Exclusivo para assinantes UOL
Homem que teve identidade confundida com supeito da Al Qaeda aguarda desculpas dos EUA
James A. Goldston*
Em Londres (Inglaterra)
O governo americano tenta há quase uma década abafar o que fez com Khaled el Masri, um cidadão alemão cuja história de identidade confundida, abdução e abuso marca um dos pontos baixos da “guerra ao terror” pós-11 de Setembro da CIA. Na quinta-feira (13), o acobertamento acabou. A Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que o desaparecimento forçado de Masri, sequestro e transferência encoberta, sem o devido processo legal, para a custódia americana, há nove anos, violou as garantias mais básicas da decência humana. Notadamente, a corte apontou que o tratamento sofrido por Masri no Aeroporto de Skopje “nas mãos da equipe especial de rendição da CIA (...) representou tortura”. Apesar da corte não ter jurisdição sobre os Estados Unidos, sua decisão é uma condenação poderosa das táticas impróprias da CIA e do fracasso abjeto de qualquer tribunal americano de fornecer reparação a Masri ou a outras vítimas da política desacreditada de Washington de detenção secreta e rendição extraordinária. Os 17 juízes da grande câmara da corte europeia, vários dos quais criados sob o comunismo, fizeram o que nossa própria Suprema Corte se recusou a fazer: condenar um abuso escandaloso sofrido por um homem inocente e cometido por serviços de segurança fora do controle. Masri foi detido por agentes locais de segurança na Macedônia em 31 de dezembro de 2003, enquanto cruzava a fronteira da Sérvia de ônibus. A pedido de Washington, ele foi mantido incomunicável por 23 dias, então entregue para a CIA no aeroporto de Skopje, onde foi espancado por agentes americanos, drogado, sodomizado com um objeto e enviado para Cabul, Afeganistão. Ele foi mantido por quatro meses em uma cela pútrida e gelada, situada em uma prisão secreta americana conhecida como “Fosso de Sal”. Ele nunca foi acusado de algum crime e nunca teve acesso à sua família, um advogado ou funcionários diplomáticos alemães. De fato, como a chanceler Angela Merkel declarou em dezembro de 2005 após se encontrar com a então secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, a CIA errou na captura de Masri. Como ficou claro logo após o início de seu desaparecimento forçado, Masri era a pessoa errada; ele foi detido porque seu nome lembrava o de um suspeito da Al Qaeda. Mas Masri foi mantido na prisão por muito tempo após Washington ter percebido seu erro. Foi apenas em 28 de maio de 2004 que Masri foi devolvido pela CIA para a Albânia, uma aliada americana. Lá ele foi avisado a não dizer para ninguém o que aconteceu com ele, então colocado em um voo comercial de volta para a Alemanha. Apesar das investigações do Conselho da Europa e do Parlamento alemão apontarem para a responsabilidade americana, Washington nunca reconheceu publicamente o que aconteceu. Pelo contrário, as autoridades americanas buscaram bloquear as investigações criminais alemãs e espanholas, e impediram as tentativas de Masri de procurar a Justiça americana com base em “segredos de Estado” impedirem o acolhimento da queixa. Agora, com a decisão da Corte Europeia, os principais governos implicados no caso deverão fazer reparos. A Macedônia terá que se comprometer com a criação de uma comissão de inquérito capaz de levar à identificação e punição das autoridades macedônias que participaram da rendição extraordinária. A Alemanha terá de revelar seu papel, e seu Ministério da Justiça deverá enviar às autoridades americanas os mandados de prisão, expedidos em janeiro de 2007, mas nunca foram enviados, para os 13 agentes da CIA acusados de envolvimento no caso. O governo Obama deve aproveitar a oportunidade para rever uma política de segurança nacional há muito atormentada pela ausência de prestação legal de contas. Mais imediatamente, o presidente Obama deve reconhecer publicamente o que fez a Masri, pedir desculpas em nome do povo americano e oferecer uma indenização razoável. E além desse caso, o governo deve abandonar a política de sigilo excessivo que diminuiu a autoridade moral de seu programa de contraterrorismo, assim como o apoio popular. A prática da CIA de transferir detidos sem o devido processo legal deve ser formalmente repudiada; o governo deve estabelecer uma comissão imparcial, independente, de pessoas notáveis para examinar e revelar todo o histórico de abusos de direitos humanos associados a essas operações; e lançar investigações criminais genuínas quando devido. O número total de pessoas sujeitas à detenção secreta e/ou rendição extraordinária desde 11 de Setembro, sendo que algumas delas foram parar em Guantánamo, permanece desconhecido. é de interesse dos Estados Unidos revelar a verdade sobre esse capítulo sórdido em nossa história e fazer os responsáveis prestarem contas. Outros governos começaram a fazer isso. A Itália condenou criminalmente algumas de suas próprias autoridades, assim como vários agentes da CIA à revelia, pelo envolvimento em uma notória operação de rendição extraordinária. O Canadá pediu desculpas a Maher Arar, que, com a ajuda dos Estados Unidos, foi rendido extraordinariamente e torturado na Síria. Austrália, Reino Unido e Suécia forneceram indenização às vítimas de rendição extraordinária. é hora dos Estados Unidos se juntar a eles. Em janeiro de 2009, às vésperas de tomar posse, o então presidente eleito Obama disse sobre as supostas injustiças: “Nós precisamos olhar para frente em vez de olhar para trás”. Ao longo dos últimos quatro anos, a manutenção dessa política deixou uma mancha na reputação dos Estados Unidos. Pois enquanto Washington se recusar a examinar sua própria conduta, caberá aos tribunais de outros países manterem o Estado de Direito. E, como deixou clara a decisão de quinta-feira, eles o farão. *James A. Goldston, diretor-executivo da Iniciativa de Justiça da Sociedade Aberta, serviu como advogado de Khaled el Masri na Corte Europeia de Direitos Humanos.