EI já enviava seus agentes à Europa muito antes dos ataques em Bruxelas
No dia em que deixou a Síria com instruções para praticar um atentado terrorista na França, Reda Hame, 29, um técnico de computador de Paris, tinha entrado para o Estado Islâmico havia apenas uma semana. Seu passaporte francês e sua formação em informática faziam dele o recruta perfeito para um grupo interno do EI, em rápida expansão, que se dedicava a aterrorizar a Europa. Em poucos dias, ele foi levado a um parque, onde lhe ensinaram a disparar um rifle de assalto e a atirar uma granada contra uma silhueta humana. Seu curso acelerado incluiu o uso de um programa de criptografia chamado TrueCrypt, o primeiro passo em um processo destinado a mascarar as comunicações com seu contato ou mentor do EI na Síria.
O mentor, que usava o codinome "Papai", conduziu Hame até a fronteira turca e o enviou com o conselho de escolher um alvo fácil, atirar contra o maior número possível de civis e fazer reféns até que as forças de segurança o transformassem em mártir. "Seja corajoso", disse Papai, abraçando-o.
Hame foi enviado por um órgão do EI que estava obcecado por atacar a Europa pelo menos dois anos antes dos atentados mortais em Paris em novembro passado e em Bruxelas este mês. Neste período, o grupo despachou uma série de agentes treinados na Síria, com o objetivo de realizar pequenos ataques destinados a testar e pressionar o aparato de segurança da Europa, enquanto os ataques mais mortíferos eram preparados, segundo processos penais, transcrições de interrogatórios e registros de escutas telefônicas na Europa obtidos pelo "New York Times".
As autoridades dizem hoje que os sinais dessa máquina terrorista dirigida já podiam ser vistos na Europa em 2014. Mas os órgãos de segurança locais repetidamente menosprezaram cada trama que surgia, descrevendo-as como atos isolados ou aleatórios e descartando a conexão com o EI.
"Isto não surgiu de repente nos últimos seis meses", disse Michael T. Flynn, general aposentado do Exército norte-americano que dirigiu a Agência de Inteligência da Defesa de 2012 a 2014. "Eles vêm preparando ataques externos desde que o grupo entrou na Síria, em 2012."
Hame foi preso em Paris em agosto passado, antes que pudesse atacar. Estava entre os pelo menos 21 agentes treinados que conseguiram se infiltrar na Europa. Os registros de seus interrogatórios oferecem uma visão das origens e da evolução de um ramo do Estado Islâmico responsável pela morte de centenas de pessoas em Paris, Bruxelas e outros lugares.
As autoridades europeias hoje sabem que Papai, o orientador de Hame, era ninguém menos que Abdelhamid Abaaoud, o agente belga que selecionou e treinou combatentes para ataques na Europa e que retornou para supervisionar pessoalmente o atentado em Paris, o mais mortífero cometido na Europa em mais de dez anos. O pessoal na filial de operações externas de Abaaoud também esteve por trás dos ataques em Bruxelas, assim como de uma tentativa frustrada em um subúrbio de Paris na semana passada. Outros estão sendo procurados com urgência, segundo autoridades belgas e francesas.
"Aquilo é uma fábrica", disse Hame a seus interlocutores da inteligência francesa após sua prisão. "Eles fazem tudo o que podem para atacar a França ou outro lugar da Europa."
Durante grande parte de 2012 e 2013, o grupo jihadista que acabou se tornando o Estado Islâmico estava se enraizando na Síria. Enquanto ele começava a recrutar agressivamente estrangeiros, especialmente europeus, os políticos nos EUA e na Europa continuavam a considerá-lo uma filial menos importante da Al Qaeda, que estaria mais interessada em conquistar território e governá-lo.
Uma das primeiras pistas de que o EI estava entrando no ramo do terrorismo internacional surgiu às 12h10 de 3 de janeiro de 2014, quando a polícia grega parou um táxi na cidade de Orestiada, a cerca de 7 km da fronteira turca. No interior, estava um cidadão francês de 23 anos chamado Ibrahim Boudina, que retornava da Síria. Em sua bagagem, as autoridades encontraram 1.500 euros (R$ 6.150,00) e um documento em francês intitulado "Como fazer bombas artesanais em nome de Alá". Mas não havia um mandado de prisão para ele na Europa, por isso os gregos o deixaram ir, segundo registros de tribunais que detalham a investigação francesa.
