-- iniciaram um trabalho de evangelização em meio a ameaças e guerras após a independência de Moçambique.

Para Rafael, a escolha por Moçambique para realizar o projeto também é a resposta a um “chamado”. “Nós respondemos a ele e continuamos na trilha que nossos pais nos abriram aqui. É bem verdade que ainda existem muitas demandas sociais no Brasil, e muitos estão trabalhando neste sentido. Mas aí fica nossa pergunta: ‘Será que não chegou o nosso tempo, como brasileiros, que durante anos fomos alvos de trabalhos de ONGs internacionais, de também estendermos nossas mãos a outros países muito mais carentes e menos favorecidos que o nosso?”, questiona o missionário.

E a realidade de Nampula tem rendido ensinamentos aos três filhos do casal: Rebeca, 7; Davi Timóteo, 11; e Sara Raquel, 14. Para a primogênita, “mesmo com muito sofrimento e fome, os africanos estão sempre sorrindo, não importa a dificuldade que eles estão passando”. “Por isso, hoje em dia, tento me alegrar com tudo o que tenho e dou meu máximo para não reclamar de nada”, conta Sara Raquel. Os filhos dos missionários estudam em uma escola bilíngue no país --português (língua oficial de Moçambique) e inglês.