Carros de luxo, disfarces e sorte: como foi a caçada ao terrorista de Paris

Élise Vincent

  • Christian Hartmann/Reuters

    18.nov.2015 - Policiais revistam morador durante operação na região de Saint-Denis, no norte de Paris

    18.nov.2015 - Policiais revistam morador durante operação na região de Saint-Denis, no norte de Paris

O jornal francês "Le Monde" teve acesso ao dossiê da investigação que permitiu que os policiais belgas prendessem o fugitivo dos atentados de Paris, e envolveu paciência, golpes de sorte e falhas

As cenas que os investigadores viram inúmeras vezes, nervosos, nas primeiras semanas da caçada a Salah Abdeslam, foram as últimas imagens do jihadista andando na rua. Vagas imagens difusas, extirpadas como ouro de uma câmera de vigilância de Bruxelas, dez dias depois dos atentados de 13 de novembro de 2015. O homem-chave dos atentados de Paris passava por entre a fachada de uma loja, dois carros e uma esquina. Ali parecia ser possível ver o preto de um gorro e o cinza de uma jaqueta. Será que alguns segundos a mais teriam bastado para rastreá-lo com menos dificuldade? De qualquer forma a tecnologia interferiu. A câmera que o gravou naquele dia estava programada para mudar de campo em intervalos regulares, e de repente ela sumiu com aquele que parecia então estar ao alcance.

Será que realmente se consegue aprender a rastrear fantasmas? Como se acha um jihadista que de repente foi engolido pela cidade? A investigação para encontrar Salah Abdeslam, único sobrevivente do comando que cometeu os ataques do dia 13 de novembro, extraditado para a França no dia 27 de abril, à qual o "Le Monde" teve acesso, continuará sendo um trecho excepcional na história policial e judiciária. Foi uma caça a diferentes alvos, uma vez que muitos supostos cúmplices do jihadista também desapareceram do nada, envolvendo uma confusão de registros telefônicos, rumores grosseiros e amizades invisíveis. Foi uma mistura de metódicos pentes finos, belos golpes de sorte e falhas cruéis, que teve os investigadores ouvindo já nos primeiros dias, sem descobri-los, aqueles que afinal se revelaram como os principais ajudantes do terrorista em sua fuga.

O começo desse desafio de quatro meses tão tenso quanto desgastante provavelmente foi no dia 14 de novembro de 2015, em plena luz do dia, na esquina da rua Royale-Sainte-Marie com a praça Lehon, em Bruxelas, uma praça de paralelepípedos ladeada por algumas vagas de estacionamento e uma grande igreja. Salah Abdeslam acabava de ser deixado ali de carro por um amigo, Ali O. Esse soldador de 31 anos contou tudo enquanto estava sob custódia, e os investigadores seguiram suas indicações até esse entrelaçado de moradias populares. A pista de Abdeslam desapareceu, então onde procurá-la? Seria melhor ir até a Síria, ou mergulhar a fundo em Schaerbeek e Molenbeek, bairros problemáticos como Barbès, situados em pleno coração da capital belga? Optou-se pela segunda alternativa. Como observou então um dos investigadores, sucintamente:"Salah Abdeslam é certamente incapaz de administrar sua fuga sem cúmplices externos."

Os amigos mais próximos de Salah Abdeslam, que logo passaram a ser investigados, mostraram ser sua maior fortaleza. Quinze homens e uma mulher foram indiciados desde então na Bélgica, no dossiê de 13 de novembro, dos quais pelo menos sete são suspeitos de tê-lo ajudado em maior ou menor grau em sua fuga. Somente dois escaparam da detenção: Abdellah C., 35, filho de um imame radical belga, suspeito de ter lhe emprestado sua senha do Facebook, e Lazez A., 39, sucateiro cujo irmão mais novo foi suspeito de participar do atentado frustrado de Verviers em janeiro de 2015, que talvez o tenha escondido por algumas horas ou alguns dias em seu Citroën Jumper.

