Universidade no Texas se divide sobre porte de armas dentro do campus

Stéphanie Le Bars

Do Le Monde

  • Erich Schlegel/Getty Images/AFP

    Jovem faz campanha pelo porte de armas em Austin, no Texas (EUA), em janeiro deste ano

    Jovem faz campanha pelo porte de armas em Austin, no Texas (EUA), em janeiro deste ano

Cinquenta anos após o primeiro tiroteio em massa que ocorreu em seu campus, a Universidade de Austin, no Texas, se vê obrigada a aceitar alunos armados. Professores temem o pior com a nova lei e lideram os protestos

Jennifer Glass tinha 17 anos da última vez que a ameaçaram com uma arma. Quase quatro décadas depois, essa nativa de Dallas, hoje professora universitária em Austin, no Texas, gostaria que isso nunca mais acontecesse.

Mas nas últimas semanas o risco aumentou: uma lei "ridícula", que entrou em vigor no mês de agosto em seu Estado, autoriza o porte de armas dentro das instalações da universidade. Até então limitadas aos estacionamentos e ruas, agora elas podem ser levadas para dentro das salas de aula e anfiteatros por qualquer um que tenha porte de arma e no mínimo 21 anos de idade.

A professora de sociologia considera isso inadmissível. Juntamente com duas de suas colegas, ela entrou com uma ação na Justiça para alertar a opinião pública sobre essa medida "incompatível" com a vida acadêmica e demonstrar que essa lei, aprovada pela maioria republicana do Texas, contraria "pelo menos três emendas da Constituição americana: a liberdade de expressão, a 'boa regulação' do porte de armas e a igualdade de proteção dos cidadãos".

A ação na Justiça tem poucas chances de resultar em algo, mas a oposição à potencial presença de armas nas mochilas ou em coldres escondidos sob casacos (as armas devem estar ocultas) é quase geral no campus. Austin, uma ilha liberal dentro de um Estado ultraconservador, se pôs à frente dos protestos.

Até mesmo o presidente da universidade tomou partido publicamente e manifestou seu total apoio aos opositores. "Não acredito que as armas tenham um lugar na universidade", declarou Gregory L. Fenves, para quem este seria "o pior desafio" de sua presidência. "Na condição de professor, eu entendo as profundas preocupações levantadas por muitos. Mas, na condição de presidente, tenho a obrigação de cumprir a lei."

A universidade, com seus cerca de 50 mil estudantes, fervilha como uma cidade, marcada pelo ritmo do sino da imponente torre central dos anos 1930. No campus, onde se alternam prédios de tijolos com outros imóveis recentes, a resistência às armas de fogo não é algo evidente.

No entanto, cá e lá, rompendo a monotonia das fachadas, cartazes laranja ou verdes avisam: "gun free UT" ("Universidade do Texas livre de armas"). No dia da volta às aulas, centenas de estudantes e membros da equipe de funcionários manifestaram sua discordância de uma maneira um pouco mais explícita: segurando vibradores, "objetos tão fora de lugar quanto uma arma no campus", eles pretendiam denunciar o absurdo da nova regulamentação.

A revolta dos professores continua firme e também carrega tons políticos. "Estamos diante de uma minoria ativa que defende o porte de armas a qualquer preço, ao passo que uma maioria silenciosa quer mais controle sobre as armas", acredita Jennifer Glass, mencionando a divisão ilustrada pelos posicionamentos antagônicos dos dois candidatos à Casa Branca sobre essa questão.

Ao contrário do que seus adversários republicanos dão a entender, Hillary Clinton não prometeu voltar atrás na segunda emenda da Constituição, que autoriza o porte de armas; em compensação, ela espera tornar a compra delas mais difícil, instaurando um maior controle. Já Donald Trump se comprometeu a proteger o direito de se andar armado para todos os cidadãos.

Por não haver avanços em nível federal, quatro Estados (Califórnia, Nevada, Washington e Maine) incluíram o controle de armas na lista de referendos que costumam ser organizados no dia das eleições presidenciais. Cerca de 300 milhões de armas, que se encontram nas mãos de menos de 40% dos lares americanos, estariam em circulação nos Estados Unidos, segundo o instituto Pew Research Center.

A universidade pública na mira

Além disso, em Austin, os opositores da nova lei estão certos de que ela claramente visa a universidade pública e sua "cultura liberal". Os estabelecimentos privados podem na verdade decidir aplicá-la ou não, e a maior parte deles optou por não se submeter a ela.

Mas as universidades públicas, como a de Austin, não tiveram essa escolha e precisam se adequar à lei. Os professores da universidade temem que cresça a lista de professores e de palestrantes que desistiram de dar aulas no local para protestar contra a lei.

No início do ano, a demissão do diretor do departamento de arquitetura surpreendeu seus colegas. O professor, uma figura do campus há 15 anos, reconheceu que sua saída foi em grande parte devido à nova lei. "Eu teria de aplicar uma lei na qual não acredito", ele declarou à imprensa. Os opositores do texto continuam a compilar esse tipo de depoimentos na universidade, para provar na Justiça os estragos provocados pela lei à imagem e à reputação da universidade.

No departamento de literatura inglesa, os professores usaram da criatividade para protestar, colocando na porta de seus gabinetes fotos, desenhos ou colagens que convidam os estudantes a lhes "perguntarem sobre seu posicionamento sobre o porte de armas de fogo".

Mia Carter, professora de inglês, deixou a um gatinho desenhado sobre um fundo cor-de-rosa choque a tarefa de puxar o debate com seus visitantes. "Eu tento não mudar nada na minha maneira de ensinar", diz a professora, que chegou de Massachusetts há 25 anos.

