"El País" chama de 'grande escorregão' divulgação de falsa foto de Hugo Chávez

José María Irujo e Joseba Elola

De Madri

  • Reprodução/ElPaís.com

    24.jan.2013 - O jornal espanhol "El País" divulgou em 23 de janeiro, em sua versão online, uma imagem do presidente venezuelano Hugo Chávez entubado. A foto, "tirada há alguns dias", segundo o diário, ilustrava uma nota, posteriormente removida, sobre o mistério do câncer do presidente venezuelano e seu tratamento. Após ser apontado que a imagem teria sido tirada de um vídeo de um procedimento médico normal, disponível no YouTube, o jornal publicou uma nota se retratando pelo erro

    24.jan.2013 - O jornal espanhol "El País" divulgou em 23 de janeiro, em sua versão online, uma imagem do presidente venezuelano Hugo Chávez entubado. A foto, "tirada há alguns dias", segundo o diário, ilustrava uma nota, posteriormente removida, sobre o mistério do câncer do presidente venezuelano e seu tratamento. Após ser apontado que a imagem teria sido tirada de um vídeo de um procedimento médico normal, disponível no YouTube, o jornal publicou uma nota se retratando pelo erro

"El País" cometeu na última quinta-feira (24) um dos maiores erros de sua história. Nesse dia, o jornal publicou uma fotografia falsa oferecida pela agência Gtres Online na qual supostamente aparecia entubado o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Apesar das dúvidas que tiveram sobre as circunstâncias que cercavam essa imagem, os responsáveis pelo jornal decidiram publicá-la.

Essas dúvidas não resolvidas se refletiram inclusive no breve texto que acompanhava a foto, no qual se indicava que "'El País' não pôde verificar de forma independente as circunstâncias em que foi feita a imagem, nem o momento preciso nem o lugar. As particularidades políticas de Cuba e as restrições informativas que o regime impõe tornaram isso impossível".

O diretor da publicação, Javier Moreno, é o primeiro a assumir que foi um equívoco: "Esse é o erro central da história. Acreditávamos ter uma fotografia verificada que não havíamos verificado". Como Moreno, toda a cadeia na tomada de decisões assume a gravidade do que ocorreu e pede desculpas. Quando teve conhecimento do erro, a direção do jornal mandou recolher todos os exemplares distribuídos até o momento e, ao mesmo tempo, retirar do site a falsa fotografia.

O custo da reimpressão do diário e a nova distribuição representaram um custo adicional de 225 mil euros. O erro teve uma grande repercussão nas redes sociais e também causou o protesto do governo venezuelano.

Assim que voltou de Davos, onde se encontrava, Javier Moreno analisou os fatos com o Comitê de Direção e o Comitê Profissional, anunciou mudanças para melhorar o método de tomada de decisões e encomendou um relato a dois conhecidos jornalistas do veículo. Este é o resultado desse trabalho jornalístico.

O grande escorregão

Reconstrução das horas que definiram um grave erro jornalístico

"Você pode falar? É urgente." Às 14h da quarta-feira, 23 de janeiro, Javier Moreno, diretor de "El País", observa na tela do telefone que tem duas ligações perdidas do diretor-adjunto, Vicente Jiménez. Moreno está em Davos (Suíça) participando do Fórum Econômico Mundial, no qual se reúnem as elites sociais e econômicas do planeta. Estranhou que da redação de Madri se comuniquem com ele através do Facetime, aplicativo para falar por videoconferência.

- Javier, temos uma foto de uma pessoa que parece Hugo Chávez em uma sala de cirurgia. Ela é oferecida por uma agência e estamos fazendo gestões para consegui-la, porque ofereceram primeiro a 'El Mundo'.

- O que sabemos da fotografia?

- A agência diz que foi tirada por uma enfermeira em Cuba e que a enviou para sua irmã na Espanha. Esta a ofereceu a uma colaboradora da agência.

- Não podemos ter mais informação?

- Luis Magán [chefe de fotografia] vai almoçar com o comercial da agência e vai tentar.

A foto está fazendo sua entrada no jornal. Era o instantâneo que centraliza um dos maiores erros da história do jornal "El País". Esta é a narrativa de como uma imagem falsa acabou na capa, reconstruída através de conversas com os que participaram do processo. As ligações perdidas de Jiménez são para mostrar a imagem ao diretor. Pergunta se pode enviá-la a Davos, mas o comercial da agência, Manuel Montero, rejeita sua difusão. O Facetime é a solução mais rápida para mostrá-la à distância.

O diretor-adjunto se comunica novamente com Moreno e lhe mostra o instantâneo. "Mostraram-me a fotografia montada sobre uma cartolina branca. Pediam 30 mil euros e eu respondi que não. Parecia um típico leilão entre jornais", lembra Moreno, que sugere oferecer 10 mil.

