Presidente Tancredo poderia ter tomado posse e foi vítima de erros médicos, diz livro
Maurício Savarese
Do UOL Notícias
Em São Paulo
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Tancredo Neves e dona Risoleta fotografados no Hospital de Base, em Brasília (DF), ao lado da equipe médica que acompanhou o tratamento do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral em 1985. Neves morreu sem tomar posse da presidência. Da esq. para a dir.: Renault Mattos Ribeiro, Francisco Pinheiro da Rocha, João Baptista Rezende, Walter Pinotti e Gustavo Arantes
“Os médicos atenderam magnificamente bem o presidente da República, e esqueceram o paciente.” É essa a justificativa que o especialista Luis Mir, professor visitante da Universidade de São Paulo (USP), detalhou em um livro recém-lançado o que chamou de “série de erros” que levaram à morte de Tancredo Neves (1910-1985), dias depois do dia em que ele tomaria posse no Palácio do Planalto.
Em 384 páginas, o livro “O Paciente – o caso Tancredo Neves” inclui depoimentos de cirurgiões do presidente, alegando que ele poderia tomar posse no dia 15 de março de 1985. Um dia antes, no entanto, ele foi internado para tratar de dores abdominais. Um erro no diagnóstico, afirma Mir, transformou-o em paciente de risco. Menos de um mês depois, morreu. O vice, José Sarney, ficou no cargo.
“Os depoimentos e prontuários que colhi mudam tudo. A grande maioria do que ficamos sabendo saiu a partir de informações médicas que estavam erradas. O caso foi mal diagnosticado e o paciente foi mal operado e mal acompanhado”, disse Mir em entrevista ao UOL Notícias. “O erro começa no diagnóstico de apendicite aguda. Era um mioma, mas o presidente não corria risco de morte, podia ter tomado posse.”
O livro reúne documentos obtidos no Hospital de Base de Brasília e no Instituto do Coração, em São Paulo, onde Tancredo morreu. Nesses textos, são descritas as ações com o paciente, técnicas de escolha, quadro pós-operatório, complicações, exames etc. O período de análise vai desde a chegada do presidente para internação até o óbito, mas o relato evita os momentos finais, de falência múltipla dos órgãos.
De acordo com o médico, “o caso do Tancredo é exatamente igual ao do papa João Paulo 2º”, morto em 2007. “O cirurgião que atende o Vaticano lidou com uma crise semelhante. Usou antibióticos e o papa melhorou, viajou para a África. Voltou a Roma e depois de dois meses decidiram que era hora de operar. Tancredo podia ter tomado posse e sido operado sem pressa. Mas pesou o fato de ser presidente.”
O pesquisador da área de educação médica e promoção da saúde, que passou 24 anos buscando documentos para o livro, afirma que os cirurgiões se assustaram ao notar que a apendicite que detectaram era, na verdade, um pequeno tumor. “Só quando abriram a barriga do presidente e viram que não havia urgência nem risco de vida, que poderia ser uma cirurgia programada, viram a bobagem que fizeram, viram que ele poderia ter feito a operação depois”, disse.
Sem intenção de matar
“Tancredo foi vítima de sucessivos erros de diagnósticos. Foi vítima de uma loucura coletiva. Fecharam o presidente para a posse de uma maneira que chegou às raias da irresponsabilidade. Eles sabiam que tinham abortado a posse”, afirmou Mir. “Mas isso não significa que tenha sido proposital. Foi insuficiência cirúrgica e terapêutica.”
Os seis médicos que trabalharam no caso são Renault Mattos Ribeiro, Francisco Pinheiro Rocha, Henrique Walter Pinotti, João Baptista de Resende Alves, Aluisio Toscano Franca e Gustavo de Arantes Pereira. “Esses foram os condutores e executores das indicações cirúrgicas e terapêuticas, internação, intervenções, pós-operatório até o falecimento do paciente”, descreve Mir no prefácio do livro.
A assessoria de imprensa do Hospital de Base informou que o diretor da instituição, Luiz Carlos Schimin, tomou conhecimento do lançamento do livro, mas preferiu não se manifestar por enquanto. Nenhum dos responsáveis por cirurgias de Tancredo trabalha hoje no local. A reportagem procurou representantes do InCor para fazer comentários sobre o livro do especialista, mas eles não foram encontrados.
Tumor não era letal
Mir encontra documentos que indicam o quadro controlável do paciente-presidente. Segundo eles, o tumor era primário, não contaminava a parede abdominal nem apresentava metástase. “Ele poderia morrer de doenças próprias da idade, mas não morreria desse tumor”, diz. “A partir de certa idade, não se opera mais câncer de próstata, por exemplo, porque o idoso morre por outra etiologia (motivo).”
De acordo com Mir, os responsáveis por Tancredo em Brasília vetaram sua ida para São Paulo em um jatinho, na noite do dia 14 de março de 1985. Quando o presidente tirou fotos no dia 25, para tranquilizar o país, já sangrava muito, por conta de “erro técnico na sutura da primeira cirurgia”. “Uma técnica equivocada pegou um vaso e ele sangrou para dentro do intestino”, afirma.
“Ele sangrou desde o primeiro momento e isso determinou as complicações que o levariam à morte”, afirma o pesquisador, que vivia em Madri na época da morte do primeiro presidente civil após o fim do Regime Militar (1964-1985). A hemorragia fez Tancredo perder 3,5 litros de sangue, abalando seu sistema imunológico. “Esse exame foi boicotado em Brasília para forçar a mudança dele para São Paulo”, diz Mir.
“Os responsáveis pelo atendimento fizeram isso porque queriam que Tancredo deixasse o hospital. E quando o presidente chegou a São Paulo, o sangramento tinha sido já tão grande que pouco havia a fazer”, afirmou o autor do livro. O relato é interrompido no dia 12 de abril de 1985, quando o político mineiro passou a viver graças a aparelhos. O presidente morreria nove dias depois.
Em seu relato, Mir atribui a médicos do InCor e ao neto do presidente, o ex-governador mineiro Aécio Neves (PSDB), a informação sobre a última frase de Tancredo antes de ser definitivamente sedado. “Eu não merecia isso”, teria dito.
“Para mim, escrever esse livro foi doloroso”, afirmou Mir. “Estava em Brasília para a posse dele. Depois da morte de Tancredo, me comprometi a fazer esse trabalho. A medicina às vezes se confunde com a história.”