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Como refugiados sírios se surpreenderam ao serem (bem) recebidos no Canadá

Jodi Kantor e Catrin Einhorn

Em Toronto (Canadá)

02/07/2016 06h00

Em uma manhã gélida de fevereiro, Kerry McLorg dirigiu até o hotel do aeroporto para apanhar uma família de refugiados sírios. Ela era cautelosa por natureza e por profissão, pois trabalha verificando dados de seguros, mas nunca havia falado com as pessoas que estavam prestes a se mudar para seu porão.
"Não sei se eles sabem que nós existimos", disse ela.

No hotel, o telefone no quarto de Abdullah Mohammad tocou e um intérprete lhe disse para descer. Os únicos pertences de seus filhos estavam arranjados em sacos plásticos cor-de-rosa, e os documentos da família em um saco de papel branco impresso com uma bandeira canadense. Seus patrocinadores haviam chegado, disseram a Mohammad. Ele não tinha ideia do que isso significava.

Em todo o Canadá, cidadãos comuns, perturbados por reportagens de crianças afogadas e a rejeição aos imigrantes desesperados, estão intervindo em um dos problemas mais prementes do mundo. Seu país lhes concede um raro poder e responsabilidade: eles podem se unir em pequenos grupos e pessoalmente reassentar --basicamente adotar-- uma família de refugiados. Em Toronto, diversos grupos se formaram para receber famílias sírias. O governo canadense diz que os patrocinadores são milhares, mas os grupos têm muito mais membros.

Quando McLorg entrou no hotel para encontrar Mohammad e sua mulher, Eman, levou uma carta que explicava como funciona o patrocínio: durante um ano, McLorg e seu grupo darão apoio financeiro e prático, desde subsidiar a alimentação e o aluguel a fornecer roupas e ajudá-los a aprender inglês e encontrar trabalho. Ela e seus parceiros já tinham levantado mais de 40 mil dólares canadenses (cerca de R$ 100 mil), escolheram um apartamento, falaram com a escola local e encontraram uma mesquita próxima.

McLorg, que é mãe de dois adolescentes, atravessou o saguão lotado, uma espécie de purgatório para os sírios recém-chegados. Outro membro do grupo segurava uma placa de boas vindas em árabe, mas então percebeu que não sabia se as palavras estavam na posição certa ou invertidas. Quando os Mohammad surgiram, McLorg pediu permissão para apertar suas mãos e recebeu as pessoas à sua frente, e não mais apenas nomes em um formulário. Abdullah parecia mais velho que seus 35 anos. Sua mulher era impenetrável, com um niqab flutuante que escurecia seu rosto, exceto por uma estreita fenda para os olhos. Seus quatro filhos, todos abaixo de 10 anos, vestiam os abrigos com capuz doados, ainda com as etiquetas.

Para os Mohammad, que estavam no Canadá havia menos de 48 horas, os sinais eram ainda mais difíceis de ler. Na Síria, Abdullah tinha trabalhado nas mercearias de sua família e Eman era enfermeira, mas depois de três anos sobrevivendo na Jordânia eles não estavam acostumados a ser bem recebidos. "Quer dizer que vamos sair do hotel?", perguntou Abdullah. Mas pensava consigo mesmo: "O que essa gente vai querer em troca?"

Grande parte do mundo está reagindo à crise dos refugiados --21 milhões de pessoas deslocadas de seus países, quase 5 milhões delas da Síria-- com hesitação ou hostilidade. A Grécia enviou migrantes desesperados de volta à Turquia; a Dinamarca confiscou seus bens de valor; e até a Alemanha, que aceitou mais de 500 mil refugiados, luta com uma crescente resistência a eles. A ansiedade maior sobre a imigração e as fronteiras ajudou a motivar os britânicos a dar o passo extraordinário na semana passada de votar pela saída da União Europeia.

Nos EUA, mesmo antes que o massacre de Orlando provocasse novos temores sobre o terrorismo praticado por "lobos solitários", a maioria dos governadores americanos disse que queria bloquear os refugiados sírios porque alguns poderiam ser perigosos. Donald Trump, o suposto nomeado presidencial republicano, pediu a proibição temporária da entrada de muçulmanos no país e recentemente advertiu que os refugiados sírios causariam "grandes problemas no futuro". O governo Obama prometeu receber 10 mil sírios até 30 de setembro, mas até agora só admitiu a metade, aproximadamente.

