Topo

'Golpe de 64 tornou-se inevitável', diz Serra

Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Guilherme Balza*

Do UOL, em São Paulo

27/03/2014 06h00

O ex-governador de São Paulo José Serra (PSDB) tinha apenas 22 anos quando foi dado o golpe militar de 1964, mas pôde acompanhar de perto as movimentações políticas e sociais que culminaram com a queda do presidente João Goulart.

Como presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), Serra tinha trânsito com Jango e outros líderes da esquerda agrupados na FMP (Frente de Mobilização Popular). O tucano, que se exilou no Chile, onde testemunhou a deposição violenta do socialista Salvador Allende, relatará o que presenciou naqueles dias tumultuados de 1964 em livro a ser lançado em junho deste ano.

Em entrevista exclusiva ao UOL, Serra afirmou que o golpe militar “tornou-se inevitável” em função de falta de apoio a Jango, da alta inflação, da insatisfação de parcela dos militares, além da conspiração direitista. Para o ex-governador, direita e esquerda “subestimavam a democracia” no pré-golpe e o argumento de que havia uma ameaça de luta armada por parte dos esquerdistas era “fictício”, usado apenas para justificar o golpe.

Veja abaixo a entrevista.

Golpe "inevitável"

Teria [saída ao golpe] em outro contexto, mas eu acho que naquele momento o Jango não tinha apoio do lado da esquerda, que era contra um entendimento, e do lado da direita, onde houve a grande mobilização golpista porque eles queriam era tirar o Jango, não queriam negociação nenhuma em torno da manutenção da democracia. Jango não tinha apoio nem de um lado, nem de outro para um processo de entendimento.

A partir de um certo momento o golpe tornou-se inevitável. Que houve momentos que se poderia ter negociado, feito um governo para valer, houve, mas o processo não caminhou para isso. Não sou a favor da tese que diz que com a desorganização econômica tinha que ter acontecido o golpe. Não necessariamente. O Brasil viveu períodos, por exemplo no governo [José] Sarney (1985-89), com superinflação, com economia se desfazendo, e nem por isso a solução foi autoritária.

Jango "sabia que iria cair"

Tenho para mim que ele [Jango] sabia que iria cair naqueles dias. É como se tivesse isso já na cabeça, programado. [Ele] não [estava] provocando, mas já sabia que iria acontecer. É a única explicação que encontro para as atitudes dele no final do período que de fato acabaram favorecendo o golpe, a mobilização das forças militares para o golpe. Mesmo aqueles que eram mais legalistas, que eram mais de centro, na última hora também foram para o outro lado em razão de sinais que o próprio Presidente da República deu.

Qual a sua história?

memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/Arquivo Nacional
Envie seu relato da época

O quadro econômico era muito grave. A inflação tinha sido da ordem de 90% [em 1963]. Em janeiro e fevereiro [de 1964], já era de 7%, 8%, numa época em que não tinha indexação da economia, não tinha correção monetária. As perdas que uma inflação alta provocava eram muito selvagens. Mesmo as bandeiras das reformas de base, que a esquerda e o Jango levantavam, não estavam voltadas para resolver a questão da conjuntura, da crise econômica propriamente dita. Era muito difícil ter um entendimento. Não apostava nisso, achava que o processo iria se radicalizar. Era uma convicção íntima, até. E eu ouvi o Jango dizer em uma reunião, no começo de outubro [de 1963], com a Frente de Mobilização Popular (FMP), que não iria terminar o mandato. Você ouvir um presidente dizer isso realmente impressiona.

“País estava sem programa”

Na vida pública todo mundo comete erros. Mas a questão básica é que ele [Jango] não foi capaz de comandar o processo no Brasil a partir da renúncia do Jânio Quadros. Isso também foi em boa medida consequência da tentativa da direita de impedir que ele assumisse a Presidência. O acordo que houve, para que os militares permitissem que o Jango tomasse posse, foi o parlamentarismo. Mas o que houve depois? Ele [Jango] ficou lutando, durante um ano e meio, para derrubar o parlamentarismo. Essa passou a ser a grande meta do governo. Depois que assumiu a presidência, isso já em 1963, ganhou no plebiscito, voltou o presidencialismo, mas aí a situação econômica era realmente muito ruim e tudo materializado no caso da inflação, que era muito alta.