Quando o diretor vê a fotografia, é tomado por dúvidas de que seja uma montagem e pede que se verifique. Minutos depois envia um SMS para Jiménez: "Temos certeza de que é Chávez, não? Não será alguém parecido com ele em uma montagem feita em Lima, por exemplo?" Jiménez responde: "Creio que não, mas, claro, é uma foto que chega por uma via irregular".

A foto falsa chega a "El País" através da agência Gtres Online. Na quarta-feira (23), às 11h, Luis Magán está em um café com o diretor-comercial dessa agência, que desde 2009 fornece a "El País" material gráfico, sobretudo para as seções de Gente e Cultura. Montero anuncia que tem uma foto de Hugo Chávez hospitalizado. E que a ofereceram antes ao jornal "El Mundo", mas a operação ainda não está fechada.

Por volta das 13h30, Montero se aproxima de um bar perto da Rua Miguel Yuste, 40, a sede do jornal "El País" em Madri, com uma pasta branca com o logotipo da agência. Em seu interior, duas reproduções em papel da mesma imagem. Magán as vê pela primeira vez: "Estou vendo a foto e creio que é Chávez. A única coisa que ponho em dúvida é a data em que foi feita", lembra. O chefe de fotografia pede explicações e Montero oferece seu relato. Conta que a foto foi feita há sete dias. Que chegou à agência através de uma colaboradora de plena confiança. Magán sobe com a foto para o escritório do diretor-adjunto, Vicente Jiménez.

- Essa agência é de confiança, não?, pergunta Jiménez.

- Eu acho que é Chávez, responde Magán.

Ao longo da tarde de quarta-feira passam pelo escritório de Jiménez, entre outros, Luis Magán e três subdiretores: Jan Martínez Ahrens, Goyo Rodríguez e José Manuel Romero. "Nesses momentos estamos lidando com a sensação de ter uma exclusiva mundial", relata Magán. Há dúvidas sobre a data e a autenticidade da foto. "Mas ninguém põe em dúvida que seja Chávez", relata o chefe de fotografia.

É fundamental solucionar incógnitas. O subdiretor Jan Martínez Ahrens é o encarregado de fazê-lo. Reúne-se em seu escritório, depois do almoço, com o comercial da Gtres Online e o interroga sobre a procedência da foto. "O relato é francamente frouxo, vago e difuso", conta Martínez Ahrens.

Por volta das 17h30, pede para falar com o diretor da agência, Carlos Van Eyck, e o submete a um terceiro teste telefônico. Van Eyck afirma que crê que a foto é verdadeira e diz que confia na pessoa que a levou à agência. Não dá a identidade do contato na Espanha, nem de quem tirou a foto, com o argumento de proteger quem se arriscou para fazer a imagem.

- Conseguiram passá-la para você?, pergunta Martínez Ahrens.

- Conseguiram, responde Van Eyck, que em outros momentos também insiste na confiabilidade de sua fonte.

Martínez Ahrens transmite essa informação para Vicente Jiménez. A agência e seu representante insistem várias vezes em que a fonte da qual receberam a foto é fidedigna e que confiam em sua colaboradora. Em paralelo, continua a negociação econômica. O representante da Gtres Online pede tempo para falar com a intermediária.

Por volta das 20h, Jiménez recebe a informação de que a negociação avançou e que a fotografia será adquirida. "Quando alcançamos o preço [15 mil euros], decidimos publicá-la", lembra o diretor-adjunto. "Dizem que não querem que a foto saia assinada porque poderia pôr em risco a pessoa que a fez. Pareceu-nos razoável e acreditamos que fosse uma salvaguarda de proteção, e não fragilidade da fonte. Era uma enfermeira que estava jogando sua vida. É claro que nos equivocamos."

Por que se tomou a decisão de publicar a foto se a agência Gtres Online não havia respondido a todas as dúvidas que foram levantadas nessa tarde? "Consideramos que a fotografia era boa e seguimos de forma natural", explica o diretor-adjunto. "Não fizemos votação nem ninguém manifestou oposição.

Ninguém me transmitiu sérias dúvidas sobre a conveniência de não publicá-la ou sobre sua autenticidade, exceto um subdiretor, que duvidava se devíamos publicar a imagem de um homem doente, mas estávamos de acordo em que era uma notícia relevante, porque o governo venezuelano não informa sobre a saúde de seu presidente. Fizemos um voto de confiança na agência, apesar de haver pontos que não podiam ser comprovados", admite Jiménez. "Fizemos mal nosso trabalho."

