Esquema usava nome da Cruz Vermelha para esconder verdadeiros donos de contas

Catherine Boss e Christian Brönnimann*

  • Rahmat Alizadah/Xinhua

    O presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer

    O presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer

No mundo inteiro a Cruz Vermelha é vista como um símbolo de neutralidade, de independência e de integridade. Só que a identidade do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), fundado em 1863 em Genebra e com base na Suíça, foi usada para esconder dinheiro sujo. É o que revelam os "Panama Papers": centenas de empresários se aproveitaram da reputação da organização humanitária para permanecerem acima de qualquer suspeita.

"É um risco enorme para o CICR", disse indignado seu presidente, Peter Maurer, ao descobrir a extensão da usurpação.

A prestadora de serviços offshore Mossack Fonseca chegou a fazer um grande negócio disso. A firma panamenha colocava à disposição de seus clientes duas fundações: a Brotherhood Foundation e a Faith Foundation, que podiam ser utilizadas para deter as ações de empresas offshore. Isso porque uma fundação como essa, que não possui acionistas, permite mascarar quem se esconde por trás de uma conta bancária.

"Assim é mais simples"

Esse serviço foi um sucesso. Quase 500 empresas utilizavam uma dessas fundações. A Mossack Fonseca chegou a preparar um certificado "geralmente utilizado nesses casos", explica uma funcionária em um e-mail de 2008. Ela explica que o documento aponta "a organização humanitária chamada The International Red Cross" como beneficiária da Faith Foundation. Um documento de 10 de março de 2011 contém até mesmo o endereço verdadeiro do CICR: "19, avenue de la Paix, CH-1202 Geneva Switzerland".

Um outro e-mail da firma entrega ingenuamente a razão do esquema: "Como os bancos e as instituições financeiras hoje são obrigados a obter informações sobre os beneficiários econômicos finais, tornou-se difícil para nós não divulgar a identidade daqueles da Faith Foundation. Foi por isso que criamos essa estrutura chamada International Red Cross. Assim é mais simples."

De fato é mais simples. E a Mossack Fonseca indica que não tinha a obrigação de informar a Cruz Vermelha do papel que ela exercia sem saber.

"Segundo a legislação do Panamá, os beneficiários de uma fundação podem ser utilizados sem saber," afirma um funcionário em uma nota interna. "Isso significa que a Cruz Vermelha Internacional não tinha ciência desse acordo."

Os "Panama Papers" provam que esse sistema foi usado diversas vezes para esconder bens roubados, ou dinheiro suspeito de ser produto de atividades criminosas.

O esquema serviu, entre outras coisas, para desviar dezenas de milhões de dólares em fundos públicos na Argentina. Em 2013, jornalistas locais revelaram uma rede de corrupção em torno do ex-presidente Néstor Kirchner e de Cristina Fernández de Kirchner, que sucedeu seu marido em 2007 e deixou o cargo em 2015.

O casal presidencial teria lavado US$65 milhões (R$228 milhões) em Nevada utilizando um grande número de empresas da Mossack Fonseca, segundo o promotor argentino encarregado do caso.

Essas empresas offshore têm um ponto em comum: elas são controladas por duas sociedades de fachada, a Aldyne Limited e a Garins Limited, registradas pela firma panamenha nas Seychelles. No papel, essas empresas pertencem à Faith Foundation, e portanto à Cruz Vermelha.

Em um depoimento à Justiça americana, uma funcionária da Mossack Fonseca afirma que essas duas empresas "na verdade não pertencem a ninguém", o que é categoricamente exato, pois as fundações no Panamá não precisam de um proprietário, somente de beneficiários.

O CICR é pego de surpresa

O estratagema também serviu ao atual presidente dos Emirados Árabes Unidos. Em 2005, o Sheikh Khalifa bin Zayed Nahyan queria adquirir casas nos bairros mais ricos de Londres.  

O Banco da Escócia lhe concedeu um empréstimo sem juros de 291 milhões de libras esterlinas (R$1,46 bilhão). Mas foi a empresa Mayfair Commercial Limited, registrada pela Mossack Fonseca nas Ilhas Virgens Britânicas e pertencente a um fundo do sheik, que comprou as casas. A Mayfair é ligada através de diversas empresas offshore à Faith Foundation.

Por fim, Elena Baturina, mulher do ex-prefeito de Moscou e uma das mulheres mais ricas da Rússia, entrou na Justiça contra um de seus ex-sócios, que teria lhe subtraído cerca de 100 milhões de euros (R$ 399 milhões), um caso que corre na Justiça londrina. Em 2008, Baturina pagou dezenas de milhões de euros a uma empresa que pertence a seu parceiro para um projeto imobiliário.

Mais de 13 milhões de euros transitaram pelas contas de três empresas da Mossack Fonseca nas Ilhas Virgens, administradas pelo escritório de uma companhia de gestão fiduciária genebrina. Nos "Panama Papers" é possível encontrar 5 desses 13 milhões de euros (R$ 51, 9 milhões), redirecionados para outros lugares, sobretudo para Chipre, sob forma de juros.

A fiduciária de Genebra teve um papel central. Para dissimular o proprietário das três empresas que ela administrava, e mais de 200 outras por ela criadas, ela criou uma fundação no Panamá com pseudo-acionistas, que faz o mesmo papel que a Faith Foundation e está ligada a ela.

A organização humanitária evidentemente não tem nenhum controle sobre essas empresas. As Convenções de Genebra, das quais o CICR é depositário, ainda proíbem explicitamente qualquer apropriação de seu nome. Os Estados signatários têm o dever de garantir que as Convenções sejam respeitadas, e o Panamá ratificou essas Convenções em 1956.

O CICR evidentemente foi pego de surpresa. "Faremos tudo que estiver em nosso poder para acabar com tal usurpação", prometeu seu presidente, Peter Maurer.

"Não há praticamente nenhuma marca no mundo que precise tanto ser protegida quanto o CICR. Se nos virmos associados a uma empresa offshore de uma facção em guerra, não quero nem imaginar com o que poderíamos estar envolvidos."

A Mossack Fonseca se limitou a responder: "Suas alegações segundo as quais nós fornecemos acionistas com estruturas (...) destinadas a esconder a identidade dos proprietários reais não têm fundamento."

*"Le Matin Dimanche"  da Suíça; adaptação "Le Monde"

Panamá Papers: Como o dinheiro se esconde

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Tradutor: UOL

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