Contraste entre bairros de Baltimore retrata décadas de desigualdade nos EUA

Marc Bassets

Em Baltimore (EUA)

Os helicópteros sobrevoavam a cidade. A Guarda Nacional tinha mobilizado seus soldados depois dos distúrbios de 27 de abril. Centenas de jornalistas registravam nas ruas as patologias dos EUA: violência, marginalização, racismo.

A dois quilômetros, nos bairros brancos de Baltimore, tudo aquilo parecia distante.

"Estão a um universo de distância", explicava Paul Taylor, morador de Bolton Hill, um bairro de ruas arborizadas, mansões e cafés badalados. "Tão longe quanto a lua", insistiu.

O passeio por esta Baltimore em estado de exceção - até o último domingo, quando a Guarda Nacional começou a se retirar, imperou o toque de recolher a partir das 22h - começa em Bolton Hill. Taylor, 53 anos, conversa na entrada de uma casa com Reuben Lee, seu vizinho. Ambos são brancos. Lee tem 80 anos e viveu todas as mudanças de Baltimore no último meio século: de uma cidade de guetos étnicos - os irlandeses, os italianos, os judeus, os poloneses, os negros - para uma de maioria negra, depois que os brancos fugiram para as periferias nos anos 1960 e 70.

Hoje existem duas Baltimores que se dão as costas.

"Não é algo que costumamos ver ou sentir, nem que nos preocupe", responde Taylor à pergunta sobre se os brancos entram nos bairros de West Baltimore, onde em 12 de abril Freddie Gray, um negro de 25 anos, foi detido. Ele morreu uma semana depois. A promotora de Baltimore, Marilyn Mosby, acusou seis policiais de homicídio.

A disparidade entre a Baltimore negra e a branca é, como diz o morador de Bolton Hill, cósmica. Na galáxia branca está a Universidade Johns Hopkins, centro de ensino e de pesquisa de ponta. "Só 10 quilômetros separam os bairros de Roland Park e Hollins Market", disse há alguns anos Jonathan Bagger, vice-reitor da Johns Hopkins, falando sobre a distância entre um bairro rico e outro pobre. "Mas a diferença entre a expectativa de vida média é de 20 anos." Em Sandtown-Winchester, o bairro de Freddie Gray, a expectativa de vida é de 69,7 anos, o mesmo nível do Iraque.

Desde janeiro passado foram cometidos 74 homicídios ao todo em Baltimore, uma cidade de 620 mil habitantes. Em 2014 inteiro houve 17 homicídios em Madri, com mais de 3 milhões de habitantes. Nos EUA, os negros representam 13% da população e 30% das vítimas dos disparos da polícia.

Com nuances, as estatísticas citadas não são exclusivas de Baltimore: basta deslocar-se alguns quilômetros da Casa Branca para descobrir nos bairros de Washington problemas semelhantes.

Mas Baltimore, onde os principais cargos políticos, judiciais e policiais são ocupados por negros, obriga a adotar nuances na hora de buscar explicações unicamente racistas.

Alguns bairros, com casas e mansões abandonadas, parecem uma paisagem açoitada por uma catástrofe natural. Tudo isso não começou agora, mas há muito tempo, com a desindustrialização, a epidemia de crack, a criminalidade local e a repressão policial e, na década passada, os abusos das hipotecas-lixo, que atingiram as minorias.

Todos os negros entrevistados em Baltimore conhecem alguém que sofreu o vendaval. Em uma livraria nos arredores, Natashia Heggins lembra sua mãe, professora escolar, acompanhando as alunas ao médico: estavam grávidas.

"Era previsível, era previsível", repete, ao falar dos distúrbios, Keyon Johnson, morador de Oliver, um bairro negro e deprimido. Johnson, 32 anos, explica que muitos de seus amigos de infância morreram. Ele foi salvo pelo basquete. Agora promove atividades esportivas para os rapazes do bairro.

Em um escritório no centro, o advogado negro Derrick Hamlin - terno listrado, lenço e gravata borboleta: um dândi de periferia - evoca sua juventude. "Quando você via a polícia, saía correndo", disse. Ele foi preso duas vezes ainda menor e outra já maior.

"Meu pai passou na prisão parte dos meus primeiros anos. No mínimo, esteve preso 15 vezes em um período de 20 anos, por roubar um banco, por assaltos ou por drogas", diz. Foi sua mãe quem o criou, quem o salvou. Chegou à universidade: em seu escritório há diplomas de química e de direito. A ausência dos pais é um traço comum na América negra.

Hamlin assumiu a defesa de alguns jovens detidos nos distúrbios. "Não aprovo o vandalismo nem a destruição, mas entendo a raiva", escreveu.

O passeio por Baltimore termina em um restaurante tailandês em um bairro aburguesado. Os clientes são brancos. Os televisores estão sintonizados na CNN, que informa do lugar dos protestos. Parece um país distante, mas está a menos de dez minutos de carro. Antes das 21h, com os pratos por terminar, a garçonete traz a conta. "Por causa do toque de recolher", justifica.

Baltimore não é o Iraque, nem a lua: está a 70 quilômetros da Casa Branca.

"Um exército de ocupação"

Orlando Patterson, sociólogo de Harvard nascido na Jamaica, afirma que em muitos bairros negros a polícia é vista como uma força estrangeira. Os agentes, disse em uma entrevista, "não vivem na área, veem a comunidade como um inimigo e não acreditam que seu papel seja protegê-la, mas reprimir e prender, comportar-se como um exército de ocupação".

Um motivo, segundo Patterson, é a desconexão com os bairros pobres e o treinamento deficiente. Outro, o racismo arraigado em setores minoritários. Três agentes acusados pela morte de Freddie Gray em Baltimore são negros. Nesta cidade, a metade da polícia é negra. "Às vezes [os policiais] são igualmente agressivos, para não destoar dos outros", diz.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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