Do outro lado da fronteira, porém, o governo canadense mal consegue acompanhar a demanda para recebê-los. Muitos voluntários sentiram-se impelidos a agir pela foto de Alan Kurdi, o bebê sírio cujo corpo apareceu em uma praia da Turquia no último outono. Ele tinha uma ligeira conexão com o Canadá --sua tia vivia perto de Vancouver--, mas sua morte causou uma recriminação tão forte que ajudou a eleger um primeiro-ministro idealista, amigo dos refugiados, Justin Trudeau.

Candidatos a patrocinadores impacientes --"uma multidão furiosa de benfeitores", segundo o jornal "The Star"-- vêm procurando mais famílias. O novo governo se comprometeu a receber 25 mil sírios e depois aumentou o total em dezenas de milhares.

"Não posso fornecer refugiados com rapidez suficiente para todos os canadenses que querem recebê-los", disse em uma entrevista o ministro da Imigração do país, John McCallum.

Os defensores do patrocínio acreditam que cidadãos privados podem realizar mais que o governo sozinho, aumentando o número de refugiados admitidos, conduzindo os recém-chegados com mais eficácia e potencialmente ajudando a solucionar o quebra-cabeça de como reassentar melhor os muçulmanos nos países ocidentais. O medo é que todo esse esforço acabe mal, com os canadenses parecendo ingênuos.

Os sírios são verificados, e muitos patrocinadores e refugiados se ofendem diante da ideia de que eles poderiam ser perigosos, dizendo que em geral eles são vítimas do terrorismo. Mas as autoridades americanas indicam que é muito difícil rastrear a atividade na caótica e multifacetada guerra síria. Vários membros do Estado Islâmico envolvidos nos atentados em Paris em 2015 chegaram à Europa como refugiados vindos da Síria.

Alguns dos refugiados no Canadá têm origens de classe média e alta, mas muitos outros enfrentam caminhos duros para se integrar, sem dinheiro próprio, perspectivas de emprego incertas e enormes diferenças culturais. Alguns nunca ouviram falar no Canadá até pouco antes de viajarem para cá.

E os voluntários não podem prever totalmente o que irão enfrentar --expectativas conflitantes sobre se as mulheres sírias devem trabalhar, tensões sobre como o dinheiro é gasto, famílias que ainda estão dependentes quando o ano termina, discórdias com outros grupos de patrocinadores.

Mas em meados de abril, apenas oito semanas depois de seu primeiro encontro com McLorg, os Mohammad tinham um apartamento no centro da cidade com uma cozinha impecável, bicicletas para as crianças correrem pelo pátio e uma bandeira canadense pregada à janela.

Abdullah buscou as palavras certas para descrever o que os patrocinadores tinham feito por ele. "É como se eu estivesse pegando fogo, e agora estou em segurança na água", disse.

Ainda havia um certo choque cultural. Quando Mohammad levou as crianças a uma piscina comunitária, encontrou uma mulher com um biquíni reduzido. "Eu saí correndo", disse ele mais tarde. "Nunca tinha visto aquilo na vida."

Em meados de maio, no fim de uma reunião de rotina com os patrocinadores e os Mohammad, McLorg deu suas próprias notícias: ela tem câncer de seio, e agora que enfrenta a cirurgia é ela quem está vulnerável e os sírios a estão ajudando.

Eles trouxeram flores e chocolates; os outros patrocinadores, hoje práticos na logística dos cuidados, ofereceram-se para trazer comida e outras ajudas. "Eu não pretendia formar meu próprio grupo de apoio, mas agora tenho um", disse McLorg.

Bayan e Batoul, os dois filhos mais velhos dos Mohammad, fizeram cartões desejando melhoras com o jogo de aquarela que os patrocinadores usaram para fazer as placas de boas vindas no primeiro dia no hotel do aeroporto. Na manhã seguinte à operação de McLorg, quando ela estava descendo para sua sala, os cartões foram a primeira coisa que viu.

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