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Entre católicos e protestantes, Deus é "Pai" mas pode assumir expressões femininas

Getty Images
Imagem: Getty Images

Filipe Domingues

Colaboração para o UOL, em Roma

24/12/2017 04h00

Se "discutir o sexo dos anjos" é uma expressão usada para se referir a conversas sem resolução, o mesmo não se pode dizer sobre o "gênero" do Deus cristão. Entre católicos e protestantes é praticamente unânime a ideia de que Deus não é masculino nem feminino. Sua natureza vai além das definições humanas. Mas, seguindo a herança judaica, Deus é tradicionalmente tratado no masculino, como "Pai", "Senhor" e "Ele". Por outro lado, os últimos quatro papas chegaram a comparar o amor de Deus ao de uma mãe, inclusive o papa Francisco. Permanece na mesa dos especialistas, no entanto, o debate sobre a melhor linguagem para falar de Deus (e com Deus).

Mudanças dos luteranos na Suécia

Recentemente, a Igreja Luterana da Suécia decidiu acrescentar novas expressões, opcionais, para tratar a pessoa divina no seu livro litúrgico. Sem eliminar as fórmulas clássicas, o livro agora permite que o pastor ou pastora se dirija a Deus de forma neutra em algumas partes do culto. Por exemplo, pode-se iniciar o serviço "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo", ou "Em nome de Deus Pai, Filho e Espírito Santo", ou com a nova opção, "Em nome do Deus Trino".

Segundo a reverenda Cristina Grenholm, secretária para a Igreja da Suécia, isto é, a teóloga de nível mais alto na administração da Igreja, e professora de teologia, desde 1986 sua igreja reflete sobre uma linguagem mais inclusiva para mulheres e jovens. Para a pastora, não é correto dizer que queiram eliminar a forma tradicional, masculina, para falar de Deus. "Só queríamos que o nosso livro de orações não se referisse a Deus exclusivamente em termos masculinos", disse ao UOL, por telefone, de Uppsala.

"Ainda rezamos o Pai-Nosso como todos. A Igreja decidiu que, é claro, não vamos mudar as orações antigas, mas acrescentamos expressões que são inclusivas para ambos os gêneros, para diferentes idades, classes sociais"

Cristina Grenholm

De acordo com ela, desde 2012 o novo livro de culto vem sendo testado pelas comunidades da Igreja e só agora foi confirmado. "Não é uma questão de remodelar a fé cristã, mas de fazer justiça ao fato de que a tradição não é exclusivamente masculina", completa. Ela recorda que uma das pessoas divinas, o "Espírito Santo", é uma palavra de gênero feminino na língua hebraica, isto é, o termo ruah, que quer dizer "sopro", "ar" ou "respiro".

A pastora Cristina ponderou que a Igreja da Suécia mantém a distinção citada no início da Bíblia, de que "Deus criou macho e fêmea". Porém, a mesma Bíblia tem metáforas femininas para falar Deus, ligadas, por exemplo, à maternidade e ao parto, principalmente no Antigo Testamento.

Como dizia São Tomás de Aquino, Deus está muito além da nossa compreensão. Portanto, queremos abrir mais a linguagem, em vez de delimitá-la."

Cristina Grenholm

Ao explicar a iniciativa, a reverenda procura esclarecer que a questão não deve ser tratada como política ou ideológica. "É muito importante, para mim, dizer que não foi o ativismo que iniciou esse movimento. Ele parte de mulheres de fé, com a convicção de que estão incluídas no amor de Deus."

Para católicos, um Deus pai com traços maternos

A Igreja Católica, por sua vez, mantém firmemente a tradição de se referir a Deus com termos masculinos. Mas também aceita metáforas femininas, como a da maternidade. Até mesmo os papas já usaram.

A biblista italiana Rosanna Virgili, professora na Pontifícia Universidade Lateranense em Ancona, diz que não é possível ignorar que o texto bíblico se refira a Deus sempre com pronomes masculinos.

"Na Bíblia, o gênero de Deus é masculino"

Rosanna Virgili

Ela afirma que, tanto no hebraico quanto no grego, línguas originais do Antigo e do Novo Testamento, os verbos estão sempre no masculino, mesmo quando houve possibilidade de usar palavras neutras. "A distinção é clara. Não podemos fazer nada. O texto não pode ser alterado", diz.