No entanto, ninguém conseguiu evitar o interrogatório entre Molenbeek e Schaerbeek. Aron, o operário da construção civil romeno, comprador ocasional de maconha; Rachi, o dono de lanchonete; Rafik, o velho amigo desempregado. "Sabe onde ele poderia estar? Quem poderia escondê-lo?" Às perguntas insistentes e sistemáticas, as mesmas respostas de frases vagas e lacônicas: "Não sei...", "Não posso dizer". Até a frase dita por Joy, uma morena de olhos grandes que saiu com quase todos os homens do bando do café dos Béguines administrado pelos irmãos Abdeslam: "Salah é muito reservado, muito tímido, mas é determinado. Acho que ele vai até o fim, não vai se render."

Para os investigadores, todos os irmãos Abdeslam também eram suspeitos de terem informações sobre o fugitivo. Yazid, 33, Mohamed, 29, Myriam, 22. Mohamed, porque trabalhava no departamento de estrangeiros da prefeitura de Molenbeek e descobriram que ele vendia clandestinamente suas consultas ao arquivo central. Myriam, porque ela tentou diversas vezes contatar seu irmão por SMS em seus números antigos: "Salah?", ela lhe enviou, sem desconfiar que estava sendo grampeada. Yazi, o mais velho, porque curiosamente ele destruiu o chip do telefone de um de seus irmãos mais novos logo antes de uma busca e devido ao seu comportamento errático ao longo dos meses de interrogatórios.

 

GPS embutidos

Na verdade, foram encontrando a pista de Abdeslam aos poucos, mas através de um expediente totalmente diferente. O pequeno submundo de Molenbeek gosta de bons carros, sedãs brilhantes. Para os investigadores, visitar as locadoras de carros era  obrigatório. Na ocasião desse pente fino, um nome bem conhecido deles surgiu: o de Mohamed B. Muçulmano praticante de 27 anos, rosto redondo, cabelos raspados e barba abundante, Mohamed B. tinha a particularidade de complementar seu orçamento de locatário desempregado com a revenda de lotes de eletrodomésticos, um pequeno negócio que ele tocava conjuntamente com um certo Khalid el-Bakraoui, logo identificado como um dos organizadores do 13 de novembro e futuro homem-bomba do metrô de Bruxelas no dia 22 de março.

Contudo, o que permitiu que os investigadores avançassem foi menos essa amizade aberta de Mohamed B. com Khalid el-Bakraoui do que seu infeliz hábito de alugar BMWs ou Audis A6 com GPS embutidos, veículos cujos trajetos os investigadores puderam estudar detalhadamente, além de permitir a descoberta das áreas por onde eles andavam e o cruzamento de dados sobre seus nove números de celular. Tudo isso levou a três esconderijos -- um quarto foi descoberto depois -- utilizados entre setembro e dezembro de 2015 para preparar os massacres de Paris e que indiretamente levariam a Salah Abdeslam.

O primeiro era o que menos levantaria suspeitas. Situado em Auvelais, no centro de um bairro residencial perto de Namur, era uma linda casa de tijolos vermelhos com varanda e verdejantes cercas vivas. Os policiais a encontraram vazia, no dia 26 de novembro. Não havia nenhum vestígio do jihadista, mas logo eles descobriram o pseudônimo daquele que a emprestou para ele com um nome falso: Sofiane Kayal. Esse pseudônimo foi identificado como sendo o de Najim Laachraoui, fabricante das bombas de 13 de novembro e futuro homem-bomba no aeroporto de Zaventem, no dia 22 de março.

O segundo esconderijo foi descoberto em Schaerbeek, no meio de Bruxelas. Foi desconcertante descobrir que o endereço ficava a menos de 500 m a pé do local onde Salah Abdeslam foi pego pela câmera pela última vez, no dia 14 de novembro. Logo atrás da grande igreja. Em um primeiro momento, os investigadores tinham somente o nome da rua, Henri-Bergé, não o apartamento. Foi só ao interrogar todos os residentes que eles acabaram sendo alertados por um proprietário quanto ao número 86. Seu locatário lhe havia avisado recentemente que fora obrigado a permanecer na Espanha para "cuidar de sua mãe paralítica". Ele deixou sua carteira de identidade para a fiança do aluguel. Seu nome oficial era Fernando Castillo, uma falsificação grosseira na qual Mohamed B. aparecia de peruca e enormes óculos que lhe cobriam o rosto.

