Eleição francesa indica inclinação europeia para a Rússia
A vitória de François Fillon na primária presidencial de centro-direita é o mais recente sinal de que uma mudança sísmica está prestes a ocorrer na ordem europeia: para uma acomodação, em vez de uma oposição, à Rússia ressurgente.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os líderes europeus mantiveram sua crescente aliança como baluarte contra o poder russo. Ao longo de décadas de altos e baixos nas relações entre a Rússia e a Europa, nos períodos de estranhamento ou reconciliação, a balança de poder deles manteve o continente estável.
Mas um crescente movimento dentro da Europa que inclui Fillon, juntamente com outros de inclinação mais populista, está pressionando por uma nova política: em vez de enfrentar o presidente da Rússia, Vladimir V. Putin, ficar ao lado dele.
Fillon pede pela suspensão das sanções contra a Rússia e por uma parceria com Moscou, em um esforço para combater a imigração e o terrorismo. Ele vê Putin com bons olhos. Se as pesquisas estiverem certas e Fillon conquistar a presidência francesa no ano que vem, ele poderia se juntar ao crescente número de políticos europeus e líderes recém-eleitos de mentalidade semelhante.
O movimento deles, ressaltam os acadêmicos, é movido por forças muito mais poderosas do que qualquer líder eleito: o levante populista que está transformando o continente e, simultaneamente, as pressões impessoais, mas esmagadoras, da balança do poder internacional.
Essas mudanças, juntamente com a iminente saída britânica da União Europeia e a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, prenunciam uma "mudança dramática" no meio século de união ocidental contra a Rússia, disse James Goldgeier, um cientista político e reitor da Escola de Serviço Internacional da Universidade Americana, em Washington.
"Todas as tendências no momento apontam para um abandono da posição dura contra a agressão russa e para uma maior acomodação à noção russa de que possui uma esfera de influência privilegiada", ele disse.
Não está claro quão dentro da Europa essa esfera de influência russa poderia se estender, ou as consequências para os países que ficariam sob ela após terem escapado do domínio soviético há apenas uma geração. Mas essas são perguntas apenas de grau: a vitória de Fillon nas primárias sugere que a mudança já teve início.
Um populista pró-Putin
Apesar de Fillon poder reverter a linha-dura de seu país em relação à Rússia, ele não seria o primeiro líder francês a estender a mão a Moscou (Charles de Gaulle, o presidente de 1959 a 1969, também fez isso) e não poderia, por conta própria, virar do avesso a unidade europeia.
Mais importante, ele não estaria sozinho. Trump prometeu cooperação com a Rússia e ameaçou diminuir o papel dos Estados Unidos na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma aliança militar ocidental). Vários países do Leste Europeu elegeram líderes que defendem uma reconciliação com Moscou.
Na Europa Ocidental, os políticos parecem inclinados a seguir na direção de Fillon. Os partidos tradicionais, forçados a reconhecer que não podem conter a extrema-direita, estão em vez disso trabalhando para atraí-la.
Fillon ilustra muito bem essa tendência. Diferente da extrema-direita francesa, ele deseja a permanência de seu país na União Europeia. Mas, cedendo à onda populista na Europa, ele prometeu conter fortemente a imigração, promover valores sociais conservadores, impor "controle administrativo rígido" ao Islã e trazer segurança contra o terrorismo.
Benjamin Haddad, um analista francês no Instituto Hudson, um centro de estudos conservador em Washington, disse que essas políticas apontam, de formas que podem não parecer óbvias para os americanos, para outro item da agenda da extrema direita europeia: uma parceria com Putin.
"Por toda a Europa, o putinismo despontou como uma alternativa ideológica à globalização, à União Europeia, etc.", disse Haddad, com Putin visto como "um baluarte para os valores conservadores, um homem forte contra o casamento gay, a imigração, o Islã".
Haddad acrescentou: "É um fenômeno em grande parte doméstico, em vez de um reflexo de um debate estratégico a respeito do relacionamento com Moscou".
O apreço de Fillon por Putin aparentemente é sincero e já existia antes desta eleição. O que mudou foram os eleitores franceses, que cada vez mais desejam políticas linhas-duras e sinais de força que veem como sendo representados por Putin.
Nicolas Sarkozy, apontou Haddad, chegou à presidência francesa em 2007 concorrendo como um conservador pragmático pró-americano, mas neste ano ele concorreu como um populista pró-Rússia. Apesar de Sarkozy ter perdido a primária de centro-direita neste mês, Fillon conduziu a mesma mensagem ao sucesso.
As frentes do sul e o leste
De certa forma, Fillon é particular da França, onde políticos nacionalistas desde De Gaulle há muito afirmam a independência francesa dos Estados Unidos e do Reino Unido ao estenderem a mão à Rússia. Mas tendências semelhantes estão se desenrolando em vários países europeus, segundo suas próprias linhas nacionais particulares.