No entanto, ela continua, "a língua não diz tudo". Assim como a pastora Cristina, a professora católica nota que há comparações e sentimentos femininos para tratar de Deus que também são parte da tradição cristã. "A língua cria instrumentos para compreender a realidade", lembra.

"Mas há, sim, imagens femininas para Deus. O seu amor é maior do que o de um pai e o de uma mãe. Aqui, maternidade e paternidade são metáforas."

Rosanna Virgili

Como exemplos disso, ela cita o capítulo 49 do livro de Isaías, versículo 15: "Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebê, não ter carinho pelo fruto do seu ventre? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria." Nesse mesmo sentido, também o Salmo 131 afirma: "Estou sossegado e tranquilo, como criança saciada ao colo da mãe."

Para a biblista, é preciso ler os textos dentro de seu contexto histórico e dar a interpretação possível para os tempos atuais. Ela entende que a submissão do sexo feminino na religião não é um problema do texto bíblico, mas das doutrinas criadas posteriormente ao longo dos séculos. "Colocou-se uma atenção muito forte sobre os gêneros. Hoje, o problema é uma série de doutrinas que foram elaboradas sobre o conceito do masculino."

Ainda assim, ela não crê que a solução melhor seja uma linguagem neutra. "Não devemos abolir o masculino e o feminino", diz. Segundo a professora, na tentativa de criar maior inclusão, corre-se o risco de distorcer o sentido original do texto e apagar aspectos cruciais. "Se o fizermos, eliminamos o outro, aquele que é diferente. E o relato é justamente sobre um Deus que faz uma aliança com seu povo por meio do relacionamento com o mundo", avalia.

Papas divergiram sobre ideia de que "Deus é mãe"

Mesmo com as imagens femininas presentes na Bíblia, dizer que "Deus é mãe" é um passo que a maioria dos sacerdotes católicos tende a evitar, pois requer explicações. Bento 16 foi o papa que desenvolveu melhor o seu raciocínio sobre o tema.

No livro "Jesus de Nazaré", Joseph Ratzinger levanta essa questão com base no profeta Isaías -- o mesmo texto citado pela professora Virgili.

"Deus não é também mãe? A comparação do amor de Deus com o amor de uma mãe existe”.

Papa Bento 16, no livro "Jesus de Nazaré"

O então papa lembra que "o ventre materno é a expressão mais concreta da íntima ligação entre duas existências".

Porém, segundo ele, Deus nunca é chamado de "mãe" na Bíblia, pois as deusas femininas do mundo antigo não eram associadas a uma distinção entre criador e criatura. O Deus dos judeus, por sua vez, é separado de sua criação e se relaciona com ela.

"Deus não é homem nem mulher, mas Deus, o Criador do homem e da mulher"

Papa Bento 16, no livro "Jesus de Nazaré"

Antes de Bento 16, João Paulo I chegou a afirmar que Deus é mãe, em uma de suas poucas aparições públicas nos 33 dias em que foi papa. Em 10 de setembro de 1978, declarou: "Por parte de Deus, somos objetos de um amor atemporal. Sabemos que tem sempre olhos abertos sobre nós, mesmo se parece ser noite. É pai. Mais ainda, é mãe. Não quer nos fazer mal, mas só bem, a todos", disse. Albino Luciani foi declarado "venerável" pelo papa Francisco, o primeiro passo para que um dia possa ser considerado santo pela Igreja Católica.

De forma parecida, o papa João Paulo II por diversas vezes se referiu ao amor divino como comparável ao materno. Referindo-se ao texto do profeta Isaías, na audiência geral de 20 de janeiro de 1999, declarou que

"A atitude divina em relação a Israel também se manifesta com características maternas, que expressam sua ternura e condescendência."

Também o papa Francisco por diversas vezes comparou o amor de uma mãe ao amor de Deus. Falando sobre o mesmo texto de Isaías, durante missa celebrada na Casa Santa Marta, onde mora, ele pregou:

"É tamanha a proximidade, que Deus se apresenta aqui como uma mãe que dialoga com o seu filho. Uma mãe quando canta canções de ninar e ouve a voz da criança e se faz pequena como o filho, fala com o tom do filho".

Para ele, Deus ama gratuitamente e "é tão próximo a nós que se expressa com a ternura de uma mãe".