No início de dezembro, ainda não havia nenhum sinal de Salah Abdeslam, mas um indício tendia a mostrar que estavam próximos dele. No esconderijo abandonado, as equipes de técnicos descobriram uma impressão digital do jihadista. Quando e por quanto tempo ele conseguiu se esconder na rua Henri-Bergé?  Ele teria fugido alertado por duas buscas ruidosas conduzidas sem sucesso, no dia 4 de dezembro, em casas vizinhas? No duplex situado no último andar de um prédio comum, os policiais encontraram algo preocupante: vestígios de explosivos, uma máquina de costura e três cintos de tecido destinados a serem usados com um recipiente. Era a oficina dos terroristas de 13 de novembro.

E por último o terceiro esconderijo, este em Charleroi, no número 29 da rua do Fort. Sua descoberta foi um milagre resultante de um cruzamento sortudo de buscas de casa em casa e dados de GPS de um veículo do comando deixado no Bataclan, um capítulo à parte da investigação que tem até um codinome: "operação Carolo". Situado em um pequeno prédio de apartamentos para aluguel, esse esconderijo chamou a atenção dos investigadores sobretudo pela identidade falsa de quem o alugou. Também nesse caso o falso locatário se divertiu usando uma peruca tosca e óculos vintage na carteira de identidade deixada para o aluguel. Usando o nome falso de Ibrahim Maaroufi, dessa vez se tratava de Khalid el-Bakraoui.

Às vezes passavam-se longos dias entre uma descoberta e outra. É impossível contar o número de buscas inúteis, de proprietários de imóveis descontentes de ter sua porta arrombada, de contas de 5 mil euros de indenização... As análises das apreensões de dados digitais eram feitas com urgência, mas era difícil ter um resultado em menos de dois meses. Como a legislação belga impede que se tirem as escutas, pilhas de boletins de ocorrência foram se amontoando, afogando os investigadores em labirintos de conversas domésticas. A interpretação das conversas mais obscuras era quase um jogo de adivinhação. Como o trecho "para Abd", extraído no dia 14 de janeiro de uma conversa por SMS de um detento da prisão de Ittre que estava tentando reservar um carro através da internet a partir de sua cela. Ou a conversa entre um número sírio e um celular de Bruxelas em um dia de novembro: "E aí?" "Nada de mais". "Como tá lá?" "Tá tudo bem." "Tá uma zona aqui." "Eu sei..."

Gangue de documentos falsos

Paralelamente, uma outra investigação foi avançando, mas sem alarde, sobre uma gangue de documentos falsos. Seu desmantelamento iniciou bem antes dos atentados, em outubro de 2015. Mais de mil identidades falsificadas foram apreendidas. Após os massacres, os investigadores notaram que três membros da equipe de 13 de novembro recorreram ao serviço, entre eles Salah Abdeslam. Ele também se camuflou com uma peruca ridícula em penteado tigelinha dos anos 1970 e óculos gigantescos. Mas ao aprofundar suas buscas, os policiais acabaram encontrando uma última identidade falsa que precipitou toda a caçada.

O improvável pseudônimo Mehdi Vandenbus era novamente Khalid el-Bakraoui. No entanto, dessa vez era menos por seu nome e mais pelo seu endereço que os investigadores esperavam capturá-lo. As companhias de luz e de gás belgas responderam, mas no dia 15 de março... sete dias antes dos atentados de Bruxelas. Um certo Mehdi Vandenbus de fato solicitou seus serviços, no início de janeiro, aparentemente enquanto se mudava. Na época, ele pediu uma ligação para Forest, comuna vizinha de Bruxelas, no número 60 da rua de Dries.

Então decidiram fazer uma busca durante o dia, e devido a repetidas buscas infrutíferas anteriores, os investigadores cometeram a imprudência de irem em poucos agentes e mal equipados. Eles arrombaram a entrada com um aríete, mas em vez de um apartamento vazio, eles deram de cara com uma kalashnikov. Vários policiais ficaram feridos. As forças especiais belgas correram para o local, abatendo o atirador, mas era tarde demais. "Duas pessoas fugiram pela parte de trás do prédio. Uma delas usava barba e uma arma comprida, a outra não", contou uma testemunha em condição de anonimato. Os dois fugitivos não eram ninguém menos que Salah Abdeslam e um comparsa de 22 anos próximo da rede jihadista tunisiana, e identificado desde então pelo nome de Sofien A., conhecido como Amine Choukri.