Na Alemanha, por exemplo, líderes de centro-esquerda estão pressionando para que seu país abandone os esforços de liderança europeia de resistência à Rússia. Em vez disso, eles defendem uma volta à política da época da Guerra Fria de Ostpolitik, na qual a Alemanha Ocidental buscou um papel neutro de equilíbrio entre Oriente e Ocidente.
Com frequência, os políticos da Europa Ocidental não se veem pedindo explicitamente por um alinhamento com Moscou, mas sim pelo abandono da missão onerosa de combater a agressão russa contra Estados orientais distantes, em um momento em que têm preocupações mais imediatas.
Os líderes europeus ocidentais se veem travando uma guerra com duas frentes cada vez mais insustentável: uma frente no sul contra a imigração e o terrorismo, e uma frente no leste contra a Rússia.
A frente no leste é em grande parte um projeto do establishment político que o considera essencial para manutenção da ordem europeia do pós-guerra. Os eleitores são mais céticos. Uma pesquisa Pew de 2015 apontou que maiorias por pequena margem na França, Alemanha e Itália disseram que seus países deveriam abandonar suas obrigações por tratado de defesa de um aliado oriental da Otan caso seja atacado pela Rússia.
Os eleitores, particularmente os da direita, há muito consideram os problemas do sul (o terrorismo e a imigração) como sendo mais importantes. As ameaças deles de eleger governos de extrema-direita que desmontariam todo o projeto europeu são cada vez mais críveis.
O establishment político europeu, incapaz de resistir eternamente a esses sentimentos, pode sentir que terá que abrir mão da frente leste para poder se concentrar na frente sul.
A balança do poder
O contexto internacional é mais severo.
A Rússia está crescendo em poder e agressividade ao mesmo tempo em que as duas potências mais fortes do Ocidente, os Estados Unidos e o Reino Unido, estão ameaçando se afastar.
Na visão fria dos acadêmicos das relações internacionais, que tendem a medir a história em épocas, em vez de ciclos eleitorais, o que Fillon diz ou acredita é quase irrelevante. A balança do poder da Europa está rapidamente pendendo para o leste, arrastando nações como a França com ela.
A Rússia é muito mais fraca que os Estados Unidos, e sua economia em dificuldades, dependente de energia, tem a metade do tamanho da economia da França ou da do Reino Unido. Mas ela ainda conta com uma das maiores forças armadas do mundo e com o maior arsenal nuclear. Sua anexação da Crimeia em 2014 mostrou a disposição de Putin de usar esse poderio militar na Europa.
A teoria da balança do poder declara que, quando um país como a Rússia ascende, os outros Estados na região têm três escolhas. Eles podem reagir por meio de uma escalada contra o poder ascendente. Podem mudar de lado e se juntarem ao poder ascendente. Ou podem acomodar o poder ascendente, permitindo a ele uma maior influência na região.
Nos últimos anos, a Europa optou de forma confiante pela primeira opção, respondendo à agressão russa com sanções e reforços militares no leste, visando mostrar à Rússia que a o status quo seria mantido.
Mas essa abordagem parece cada vez mais insustentável com a eleição de Trump e com a saída do Reino Unido da União Europeia. Mesmo se Trump não cumprir suas ameaças de abandonar os compromissos dos Estados Unidos de defesa dos aliados da Otan, esses aliados têm pouca escolha a não ser se preparar para a possibilidade.
Em um grau que já está mudando, os Estados europeus parecem estar buscando a terceira opção: uma acomodação à ascensão da Rússia, sendo indulgentes o suficiente com as exigências de Moscou para assim restaurar a estabilidade.
Dentro da Europa, a velha ordem é liderada pela chanceler Angela Merkel da Alemanha, que se vê como defensora do projeto europeu, mas é cada vez mais contestada por aliados hesitantes e populações céticas, incluindo muitos alemães.
"Merkel não pode fazer isso sozinha. A Alemanha não tem essa habilidade", disse Goldgeier. Se ela deseja se manter no cargo, ela poderá ter que ceder em algo, e a linha-dura da Europa em relação à Rússia poderá ser isso.
Tão logo um país rompa com a frente unida contra a Rússia, disse Goldgeier, "cada país europeu buscará fechar seu próprio acordo com os russos".
Isso poderia significar ceder à Rússia concessões na Síria, a suspensão das sanções da União Europeia visando forçá-la a encerrar a guerra no leste da Ucrânia, ou tolerar uma maior influência russa no Leste Europeu.
É impossível prever para onde essas tendências levarão, não por haver dúvida a respeito delas, mas porque prenunciam mudanças tão extremas na ordem europeia que suas consequências podem variar demais para poderem ser apontadas.
Goldgeier, entretanto, disse que sua preocupação imediata é com as ex-repúblicas soviéticas que não são membros da União Europeia ou da Otan, de modo que seriam as primeiras a sucumbir à crescente influência russa.
"Para a população da Ucrânia, Moldova e Geórgia, essas tendências são trágicas", ele disse.
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