Ele fez um gabinete presidencialista, o primeiro, que era muito bom, mas caiu em meses. Foi aí que ele colocou o Carvalho Pinto como ministro da Fazenda, mas sempre o governo atrás dos acontecimentos, e a situação se deteriorando. E aí ele passou a dizer que sem reformas o país não teria conserto. Mas boa parte delas não tinha a ver com a situação que se vivia. Você permitir ao analfabeto votar, dar direito de voto a cabos, soldados, sargentos, mesmo medidas corretas com relação a universidades, não apontavam para uma solução da crise em si. Nem a reforma agrária, que é uma medida de médio e longo prazo, que tem a ver com a distribuição de patrimônio e renda, não é algo para resolver uma inflação galopante. Então, o país estava sem programa.

Saída estratégica

Ele efetivamente se jogou mais pelo lado que a esquerda queria. Se você olhar a posteriori, é como se fosse uma trajetória que levaria necessariamente ao golpe, que ele seria derrubado. O que o Jango poderia ter em mente? É uma hipótese. Era ser deposto, voltar a São Borja (RS) e entrar para a história como o presidente das reformas, que eram sempre coisas bem vistas pela população. A partir daí, viraria uma legenda e poderia ser chamado de volta algum dia. Não se daria um tiro como se deu o Getúlio, mas poderia voltar como um homem que marcou a vida brasileira naquele período até para o comando do país. Isso não era algo alheio ao que o Jango poderia ter na cabeça.

Direita e esquerda subestimavam a democracia

Se você olhar antes de 1964, a direita subestimava a democracia, queria era o poder e implantar o seu modelo não pelo voto. Agora, na esquerda também se subestimava a democracia. Dizia-se: “não dá para ter democracia se a barriga está vazia”. Era até uma música do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE. Na verdade, se deveria dizer: “precisamos de democracia porque a barriga está vazia”. O básico é a democracia, são as liberdades civis, as liberdades de opinião, que, aliás, no Brasil existiu amplamente antes do golpe de 64 e também no Chile do Allende. Não houve transgressão nesse sentido, coisa que a direita sempre procurou mistificar.

Direita preparou o golpe

O pessoal que derrubou o Getúlio, que era ditador, em 1945, parte era UDN (União Democrática Nacional, partido de direita). Em 1950, o Getúlio voltou e foi eleito. Queriam impedir a posse, mas ele tomou posse. Teve problemas e se suicidou em 54 para não deixar o governo. Assumiu o vice dele, que iria levar o país para o rumo que esse pessoal, a chamada direita, queria. E o Juscelino [Kubistchek], que era do PSD, mas tinha relações com o getulismo, ganhou a eleição. Iam dar um golpe para o Juscelino não assumir, daí o ministro da Guerra de então, o marechal Henrique Teixeira Lott, depôs o vice-presidente Café Filho (...) e garantiu a posse de Juscelino.

Houve duas tentativas de quartelada militar ao longo do governo de Juscelino. E o candidato do Juscelino, que era o próprio Lott, perdeu a eleição. Ganhou o Jânio, que era oposição ao esquema prevalecente, do PSD do Juscelino e do PTB também. Jânio ganhou, dali sete meses renuncia, e não querem deixar o Jango tomar posse. Ou seja, a direita foi sendo frustrada e se preparando realmente para um golpe de maior profundidade. Daí as cassações de direitos políticos de dez anos, cassações de intelectuais, de técnicos, para baní-los da vida pública. Eles queriam erradicar tudo que pudesse ser nacional, desenvolvimentismo, populismo, da vida pública. Nesse sentido, trabalharam para ser uma coisa mais definitiva, não passageira.

Dois golpes: Brasil e Chile

O golpe do Chile foi muito mais violento, já de cara, e muito mais profundo, porque também as mudanças que estavam acontecendo no Chile eram mais profundas. O presidente Salvador Allende encabeçava uma coalizão de partidos, a Unidade Popular, que queria fazer o socialismo de verdade. Desapropriou 500 grandes indústrias, todo o sistema financeiro e o comércio exterior foram praticamente estatizados. Radicalizou a reforma agrária, mas naufragou na política econômica de curto prazo. De novo, a inflação, e o desabastecimento, inclusive, porque tinha controle de preços. Uma situação desesperadora. No terceiro ano [de governo], ele [Allende] foi derrubado pelos militares que já entraram assassinando. Foi uma coisa muito violenta.

Não era realmente o mesmo fenômeno [que a ditadura brasileira]. Havia, claro, Guerra Fria, apoio americano, mas o processo chileno foi muito mais radicalizado. Aqui a orientação do Jango não era socialista, nem mesmo a esquerda, boa parte dela, pregava o socialismo, a estatização dos meios de produção, a nacionalização de tudo, não era assim, era mais um programa nacional-desenvolvimentista.

