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G20 vira palco para disputa entre China e EUA por domínio da América Latina

Xi Jinping e Donald Trump durante encontro em Pequim, China, em novembro de 2017 - Andrew Harnik/AP
Xi Jinping e Donald Trump durante encontro em Pequim, China, em novembro de 2017 Imagem: Andrew Harnik/AP

Talita Marchao

Do UOL, em Buenos Aires

28/11/2018 04h01

A América Latina será nos próximos dias palco da disputa entre China e EUA. Na quinta-feira (29), o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), recebe no Rio John Bolton, assessor de Segurança Nacional de Donald Trump. Nos próximos dias, chegam a Buenos Aires o próprio Trump e Xi Jinping, presidente chinês, que participam da cúpula das 20 principais economias do mundo, o G20. A disputa de Washington x Pequim, aliás, deverá ser um dos principais temas da reunião.

"Além da disputa comercial entre Estados Unidos e China, há uma disputa entre os dois países que também diz respeito à projeção de influência política na América Latina. É uma dinâmica nova e pode ser o nascimento de uma nova Guerra Fria entre EUA e China mundo afora. A América Latina não foge a essa dinâmica", afirma em entrevista ao UOL Matias Spektor, coordenador da graduação da Escola de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

A China hoje é um parceiro comercial vital para quase todos os países da região, e o Brasil não é exceção. "O país é hoje o principal destino para investidores chineses e um parceiro comercial muito importante para a China, especialmente para importações de produtos agrícolas", explica Margaret Myers, diretora do Programa de China e América Latina do Think Thank Inter-American Dialogue, em Washington.

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"Sabemos que esta administração dos EUA tem problemas em aceitar a dominação econômica da China, especialmente na América Latina, com investimentos chineses em infraestrutura, tecnologia ou coisas que teriam alguma utilidade em um eventual conflito entre Pequim e Washington, como uma guerra cibernética e até mesmo real", diz Myers.

Mas a especialista diz não acreditar que as ambições chinesas na região tenham como objetivo combater os EUA.

"O foco é econômico e em recursos naturais. A China trabalha para a sua própria agenda de reformas domésticas e, para avançar nela, a América Latina se tornou atrativa para as empresas chinesas. Mas não é a única região que atrai Pequim", diz a especialista.

Mas o que a China quer na região?

O instituto Inter-American Dialogue compilou dados de estradas, portos e outros projetos de infraestrutura que atraem apoio e investimento chinês desde 2002 na América Latina. Estima-se que mais de 150 projetos estejam em andamento na região, o que inclui uma ferrovia que passa por Brasil, Bolívia e Peru. Para metade dos projetos, a construção já começou. 

Matias Spektor, da FGV, lembra ainda que a China construiu uma estação de controle de satélites na Patagônia argentina. 

"Com essa instalação, a China coloca a Argentina no meio dessa disputa com os EUA. Na eventualidade de uma guerra cibernética entre os Estados Unidos e a China, Pequim passaria a ter um país na nossa região que estaria em meio a esse fogo cruzado", diz o professor.

Margaret Myers destaca que o interesse chinês na América Latina não é diferente do que o país busca no resto do mundo: recursos, especialmente energéticos e agrícolas.

"É claro que o Brasil entra nessa equação nos dois aspectos, ou seja, é um parceiro muito importante para a China", diz.

"A América Latina também é um mercado importante, especialmente o Brasil, para as exportações chinesas. E a China não importa só produtos manufaturados de baixo custo e qualidade, mas também equipamentos de alta tecnologia e maquinários", afirma a especialista, lembrando que a África também vive momento parecido.

O jogo de Trump na região

Nos últimos dois anos, a diplomacia americana deixou de lado as relações com a América Latina, especialmente a América do Sul. Mas o cenário pode estar prestes a se alterar. Além da visita de Trump a Buenos Aires e da parada de Bolton no Rio, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) está em viagem nos EUA e foi recebido por autoridades.

"A visita do Bolton foi desenhada precisamente para finalizar a vontade política da Casa Branca de se aproximar de Bolsonaro, que fez campanha prometendo justamente essa aproximação", diz Matias Spektor.

"Sem dúvida, esse encontro com o Bolton é um modo de selar a promessa dessa parceria. E o motivo pelo qual Trump está fazendo isso é porque o Bolsonaro é um dos poucos líderes do mundo que fez campanha celebrando e exaltando o seu exemplo, imitando boa parte das técnicas e táticas de campanha nas redes sociais. Além disso, Bolsonaro está fazendo o que pode para se posicionar como uma liderança neste movimento transnacional, que inclui países como Hungria, Itália, Filipinas e Turquia, de um nacionalismo reassertivo antiglobalista, de cunho populista", diz o especialista da FGV.

