Dos selfies aos flashes, somos todos paparazzi!

Le Monde

Francis Marmande

  • Gabriel Lordello/UOL

    10.nov.2014 - Smartphones brilham durante apresentação de Paul McCartney em Cariacica (ES)

    10.nov.2014 - Smartphones brilham durante apresentação de Paul McCartney em Cariacica (ES)

Selfie nas ruas, com celebridades, estrelas, políticos e, em breve, selfie até com a sua própria sombra. Smartphones e flashes atrapalhando shows... Não se podem repreender essas pequenas flatulências de um inconsciente inchado. As pessoas se ofendem. Seria uma grande besteira ou isso é viver em sociedade?

Em shows em pé ou sentado, não importa o estilo e o tamanho, os flashes e os vídeos são vistos como as novas versões dos isqueiros que os hippies seguravam ao balanço da música. Mas eles irritam e atrapalham. Atrapalham o artista, as pessoas ao redor, e até mesmo a ideia de show, recentemente. Seria o seu fim?

De todos os shows que vi (de jazz e improvisação livre, mas não só...) desde o início do verão de 2014, nenhum deles transcorreu sem o seguinte incidente: um dos músicos, às vezes o líder, teve de interromper sua apresentação para protestar. Protestar contra o quê? Contra os incessantes flashes vindos da plateia, uma casa repleta de paparazzi bonzinhos.

Disparadores compulsivos

Não adianta bradar contra o narcisismo, a crise de identidade, a angústia do ego, esse espetáculo global no qual o sujeito perdido também se torna ator. Psicanalistas, antropólogos de boteco, americanistas profissionais, doutorandos de todas as espécies (esses novos especialistas) já se encarregaram disso.

"As câmeras ultra-silenciosas", explica Christian Ducasse, fotógrafo e colaborador do "Le Monde", "o desempenho da fotografia digital que supera a baixa luminosidade", tudo isso foi uma revolução. Tudo que a técnica permite, as pessoas correm para fazer.

Cerca de 72% dos humanoides fotografam suas refeições antes de comer (pelo Facebook etc.), mas somente 7,2% tiram fotos de seus excrementos (fezes etc.), e 27% fazem vídeos de sua primeira noite de amor. A próxima etapa para os disparadores compulsivos é exibir suas partes íntimas em público. Em particular, eles já o fazem.

O grande precursor foi o pianista Keith Jarrett, que ganhou a fama de babaca por abandonar os shows em que as pessoas não param de tirar fotos. O público e o que resta da crítica – muitas vezes equipada como o telhado da embaixada americana em Paris – defendem os disparadores compulsivos. Mas por qual motivo? Para começar, pela liberdade. Além disso, fora Keith Jarrett, os músicos do verão protestaram com veemência? De jeito nenhum.

Eles têm medo, então reclamam com muita delicadeza. Uma das mais belas intervenções foi da experiente cantora Stacey Kent, em um show em Touraine, no início de setembro: "Por favor, parem de tirar fotos com flash... isso atrapalha... mais importante, em vez de nos assistirem através de seus celulares, ouçam a gente... Obrigada." No teatro equestre Zingaro, a voz de bicho-papão do Baron (um aristocrata decadente que Bartabas apanhou na estrada) faz com que todos se comportem.

Quem salva é Daniel Barenboim, que desempenha o papel de artista e consciência moral. No dia 22 de dezembro de 2014, no Scala, ele foi de Sonata D. 845 de Schubert. Flashes, flashes e mais flashes. "Da primeira vez, lembro-me que fiz uma brincadeira. Hoje falo sério. Estou aqui para fazer meu trabalho da melhor forma possível. Mas como fazer isso com alguém tirando fotos enquanto eu toco? Isso é falta de educação."

Outro dia, no circo Bouglione, logo depois do anúncio de "Por favor, não usem flash etc." uma menina de 9 ou 10 anos sacou o celular, o tablet, binóculo eletrônico e se pôs a disparar como uma metralhadora. Pedi a ela calmamente – o que me espantou – que respeitasse os artistas. A pessoa ao seu lado, uma espécie de Humbert Humbert grisalho que alegava ser seu pai, berrou: "Eu o proíbo de falar com minha filha. Seu pedófilo! Sim, senhor, pode quebrar minha cabeça no meio, eu repito: você é um pedófilo!" (O que é mentira). Eu e o Humbert Humbert nos olhamos cinicamente, enquanto a pequena continuava a fotografar um elefante, meio constrangido de ter provocado essa confusão.

Todos paparazzi!

Foi dito de tudo sobre essa mania de fotografar qualquer coisa, que não causa vergonha nem pela sua evidente pulsão de espião e voyeur. Sem querer usar grandes palavras, isso é fascismo com um rosto humano, uma vigilância generalizada. São todos paparazzi, bisbilhoteiros! Vamos denunciar todos!

Christian Ducasse diz que "desde o começo de minha carreira percebi que certos espectadores, munidos de câmera ou não, se portam como peidorreiros nas salas de espetáculos." Então a questão seria a discrição, a presença, a ética, o respeito, essas velharias? "Desde o final dos anos 1920, quando surgiu o fotojornalismo na Alemanha, os repórteres passaram a ser os caçadores clandestinos da mídia.

Hoje, os profissionais discretos tendem a desaparecer, dando lugar aos não profissionais que se divertem, munidos de suas teleobjetivas túrgidas, endossando uma identidade que lhes parece gratificante. "Selfie", "falso self"... os fotógrafos profissionais não estão encarando bem sua exclusão e as restrições contra eles: "Sem contar diversas discriminações, como o desrespeito aos direitos autorais, a rara menção do nome deles na horizontal e tão visível quanto o dos redatores..."

No filme "La Dolce Vita", de 1960, um jovem fotógrafo zanza ao redor de Marcello Mastroianni. Ele se chama Paparazzo, uma palavra que Giulietta Masina inventou a partir de pappataci (moscas da espécie Lucilia caesar) e ragazzi. Esses voyeurs de 7 a 77 anos de idade que querem fotografar tudo teriam algo de paparazzi? Ou eles estão se preparando para inventar – vide o celular dentro dos trens – uma nova forma de sociabilidade?

Tradutor: UOL

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