Magán, que recebeu a oferta e negociou a compra, lembra assim: "Foi uma decisão coletiva. Chega um momento em que temos que nos arriscar ou não". Hugo Chávez não aparece em público desde dezembro passado, nem foi a sua posse em Caracas, ao permanecer convalescente em Havana. Sua doença está cercada de sigilo.

Em Davos, o diretor de "El País" se encontrou com Moisés Naím, analista venezuelano e colunista do jornal, ao qual conta que estão trabalhando na história. "Em um dado momento me transmitem a convicção de que a agência o verificou, que a história é boa, que vamos adiante. Não me disseram que havia muitas dúvidas, porque se fosse assim eu teria parado, mas como havia incógnitas sem resolver pedi a Vicente que no texto fossem acrescentadas, como informação adicional, as perguntas às quais não puderam nos responder. Não como cautela, mas como informação complementar. Acreditei que o mais honesto era reconhecer isso."

Moreno assume que foi um erro publicar a foto e acompanhá-la de um texto que diz que não se confia no instantâneo. "Esse é o erro central da história. Acreditávamos ter uma fotografia verificada que não havíamos verificado." O diretor assume que deixar nas mãos de uma agência as verificações que o jornal deveria ter feito é um erro grave. A precipitação foi outro. E reconhece que o fato de que a informação foi compartilhada por um número reduzido de diretores multiplicou o risco.

A partir das 21h se começa a editar a imagem para a edição impressa. A fotografia falsa passa por outras mãos: desenho, fotografia, internacional, é colocada no sistema de edição Hermes, pelo qual vários redatores já podem vê-la na tela. Meia hora antes, o diretor-adjunto e os subdiretores mostram a imagem a Guillermo Altares, redator-chefe de Internacional. "Isto é o que eu penso que é? Vocês têm 100% certeza?", o jornalista pergunta a seus chefes. "Eles estavam muito seguros do que tinham", lembra.

Altares propõe falar com o colaborador em Caracas, Ewald Scharfenberg, mas se decide não lhe comunicar a notícia por temer que através da conversa telefônica a exclusiva vaze. "Tenho plena confiança em Scharfenberg, mas não nas comunicações venezuelanas", esclarece o redator-chefe.
O subdiretor Martínez Ahrens telefona para o colaborador em Caracas e lhe avisa que o jornal vai publicar uma informação delicada, para preveni-lo. "Disse-me que era um assunto delicado e que eu ficasse atento à reação do governo", afirma Scharfenberg. O jornal não lhe informou que ia publicar uma suposta foto de Hugo Chávez.

Nessa mesma hora, Mokhtar Atitar, editor gráfico do site do jornal, vê a foto e é tomado de dúvidas. Deixa seu lugar na mesa digital em forma de meia-lua situada no centro da redação e dirige-se à de Magán. Expressa sua hesitação, não tem certeza de que a imagem seja boa. Depois volta a seu lugar e começa a procurar no Google para ver se há na rede alguma imagem parecida. "Não encontrei nada, apesar de ter feito várias buscas de imagens. Fiz isso por iniciativa própria", explica. Atitar procura fotos, mas a imagem na realidade procede de um vídeo.

Em Davos, por volta das 23h, Naím se comunica novamente com Moreno.

- Javier, como vai a história?

- Vamos dar a foto.

- Posso tuitar a notícia?

- Mas não diga que é Chávez.

Naím tuita: "Preparem-se para uma foto extraordinária exclusiva no site de 'El País' em breve". Pouco depois, Moreno retuita.

Ewald Scharfenberg, o colaborador em Caracas, vê o tuíte de Naím e escreve a Altares para lhe perguntar se sabe de que se trata. "Ele me responde: 'Não posso lhe dizer nada, sorry'." A suposta exclusiva foi manipulada com a máxima discrição para evitar vazamentos. Mais tarde, Scharfenberg lhe envia outra mensagem na qual adverte sobre uma velha fotografia que circula nesse dia, um instantâneo de Chávez com seu pai e seu irmão.

São 3h em Madri, 20h no México DF e Bernardo Marín chega à redação digital que "El País" tem na capital mexicana. Os exemplares da edição impressa com a foto falsa na capa já estão chegando nessa hora a vários pontos da América Latina, sobretudo à Argentina. E já tem gente tuitando que "El País" mostra Chávez entubado na capa.

Marín liga para Jiménez e lhe diz que considera que é preciso antecipar a publicação, porque nas redes já se começa a falar disso. As quatro pessoas que estão nesse momento na redação do México, onde se elabora o site do jornal durante a noite, começam a preparar a peça de informação digital. Por se concentrar no fechamento, perdem de vista durante cinco minutos a conversa no Twitter, onde alguns começam a falar que a foto pode ser falsa.