A gente vai assistir no Brasil à tentativa de maior aproximação entre dois presidentes desde Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton na década de 90
Matias Spektor, coordenador da graduação de Relações Internacionais da FGV

Oliver Stuenkel, também professor de Relações Internacionais da FGV e autor de "O Mundo Pós-Ocidental: Potências Emergentes e a Nova Ordem Global", afirma que os EUA ainda não veem a América Latina como prioridade.

"Nunca foi e nunca será [uma prioridade]. Os EUA têm um grande número de desafios mais complexos pela frente do que a América do Sul, como o Oriente Médio, a Rússia e a própria China. Hoje a atuação norte-americana se limita a questões pontuais, mas Washington tem alertado há um bom tempo sobre a influência chinesa na região", afirma.

"Mas, em função do aumento da influência chinesa na região, os EUA começam cada vez mais a enxergar a América do Sul dentro do contexto da competição crescente com a China. Mas o mesmo acontece em relação à África e outras partes do mundo", diz Stuenkel.

"O mais interessante é acompanhar como os EUA vão responder e qual será a articulação estratégica contra essa crescente influência chinesa. A princípio, os eventos mais recentes na região tendem a ser positivos, já que temos no Brasil um futuro governo pró-EUA, além de os governos da Colômbia e da própria Argentina, que olham para o Norte não com receio e preocupação, mas como um possível parceiro", ressalta.

Apesar da nova ofensiva diplomática norte-americana na região, os especialistas concordam que a influência chinesa não está em risco.

"Há uma dependência econômica muito grande, e os EUA não têm como substituir os laços econômicos latinos com a China. Essa dependência econômica também veio para ficar", diz Stuenkel. "Muitos países irão continuar escolhendo o investimento chinês, porque não há muitas alternativas", diz Margaret Myers.

"Seria muito difícil colocar a influência chinesa em risco na região, sobretudo porque um país como o Brasil, que está quebrado no momento, precisa da China. As privatizações do Paulo Guedes, sem a China, serão muito menos competitivas. Além disso, haverá muita resistência porque existem muitos grupos econômicos com influência política, como o agronegócio brasileiro, que não querem um afastamento da China", ressalta Spektor.

A China e as privatizações de Bolsonaro

A especialista do Inter-American Dialogue destaca ainda que, mesmo que Bolsonaro imponha restrição aos chineses para as privatizações que planeja, são as empresas desse país as que mais se interessam por nossas estatais, especialmente as de energia elétrica. "Não são só as mais interessadas, mas provavelmente estão entre as únicas capazes de comprá-las. Será muito difícil privatizar sem investimento chinês", afirma.

"A realidade é que será muito difícil fazer qualquer coisa sem considerar a China como uma parceira e entender o valor crítico que a China tem em termos de laços econômicos
Margaret Myers, diretora do Programa de China e América Latina do Inter-American Dialogue

O presidente eleito suspendeu as críticas a Pequim desde que venceu nas urnas. "Provavelmente, atores econômicos importantes no Brasil têm dito a ele que agredir a China teria um custo enorme. Hoje o Brasil vende a metade de todas as commodities para a China, por exemplo. E não vejo como mudar este quadro", diz Stuenkel.

O interesse dos EUA no Brasil vai além do fator chinês. Entram ainda Cuba e Venezuela nesta equação. "Sabemos que o governo Trump e a base dele no Senado tem posições muito duras. Em relação a estes dois países, Bolsonaro promete se alinhar aos EUA, aumentando a pressão contra o regime cubano e o venezuelano", diz Spektor.

Myers lembra ainda que a China tem interesses em Cuba e na Venezuela. "Pequim tem motivações bem claras para se relacionar com Havana. É um reflexo de laços históricos, uma relação específica que já dura décadas. Mas traz pouco lucro para as empresas chinesas. Já a Venezuela é uma parceira mais recente. A China foi uma grande fonte de crédito de Hugo Chávez e é de Nicolás Maduro nos últimos anos, mas se nota que hoje os chineses têm uma política de investimento mais restrito. O dinheiro dado a Caracas por empréstimo já era prometido, não é novo. A China não está disposta a dar mais dinheiro para a Venezuela", avalia a especialista.

"O que a China tem feito agora na Venezuela é atuar no setor petrolífero em joint ventures para tentar aumentar a produção de petróleo. Isso é feito como um esforço para garantir que a Venezuela pagará os empréstimos chineses. Para isso, Caracas precisa exportar petróleo. A China tem noção do risco que corre ao se associar com a Venezuela atualmente, com a atual situação política e econômica do país, e está fazendo isso para assegurar que Caracas cumpra com suas obrigações", explica Myers.