"Mas essa lei induz a uma mudança de cultura, de clima. Muitos temem não conseguir mais debater de forma pacífica ou abordar temas polêmicos ao saber que talvez tenha um aluno armado dentro da sala de aula. Isso também pode influenciar nossa maneira de dar nota aos estudantes: como avaliar tranquilamente alguém que talvez possa estar armado?"

Em um prédio vizinho, Joan Neuberger decorou a porta de sua sala com um pôster de um revólver cortado por uma faixa de "proibido". Essa professora de história concorda: "Um debate pressupõe confiança, tolerância. Quando vemos o discurso político que existe hoje com Trump, vemos que estamos longe disso. A universidade precisa preservar isso."

"Em um momento em que a violência por armas está minando nosso país, adotar leis como essa só piora as coisas", lamenta também Kevin S. Helgren, presidente da associação de estudantes e membro do grupo criado pela universidade para acompanhar a aplicação da lei. O jovem ainda acredita que as universidades deveriam ter outras prioridades também: "Encontrar novas formas de financiamento, combater os abusos sexuais em campus..."

Tanto Joan Neuberger como Mia Carter fazem parte dos professores privilegiados que dispõem de um gabinete pessoal e que, contanto que indiquem verbalmente a seus visitantes que são contra o porte de armas, podem lhes proibir o acesso. Da mesma forma, o estádio ou os laboratórios, onde ficam armazenados produtos perigosos, continuam sendo zonas livres de armas.

"Mas tudo isso é na teoria, porque não temos o direito de perguntar a alguém se ele está armado...", suspira Mia Carter. Outras pessoas imaginaram estratégias para conseguir contornar a situação. No início do ano, Jennifer Glass propôs a seus alunos que se comprometessem a não virem armados para suas aulas. "Todos aceitaram assinar o documento", ela afirma. "Sem isso, a nova lei tornaria meu trabalho extremamente difícil."

Yasmine Jassal é professora-assistente de psicologia e não tem uma sala própria. Desde o início do semestre, ela só recebe seus estudantes no Cactus Café, o bar do campus. O porte de armas é de fato proibido em locais que vendam álcool.

"Isso me dá um sentimento de segurança e também tranquiliza os estudantes, sobretudo os novos", conta a jovem. "A universidade é para muitos o primeiro lugar onde eles conhecem pessoas diferentes, pessoas que não pensam como eles, um lugar onde se deve ter a mente aberta. As armas não têm que estar aqui", ela acredita.

Mas a texana não tem nada contra a segunda emenda. "Eu não defendo uma proibição, mas não é razoável pensar que todo mundo pode carregar uma arma para qualquer lugar". Ela discutiu o assunto com uma aluna que pretende começar a andar armada.

"Ela me disse, como dizem todos aqueles que são pró-armas: 'Quero poder ser a pessoa boa (good guy) que detém a pessoa má (bad guy)'." Os raros estudantes que defendem a nova lei não quiseram se manifestar, tendo sido contatados diversas vezes pela reportagem. Kevin S. Helgren calcula que eles sejam menos de 1%.

"Isso levará uma geração"

Mas para os professores reticentes ao porte de armas o argumento clássico do lobby das armas, alimentado pelos tiroteios em massa que ocorrem com frequência nas escolas e nas universidades americanas, não se sustenta.

Mesmo na Universidade de Austin, que 50 anos atrás teve o primeiro tiroteio em massa da história dos Estados Unidos, com 17 mortos, vítimas de um atirador posicionado no alto da torre do campus.

"Na época, os pró-armas disseram que pessoas que foram buscar suas armas dentro do carro haviam contribuído para matar o atirador. Mas a polícia afirmou depois que a presença delas na verdade complicou mais as coisas", conta Jennifer Glass. "Não precisamos mais de uma milícia armada (termo empregado na segunda emenda) para nos defender; hoje temos as forças de ordem".

"Eu entendo o medo dos pró-armas que querem se defender, mas a presença de armas em todo lugar é bem mais perigosa do que os tiroteios em massa", diz também Joan Neuberger.

Isso porque, além das razões éticas e morais apresentadas pelos opositores da lei, também há temores mais concretos, sobretudo o risco de uma pessoa acidentalmente disparar sua arma, uma vez que a lei autoriza de fato que as pessoas se desloquem com sua arma carregada.

Um incidente ocorrido recentemente acabou os convencendo da periculosidade de se colocar armas nas mãos de jovens "sob pressão, estressados, pressionados a ter sucesso, constantemente avaliados, emocionalmente frágeis". Excluído de uma festa estudantil organizada fora do campus, um jovem voltou para sua casa para buscar uma arma e a disparou contra o segurança, ferindo-o na perna.

Apesar de sua militância, Jennifer Glass tenta não se iludir. "Nunca conseguiremos mudar a segunda emenda. Mas podemos fazer com que as armas sejam consideradas como um problema de saúde pública, assim como o cigarro. Mesmo sem proibir o porte de armas, é possível limitá-lo ao máximo, mas isso levará pelo menos uma geração."

Nos círculos conservadores, o momento é mais de endurecimento da lei. A plataforma para 2016 do Partido Republicano do Texas propõe que se acabem com "todos os espaços onde o porte de armas seja proibido, para permitir que os cidadãos exerçam plenamente seu direito de defesa." Eles especificam que seria um direito "dado por Deus."

Além do atirador, fabricantes de armas também são culpados por um massacre?

Tradutor: UOL

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