Boudina já estava na lista de observados da França como parte de uma célula de 22 homens radicalizados em uma mesquita na cidade turística de Cannes. Quando as autoridades francesas foram notificadas da inspeção na Grécia, já estavam grampeando seus amigos e parentes. Várias semanas depois, a mãe de Boudina recebeu uma ligação de um telefone da Síria. Antes de desligar, o interlocutor desconhecido lhe informou que seu filho tinha sido "enviado em uma missão", segundo uma transcrição parcial da ligação.
A polícia cercou uma área ao redor do apartamento da família perto de Cannes e prendeu Boudina em 11 de fevereiro de 2014. Em um armário de serviço no mesmo prédio, foram encontradas três latas de bebida Red Bull contendo 600 gramas de TATP, o explosivo triperóxido de triacetona, que mais tarde seria usado com efeitos fatais em Paris e Bruxelas.
Foi somente quase dois anos depois, na página 278 das 359 de um processo judicial sigiloso, que os investigadores revelaram um detalhe importante: as conversas de Boudina no Facebook o situavam na Síria no final de 2013, na cena de uma importante batalha travada por um grupo que se intitulava "Estado Islâmico no Iraque e na Síria" (Isis, na sigla em inglês).
Segundo um relatório de uma agência de inteligência interna da França, ele foi o primeiro cidadão europeu conhecido que viajou à Síria, entrou para o EI e voltou com o objetivo de cometer terrorismo. Mas suas ligações com o grupo ficaram enterradas na burocracia francesa e não foram relacionadas a casos posteriores. Incluindo Boudina, pelo menos 21 terroristas treinados pelo EI na Síria foram despachados à Europa com a intenção de causar chacinas humanas, segundo uma contagem do "Times" baseada em registros da agência de inteligência interna da França. Os combatentes chegaram em um fluxo constante, retornando sós ou em duplas ao ritmo de um a cada dois ou três meses durante 2014 e no primeiro semestre de 2015.
Assim como os assassinos de Paris e Bruxelas, todos esses agentes iniciais falavam francês --eram na maioria cidadãos franceses e belgas, juntamente com um punhado de imigrantes de ex-colônias francesas, incluindo o Marrocos.
Eles foram detidos na Itália, Espanha, Bélgica, França, Grécia, Turquia e Líbano, com planos de atacar empresas de judeus, delegacias e um desfile de carnaval. Tentaram atirar contra vagões de trem lotados e congregações de igrejas. Em sua posse, havia estiletes e armas automáticas, rádios de comunicação e celulares descartáveis, assim como as substâncias químicas para fabricar TATP.
A maioria deles falhou. Em cada caso, as autoridades falharam em captar --ou pelo menos indicar para colegas-- as ligações dos homens com o nascente Estado Islâmico.
Em um dos casos de maior repercussão, Mehdi Nemmouche voltou da Síria via Frankfurt, na Alemanha, e seguiu de carro até Bruxelas, onde em 24 de maio de 2014 disparou tiros no interior do Museu Judaico da Bélgica, matando quatro pessoas. Mesmo quando a polícia encontrou um vídeo em sua posse no qual ele reivindica a responsabilidade pelo ataque ao lado de uma bandeira que ostenta as palavras "Estado Islâmico no Iraque e na Síria", a vice-promotora da Bélgica, Ine Van Wymersch, descartou qualquer conexão.
"Ele provavelmente agiu sozinho", disse ela à imprensa na época.
Entre os sinais mais claros da crescente capacidade do EI de praticar atentados terroristas está seu progresso na fabricação e no uso de bombas contendo triperóxido de triacetona, ou TATP.
(*Contribuição na reportagem de David E. Sanger e Eric Schmitt, de Washington; Laure Fourquet e Aurelien Breeden, de Paris; Katrin Bennhold, de Londres; Andrew Higgins, de Bruxelas; e Runa Sandvik, de Nova York. Alain Delaquérière e Karen Yourish colaboraram em pesquisa.)
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