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Artigo: É possível converter indignação do dia 15 em mais democracia

Anjuli Tostes*

Especial para o UOL

03/03/2020 15h46Atualizada em 03/03/2020 16h07

Há uma questão com a qual economistas marxistas e da Escola de Chicago concordam: Parlamentos e governos, nas democracias liberais, são capturados pelo poder econômico. São vários os mecanismos que geram incentivos para esta captura, muitos deles estruturais ao modo de funcionamento deste modelo de democracia. São diversos os estudos que demonstram os altos níveis em que esta influência ocorre.

Para citar apenas uma deles, pesquisadores das universidades de Princeton e Northwestern University demonstraram, em 2014, que na democracia norte-americana a influência das preferências dos cidadãos comuns é próxima de zero, estatisticamente irrelevante. Por outro lado, elites econômicas e grupos organizados que representam interesses empresariais possuem impacto substancial sobre as políticas governamentais. A pesquisa foi realizada no período de 1981 a 2002, e se baseou nas respostas dadas por americanos em 1.779 enquetes.

Essa captura do poder político pelo econômico pode ocorrer tanto a partir de incentivos legalmente previstos, como o financiamento a campanhas políticas e o lobby, como ilícitos, que é o que chamamos, stricto sensu, de corrupção.

Mas é preciso pensar: o que pode ser construído para além disso? Como podemos fazê-lo? São questões fundamentais que se colocam para todos aqueles que almejam um aprofundamento da democracia. Para os que pensam que o poder instituído deve refletir bem os anseios do povo, em um sistema que funcione para a coletividade — e não para poucos, como o atual, permeado por desigualdades extremas.

As demandas de muitos que vão aderir aos protestos do dia 15 não são, necessariamente, antidemocráticas, ainda que estejam sendo articuladas desta forma. São produto do desencantamento com uma ordem que nunca os contemplou, e, em muitos casos, a busca desesperada por uma alternativa que possa colocar essa ordem abaixo e melhorar as condições de vida. Essas demandas estão sendo expostas e compreendidas, mas a alternativa proposta por uma comunicação muito eficiente é uma alternativa autoritária.

E, na verdade, esta ordem atende mesmo um grupo muito pequeno, as mesmas elites de sempre, algo que também já foi exaustivamente demonstrado por investigações empíricas.

É verdade que a imprensa e a liberdade de expressão são fundamentais para a democracia, mas também é verdade que a grande mídia brasileira é extremamente oligopolizada e que tende a repercutir uma visão dominante, como já nos alertaram várias vezes organismos e observatórios internacionais.

As pessoas estão saindo às ruas desde que as redes sociais viabilizaram a organização de manifestações de massa para dizer que essas instituições não estão funcionando bem (se é que algum dia já funcionaram). E isso não é apenas aqui, mas em todo o mundo. Será a democracia liberal o modelo mais acabado que a humanidade pode produzir? Será que essa vontade de mudar as coisas só pode ser organizada para dar base à extrema direita?

Sabemos que há muita manipulação no meio de tudo isso, o que inclui desde disparos massivos de mensagens falsas a algoritmos que hoje modelam as nossas interações sociais. Há muito ódio também, ódio contra as elites (o que inclui as intelectuais, culturais e políticas), ódio contra o sistema e o ódio alimentado por anos por esta mesma mídia oligopolizada contra aqueles a quem se atribuiu a culpa "por isso tudo que está aí".

Mas, me parece, esta vontade pode ser articulada de duas maneiras: para fundamentar uma saída autoritária ou para o aprofundamento da democracia. Discordo da visão de quem classifica todas essas pessoas como fascistas, e ainda diz que não dialoga. Acho superficial e um erro. Nunca foi tão necessário conversar e estabelecer pontes com as necessidades reais da vida cotidiana das pessoas. Vociferar, excluir e tachar dificilmente é estratégico para trazer alguém para o lado de cá.

*Anjuli Tostes é advogada, internacionalista, especialista em gestão pública e doutoranda em direito e economia na Universidade de Lisboa (Portugal). É autora do livro "Código de Defesa do Usuário do Serviço Público" (FB Silva Livros), entre outros.