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Reinserção social de ex-combatentes das Farc é o grande desafio da Colômbia

Com a foto de seu filho, Teresita Gaviria (centro) faz vigília com vítimas da guerrilha - Reprodução/Mães da Candelária
Com a foto de seu filho, Teresita Gaviria (centro) faz vigília com vítimas da guerrilha Imagem: Reprodução/Mães da Candelária

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

07/03/2016 06h00

O governo colombiano tem esperança de que o acordo de paz com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) saia ainda em 2016. Há três anos, o Executivo colombiano e o grupo negociam em Havana (Cuba) um acordo de paz para pôr fim a um conflito de mais de 50 anos que abalou o país. Mas o outro lado da questão, delicado e cheio de nuances, é a reinserção de ex-guerrilheiros à sociedade civil.

O filho de Teresita Gaviria, Christian, tinha 15 anos quando desapareceu em 1998. Ele viajava de Medellín para Bogotá quando foi sequestrado em uma estrada. Desde então, ela trabalhou na busca pelos desaparecidos no conflito armado na Colômbia, e agora tem uma nova função: ajudar a preparar as vítimas da guerra civil a conviver com ex-combatentes das Farc.

"Estão preparando os guerrilheiros para o convívio, mas não as vítimas", afirmou Teresita, que fundou a organização Mães da Candelária, ao UOL em entrevista por telefone. "Para nós, a melhor reparação que as vítimas de massacres e desaparecimentos forçados podem receber é a verdade. Que me digam porque mataram meu filho, meus irmãos, porque perdi meus sobrinhos, meu pai, meus familiares".

Teresita fundou a associação com outras 13 mulheres, e hoje o grupo conta com mais de 900 participantes.

Teresita Gaviria mostra a foto de seu filho desaparecido - Reprodução/Youtube/Aquí Estamos Derechos Humanos - Reprodução/Youtube/Aquí Estamos Derechos Humanos
Teresita Gaviria mostra a foto de seu filho desaparecido, Christian
Imagem: Reprodução/Youtube/Aquí Estamos Derechos Humanos
"Para nós é um alívio que estes senhores tenham começado a dialogar [em Havana]. Mas é preciso se lembrar de que muitos deles não querem aceitar suas responsabilidades, porque dizem que não mataram ninguém", diz Teresita.

Teresita reconhece que é preciso trabalhar pela reconciliação como contribuição fundamental para a paz, mas insiste para que os desaparecidos não sejam um capítulo esquecido na história do conflito. "É muito claro que o povo colombiano ainda chora seus mortos, seus desaparecidos, mas temos que seguir em frente. Sei que não temos uma tumba onde chorar os nossos familiares desaparecidos, mas temos histórias, experiências muito tristes e desagradáveis que devemos contar ao nosso país", diz ela.

Natal e mães chorosas como 'arma'

José Miguel Sokoloff, presidente do conselho global de criação da Mullen Lowe, a agência de publicidade contratada pelo governo colombiano para as campanhas de desmobilização de guerrilheiros, acredita que a maioria da população entende que a guerra fracassou como solução e é preciso buscar outro caminho. "Ninguém quer conviver com um criminoso na porta de casa. Esta é uma verdade universal", diz Sokoloff. "Mas acredito que o que divide a sociedade é a concepção de que as pessoas que cometeram crimes não serão punidas".

Se para as vítimas o acordo de paz traz uma sombra cheia de mágoa e ressentimentos em conviver com quem causou tanto sofrimento e promoveu assassinatos, sequestros e atentados, no outro lado da balança estão os guerrilheiros sendo reinseridos na sociedade. Sejam voluntários ou vítimas de recrutamento forçado, tanto das Farc como de paramilitares, são pessoas com muitos traumas, que viveram sob uma realidade de morte e violência, por anos nas florestas colombianas, em meio aos confrontos com o Exército.