Às 3h52, Bernardo Marín aperta o botão de "publicar". A suposta grande exclusiva mundial começa a ser divulgada nas redes sociais, Twitter e Facebook. Às 3h54, olha sua conta no Twitter para ver que repercussão a notícia está tendo. Vê que alguns tuítes põem em questão a autenticidade da foto.

"Quando é a direção do jornal que considerou boa uma informação, você nem pensa que pode ser um erro", explica por telefone, da Cidade do México.
Inés Santaeulalia, uma das redatoras nesse país, liga por telefone e alerta que há muita gente tuitando que a foto é falsa. A conta do Twitter de Moisés Naím recebe insultos: "Houve uma explosão de agressões por parte de seguidores de Chávez. Alguns inclusive dizem que eu tive um papel nisso tudo", explica o escritor.

Marín comprova que a foto foi tirada de um vídeo que está circulando pela rede. Trata-se de uma captura. Aparece um paciente em uma mesa de operações. A imagem data de 2008. Na noite anterior, de fato, a televisão pública venezuelana denunciou que estava circulando esse vídeo, que é falso e que não é Chávez.
Marín liga para Vicente Jiménez e lhe manda uma captura de tela do vídeo. São 4h da madrugada.

Às 4h08 Moreno recebe a ligação do diretor-adjunto. Está descansando no quarto do hotel nos arredores de Davos. A conversa dura quatro minutos e Moreno ordena que os responsáveis pelo site retirem a fotografia da capa e que se paralise a distribuição da edição em papel para evitar que chegue às bancas.

"Tomei a decisão na hora, sem pensar no que ia custar e sem consultar ninguém", lembra o diretor. Desde esse instante e até as 8h12, Moreno faz 26 ligações e decide reimprimir "El País" para voltar a colocá-lo nos pontos de venda.

Às 4h12, Jiménez liga para o responsável por distribuição e impressão da Pressprint, Juan Manuel Albelda. Diz que é preciso recolher toda a tiragem. Albelda lhe informa que há rotas que estão distribuídas e entregues. Não se consegue frear a distribuição de exemplares destinados às linhas aéreas, ferrovias, hotéis e assinantes. Na Espanha, 4.100 exemplares chegam aos leitores com a foto falsa. "Se a ordem chegasse meia hora depois, teria sido dramático", confessa Albelda.

Conseguem paralisar 93% da tiragem. Mas na Argentina só são recuperados 30%, e 8.050 exemplares chegam às bancas. Na República Dominicana se recuperam 10%: 5.670 exemplares com o erro chegam ao destino.

Ao todo são 22.635 exemplares com a foto falsa distribuídos. Volta-se a imprimir uma nova edição. O custo da reimpressão do jornal beira os 125 mil euros. A nova distribuição deverá custar mais 100 mil.

"Pareceu-me incrível que, algo que para qualquer venezuelano era uma brincadeira, fosse a capa de 'El País'", acrescenta Scharfenberg, o colaborador em Caracas.

A reação do governo venezuelano é imediata. O chavismo acusa "El País" de participar de um complô com a oposição. "Ninguém acredita que a foto é algo casual, os lacaios internos têm sua réplica no estrangeiro", escreve em sua conta no Twitter o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello. "Cada vez que alguém no mundo, chame-se 'El País', Bosé, Juanes, Willie Colón, Cochez ou Uribe, ataca a pátria, a oposição o transforma em herói", diz em outra mensagem reproduzida pela mídia oficial.

O governo de Hugo Chávez anuncia que tomará medidas legais e sua embaixada em Madri acusa o jornal de "desprezar" os venezuelanos. "A publicação dessa fotografia grotesca é apenas a confirmação da campanha sistemática que esse jornal e outros mantêm, aproveitando-se de maneira atroz da situação de saúde pela qual passa o comandante Chávez", espeta o ministro da Informação, Ernesto Villegas. Na Argentina, a presidente Cristina Fernández de Kirchner escreve em sua conta no Twitter: "Na capa de 'El País' vi uma foto. Corrijo-me, isso não é uma foto, é uma canalhice".

No dia seguinte à publicação, já descoberta a fraude, uma reunião na sede do jornal com os responsáveis da Gtres Online permite comprovar que a primeira versão que deram não é correta. Carlos Van Eyck, o diretor da agência, explica que na mesma manhã em que se descobriu a falsidade sua colaboradora ligou para a pessoa que lhe enviou a fotografia e que esta mudou sua versão.

O novo relato torna a pista da foto ainda mais difusa. A suposta intermediária na Espanha é uma venezuelana que recebeu a foto enviada por sua irmã da Venezuela, via Whatsapp. Esta, por sua vez, teria recebido a imagem supostamente procedente de Cuba. Pouco importa. A foto era falsa.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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