"Abdeslam é família"

Outro infortúnio: o atirador morto logo foi identificado... e por acaso ele já havia sido ouvido no começo da investigação, no dia 19 de novembro. Tratava-se de Mohamed Belkaid, um dos que coordenaram os ataques de 13 de novembro à distância, por telefone. Teria sido um erro da investigação ou algo inevitável? Mohamed Belkaid, 35, de origem argelina, foi detido enquanto dormia em sua sala, em novembro, e seu apartamento foi revistado. O homem negou ter qualquer proximidade com o jihadista, chegando a afirmar: "Não conheço terroristas e espero nunca conhecer um. Não apoio a violência em nome do islamismo ou qualquer ato dessas pessoas". Ele foi liberado.

Mas o tiroteio de Forest deu início ao fim da fuga. Continuava desaparecido Mohamed Abrini, suposto cúmplice dos ataques de 13 de novembro e futuro "homem do chapéu" dos atentados de Bruxelas. Mas foi em Salah Abdeslam que as escutas reativadas em toda parte acabaram culminando. A investigação voltou então a seu ponto de partida, após uma grande volta.

Dois telefonemas intrigaram os investigadores no dia 15 de março, após as trocas de tiros. Seus autores contataram um número que os policiais acreditavam ser usado pelo jihadista, depois de cruzarem dados. Só que essas duas pessoas também haviam sido ouvidas em novembro de 2015. Elas provavelmente também mentiram sobre suas relações com o fugitivo. Um deles era Boubouh M., 29, técnico em segurança de incêndios de dia e professor de caratê à noite e ex-vizinho de andar dos Abdeslam, na Place Communale. E o outro, um certo Abid A., pego através do telefone de sua mulher e considerado uma das figuras "radicais" da comunidade salafista de Molenbeek.

Ele foi um dos poucos a assumir, sem rodeios, que o conhecia, ao ser interrogado após os atentados: "Salah Abdeslam é família. Sua avó materna é irmã da minha avó paterna", ele explicou naquele dia. Vigiado de perto durante os quatro meses de fuga de Abdeslam, Abid A., pai de quatro filhos, empregado há quinze anos na mesma empresa de limpeza, nunca deu motivo nenhum para que os investigadores duvidassem de sua boa fé inicial. No máximo foi encontrada na casa dele uma obra intitulada "Combate entre o islamismo e o ateísmo no Afeganistão". É verdade que no dia 17 de março, dois dias após o tiroteio de Forest, ele compareceu ao funeral de Brahim Abdeslam, um dos irmãos de Salah, morto em um ataque suicida no Comptoir Voltaire, em Paris. Mas se os Abdeslam eram "família sua", quem suspeitaria que sua mãe deficiente teria qualquer conluio com o jihadista fugitivo?

No entanto, foi na casa da discreta Djamila, 55, na rua des Quatre-Vents, no dia 18 de março, por volta das 16h, em pleno coração da parte mais modesta de Molenbeek, que os investigadores foram descobrir um Salah Abdeslam cansado, emagrecido, ao lado de Sofien A., o outro fugitivo de Forest. O DNA do homem-bomba que não se explodiu no 13 de novembro foi identificado no esconderijo da rua de Dries pouco tempo antes. Quando as forças especiais bateram à porta, Salah Abdeslam tentou escapar uma última vez. Mas atiraram em suas pernas e ele logo foi dominado, algemado e colocado na viatura, ferido.

Durante a revista na casa de sua mãe, à noite, o investigador que redigiu o boletim de ocorrência com as constatações desse pequeno apartamento de um quarto com lavanderia, situado no térreo, entendeu que foi no porão que o jihadista passou os três últimos dias: "Constatamos a presença de um tapete grosso no chão que aparentemente serviu de cama, ao lado do qual encontramos restos de comida (caixa de pizza, garrafas vazias de refrigerante, biscoitos, bananas...) e fardos de água", ele observou minuciosamente. O fim de semana passou uma falsa impressão de trégua para os investigadores. Todos aqueles que haviam sido só coadjuvantes no dia 13 de novembro logo estavam se preparando para cometer seus próprios atentados. No dia 22 de março, por volta das 8h, três bombas acordaram Bruxelas.

Tradutor: UOL

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