Nas propagandas veiculadas em todo o país, a agência de Sokoloff levou em conta o lado emocional dos combatentes. Com o apoio operacional do Exército, foram instaladas árvores de Natal em meio às florestas onde viviam os guerrilheiros. Uma faixa próxima às árvores dizia "Se o Natal consegue chegar até a floresta, você consegue voltar para casa. Desmobilize-se. No Natal, tudo é possível". Naquele fim de ano, 331 pessoas deixaram a guerrilha, segundo dados oficiais.

 

Um dos guerrilheiros desmobilizados deu a dica em que foi baseada a segunda ação da agência: como a guerrilha se move pelos rios, foram espalhadas bolas de Natal iluminadas com mensagens de apoio e presentes de cidadãos comuns. Outra estratégia foi exibir o depoimento de mães de guerrilheiros na televisão, mostrando que eles poderiam voltar em segurança. Na Copa do Mundo de 2014, jogadores, famosos e anônimos apareceram com um lugar vago ao seu lado e um convite para os guerrilheiros deixarem a luta armada e acompanharem a seleção no mundial.

"A desconfiança é grande, e o medo que sentimos também", diz Sokoloff, "Ninguém vai perdoar alguém que não pede perdão, que não cede e não admite que cometeu um erro. Isso só radicaliza o rancor", afirma o publicitário.

Fundação para Reconciliação (Colômbia) - Reprodução/Fundação para Reconciliação - Reprodução/Fundação para Reconciliação
Imagem: Reprodução/Fundação para Reconciliação
 Escola de perdão

E no meio deste processo, existem entidades que trabalham com a reinserção de ex-combatentes na sociedade. Uma delas é a Fundação para a Reconciliação, ligada ao órgão do governo que trabalha diretamente na desmobilização. Ela promove a Escola de Perdão e Reconciliação, em que vítimas e ex-rebeldes reinterpretam um acontecimento doloroso do passado para superar a dor e os sentimentos de rancor e vingança. A fundação ainda forma "promotores de perdão", pessoas que apoiarão suas comunidades no processo –tanto ex-rebeldes quanto vítimas podem ser "promotores de perdão".

"O maior desafio após o acordo será eliminar preconceitos. Fazemos um trabalho pedagógico com os conceitos de perdão e reconciliação, demonstrando que são processos necessários para a construção da paz sustentável e que não implicam no esquecimento ou na falta de justiça", explica David Hernández, coordenador da comunicação da fundação.

O desafio maior para os ex-combatentes, explica Hernández, será apropriar-se do mundo da sociedade civil, abandonando a milícia e o mundo de hierarquias militares. "A expressão moral e emocional de um guerrilheiro é diferente. A ética e as emoções associadas à guerra têm ligações muito fortes de lealdade, obediência e sacrifício. Estes são alguns desafios para a pessoa que abandona o conflito armado, além dos desafios de trabalho e política que a vida civil oferece".

Militares inspecionam armas de paramilitares desmobilizados em 2003 - Jose Miguel Gomez/Reuters - Jose Miguel Gomez/Reuters
Imagem: Jose Miguel Gomez/Reuters

O que está em jogo

O acordo de paz entre o governo da Colômbia e as Farc ainda está em discussão, e deve ser aprovado até o dia 23 de março, mas o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, já está em campanha para a aprovação do pacto no referendo planejado –que também não tem data, e talvez seja feito no meio do ano. O pacto, entretanto, inclui apenas as Farc. Uma discussão diferente está sendo negociada com a ELN (Exército de Libertação Nacional).

As Farc são o maior grupo em atividade atualmente. Teriam cerca de 8.000 guerrilheiros, segundo estimativas do governo. O ELN teria menos de 2.000 combatentes. Ambos foram criados na década de 60 e combatidos durante a década de 90 por paramilitares da AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia). Após um acordo de paz em 2006, a maior parte dos integrantes da AUC se desmobilizou –quem não aderiu criou organizações criminosas conhecidas como Bacrim (bandas criminales), e atuam no narcotráfico e em outras atividades ilícitas.