Papel dos EUA

No caso brasileiro, eles puseram dinheiro, Na campanha eleitoral de 1962, eles puseram US$ 6 milhões na época, isso deve dar em dólares de hoje uns US$ 45 milhões. Eles financiavam o Idab (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e organizações civis para fazer campanhas contra o comunismo, contra a “república sindicalista”. Era estratégia para assustar a classe média. E foram simpáticos ao golpe. Agora, eu não diria a vocês que foram decisivos. Nem no caso brasileiro, nem no Chile. Não há golpe dessa proporção feito de fora. O que o de fora faz é ajudar. No caso chileno, a interferência foi muito maior. Mas, de fato, o fator decisivo foi a desorganização da economia, do abastecimento, mercado negro e tudo mais.

Medo da luta armada era "fictício"

Não havia ameaça de luta armada no Brasil por parte da esquerda. Isso é fictício. Vendeu-se essa mercadoria antes do golpe para poder se mobilizar para o golpe. Até 64 não tinha nada disso (...) Não havia nenhuma preparação armada. Outra coisa era a retórica. Assustar, dar a ideia de que tinha. Mas na prática não tinha mobilização armada nenhuma. (...) Isso é um mito que se criou. Houve um começo de luta armada depois do golpe. Até 1964 não tinha tido nada.

 Militares começaram a violência

[A luta armada pós-golpe] era meio inevitável, o que não significa que tenha sido a melhor estratégia, mas quando se fecha vias democráticas, a luta política se torna muito mais difícil (...) Mas quem começou a violência no Brasil, de fato, foi quem deu o golpe. A violência das cassações, da perseguição, o que não significa que a reação [armada] tenha sido a melhor, que acabou sendo muito custosa do ponto de vista de vidas e até para justificar um endurecimento maior [do regime].

Heranças da ditadura

Eles entregaram a economia com uma inflação de 200% ao ano, com o país praticamente inadimplente, quebrado, do ponto de vista do balanço de pagamentos e com superinflação. Foi uma herança muito ruim. Diziam: “o regime autoritário é bom por causa da racionalidade econômica”. Isso foi uma coisa que sempre combati. O legado da ditadura significou para o país um preço altíssimo a ser pago.

Outra [herança], que é menos perceptível, mas que teve um peso imenso, foi o sacrifício de uma ou duas gerações. A minha geração, que tinha 20 anos na época do golpe, foi sacrificada pela perseguição, pela coação, e alguns que mergulharam na luta da oposição até com o sacrifício da vida. A política passou a atrair menos. Os melhores quadros, que potencialmente seriam líderes políticos, se afastaram da política. Isso se estendeu pelos anos 60 e 70. Criou-se um vazio no Brasil. Foram duas gerações desperdiçadas, o que se projetou num declínio da qualidade da chamada classe política.

Anistia e Comissão da Verdade

Querer revogar a Lei da Anistia é uma batalha que não vai dar certo. Isso não vai passar pelo Supremo. Na Argentina houve alguma coisa e até no Chile chegou a acontecer. Por exemplo, no Chile, os assassinos do [músico] Victor Jara foram julgados e condenados em 2012, ou seja, 40 anos depois da morte. No caso brasileiro, você tem dez anos a mais que o Chile. Acho que o grande trabalho da Comissão da Verdade é mostrar quem foram os responsáveis, é ter o reconhecimento, a explicitação disso. É a maior conquista que nós poderíamos ter até para cicatrizar. Porque o fato é o seguinte: passados 50 anos, o golpe ainda é uma questão mal resolvida. Hoje, 1964 é atual.

Retorno do conservadorismo

Restaurar a Marcha da Família é uma piada. Parece uma coisa exótica, nada a ver. É normal numa democracia ter setores mais à esquerda, setores mais conservadores, eu acho que a gente tem que conceber isso dentro do processo democrático, contanto que se defenda as regras do jogo democrático. Você ter um bom pensamento conservador, ajuda. Só que tem uma dificuldade no Brasil que é a seguinte: aqui, a chamada direita, sempre foi populista, gastadora. O Brasil nunca teve uma Margaret Thatcher [ex-premiê do Reino Unido], um Ronald Reagan [ex-presidente dos EUA]. O pessoal quando pega, bota para quebrar os cofres públicos.

*Produção: Noelle Marques